sábado, 31 de dezembro de 2005

feliz ano novo


Esse é um post para agradecer.
Agradecer mesmo, do fundo do coração, a todo mundo que veio aqui no frankamente... esse ano, que falou, que palpitou, que me deu idéias, que me fez escrever mais ainda, que me agradou, que me criticou, que me incentivou. Para mim escrever todos os dias uma idéia, uma história, uma imagem ou um pensamento foi uma grande experiência.
Pra falar a verdade, foi o máximo. Olha, tão o máximo que durante o ano todo eu tentei juntar todas as crônicas para tentar quem sabe um dia publicar, mas não consegui ir adiante nessa arrumação: era sempre mais legal responder os comentários e pensar o que escrever no dia seguinte.
Para que parar?
Tem uma coisa que eu acredito: se fizermos nossa mente funcionar sempre, as idéias vêm. Germinam. Dão frutos. E, se fazemos a mente funcionar de modo feliz, alegre, divertido, o resultado são frutos muito mais gostosos. Olha, escrever textos engraçados, bem humorados e divertidos é muito mais difícil que escrever textos sérios. Esse era meu intuito quando resolvi escrever todos os dias aqui esse ano: não reclamar nunca e alegrar a todos, e principalmente a mim.
O frankamente... é, ainda, uma semente. Uma semente de uma possibilidade de escrever crônicas virtualmente por um longo tempo, quem sabe num site ou portal muito maior.
Isso.
Uma semente.
Vamos ver se ela germina em 2006.
Feliz ano novo pra todo mundo e até amanhã!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

o pinto dos pintos




- Eu aprendi uma brincadeira engraçada – anunciou o João na hora do jantar.
- Ichi. Lá vem –falou o Zé.
- Falaí, Batista – pediu o Chico.
- Aposto que é aquela brincadeira que eu te ensinei – falou a Luciana, suspirando – ele sempre me imita e depois fala que foi ele que inventou, mãe...
Olhei para o João. É. Filho caçula sofre.
- Escuta, João, se for brincadeira que fala palavrão nem começa – eu intervim – vocês sabem que nessa casa é proibido falar palavrão na mesa.
- Pinto é palavrão? – ele perguntou depois de uma pausa.
- É – resolvi na hora.
- ô mãe, não radicaliza. Eu acho que depende do contexto – argumentou o Chico.
- Ahá! Eu falei que era a minha brincadeira – interrompeu a Luciana.
- Não vai contar antes, Luciana! – pediu o João, olhando para ela – Ô mãe, deixa, vá. Pinto não é palavrão. É uma parte do corpo humano.
Deixei. Eu sabia que aquela brincadeira era ligeiramente inadequada para uma hora de refeição, mas fazer o quê.
- É assim. Tem que lembrar um nome de filme e trocar uma das palavras por “pinto”.
- Hã? – perguntou o Zé – E daí?
- E daí que fica engraçado, pai – falou a Luciana rindo – A brincadeira é só para isso, para o nome do filme ficar engraçado. Tenta, faz uma você.
O Zé me olhou com cara de desânimo. Fazer o que?
- Não, filha. Tá maluca? Era o que faltava...
- O Senhor dos Pintos – disse o Chico, falando e gargalhando em seguida.
- Apertem os pintos que o piloto sumiu! – falou o João, rindo mais ainda.
- Gente, que idiotice – suspirei, olhando ao redor.
- Pinto Potter!
- O Pinto da Vinci!
- O Poderoso Pintão!
Eles gargalhavam de rir a cada lembrança.
- Scarpinto!
- Guerra nos Pintos!
- Montty Pinto!
- Cidade dos Pintos!
- Os pintos de motocicleta!
Ninguém mais conseguia comer por causa da gritaria. Eu comecei a segurar o riso.
- Pode ser também nome de programa ou novela – falou a Luciana.
- Pintíssima!
- Domingão do Pintão!
- ... ou filmes Disney!
- A Bela e o Pinto! Branca de neve e os sete pintões! O pequeno Pinto! O Pinto novo do Rei ou o A roupa nova do Pinto!
Nessa hora, eu e o Zé já estávamos gargalhando mais do que eles. Como é absurdo conviver com crianças. E bem, a nossa moral foi para a cucuia. Eu estava esperando a hora que o Zé ia lembrar de algum nome de filme quando o Chico ficou em pé e deu um grito altíssimo na mesa, abrindo os braços.
- Piiinto!
Aquilo era demais.
- Chega, gente. Isso não é mais brincadeira, é desrespeito com o jantar - declarei
- Mas mãe, eu estou falando apenas um nome de filme! – ele argumentou me olhando e rindo.
- Qual?
- Titanic!
O Zé me olhou desanimado.
- Será que é por causa da época do ano?
- Deve ser, Zé. Nas férias sempre piora...

quinta-feira, 29 de dezembro de 2005

o gato


(Estava escrevendo outra crônica para colocar hoje aqui, falando dessa época do ano, das férias, do natal. Mas na hora H desisti, a crônica estava estranha, desconjuntada, sem eira nem beira. Lembrei dessa antiga, que é um das que eu mais gosto. Vamos ficar só com ela por hoje)

Estava escuro e enfumaçado, mas percebi quando ele me viu. Deu olhar fulminante e veio na minha direção. Naquele instante também notei que nunca tinha visto aquele fulano na minha vida. Quem seria ele? E era comigo mesmo? Olhei para os lados. Não tinha mais ninguém ali.
Uau. Era comigo mesmo.
Na época que eu era menina, o rapaz poderia ser chamado de “um gato”. Sabe aquele tipo de moço bonitão? Era ele, o gato. Mas shiuuu, acho que hoje em dia ninguém mais usa esse termo. E, se a gente usar, isso vai significar que somos de outra geração, de milhões de milhões de séculos atrás. Olha o perigo. Tenho certeza que, se eu falar “o fulano é um gato” ao lado da minha filha pré-adolescente, ela vai me olhar aborrecida, suspirar fundo e me dizer “ah, menos, mãe, menos”.
Menos...?
Enfim, lá estava o tal do homem – moço – gato – bacanão, naquela festa supermoderna, todo de preto e até sorrindo para mim. Gente, quem seria ele? Comecei a me achar a maior gagá. Algum conhecido? Funcionário de algum lugar que eu já trabalhei? Filho de algum amigo? Vizinho? Ator de novela? Por mais que eu puxasse pela memória, nada. Impossível lembrar ou associá-lo a alguém ou a algum lugar. Nessas horas, sempre acho melhor a gente cumprimentar do que fingir que não vê. E direito, como manda o figurino: perguntar se está tudo bem, dar beijo, tudo. Completinho. Quem sabe assim a minha memória não dava um clic?
Ele olhou firme para mim.
- Oiii.
Eu sorri.
- Alô. Oi.
Nem pensei duas vezes, fui direto na direção dele. Ele já tinha me dito até “oi”, não era? Então dei um beijo de um lado do rosto, e logo em seguida um outro beijo de outro lado do rosto, como deve ser. Toda feliz da vida.
Ichiii.
Que equívoco. Percebi que ele ficou um pouco acanhado, pois até estremeceu. Gaguejou um pouquinho e levantou os braços lentamente. Numa das mãos ele tinha uma garrafa de bebida, na outra umas taças, encaixadinhas entre os dedos. E, ainda sorrindo mas meio sem graça, continuou:
- A senhora... aceita um pró-seco?
Céus. Era um garçom.
Menos, mãe...
Céus. E ele ainda me chamou de “senhora”!
Menos, mãe, menos.
Ir nessas festas modernérrimas dá nisso. É um verdadeiro perigo para uma mulher da época dos “gatos”. Tanto os garçons como as garçonetes se parecem demais com os convidados. Usam roupas desenhadas por estilistas, são modelos, malhados. E em geral são dez milhões de vezes mais lindos e elegantes que você, o que, se a gente pensar bem, é bem irritante. Qual o problema dos garçons de antigamente, com cara e roupa de garçom mesmo?
Nesse dia eu fiquei muito envergonhada com minha caipirice, confesso, e passei o resto da festa tentando sumir. Desaparecer. E pior, na maior pró-secura. Não tive a menor coragem de aceitar outro pró-seco de quem quer que seja, conhecido ou não.
Tudo bem. Depois disso, aprendi: em festas com muita modernice, sou a maior “menos” desse mundo.
Agora, ô turma da moda. Vamos combinar uma coisa, por favor. Quando vocês desenharem uma roupa de garçom, avisa os convidados, tá? Sei lá, coloca a descrição no convite da festa, ou uma foto no cardápio, põe um crachá na roupa, qualquer coisa.
Acho que todas as “senhoras” da turma dos “gatos” agradeceriam...

quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

o pêndulo do relógio da meia noite



Não me lembro quantos anos eu tinha, mas eu era criança. Estava na cozinha, onde estava sendo preparada a ceia de fim de ano.
Minha mãe sempre gostou muito de cozinhar e fazer festas, principalmente quando meu pai era vivo. Ela se desdobrava sobre as panelas, criava recheios, inventava doces, salgados, carnes, molhos, farofas. Potes com ingredientes incomuns ficavam espalhados pela cozinha: nozes, passas, frutas cristalizadas, cerejas. Sob panos de pratos, em assadeiras, estranhas comidas: um peru costurado, um lombo amarrado com barbante, uma carne rosa lambuzada de mel e espetada com cravos. Minha mãe saracoteava daqui para ali dando ordens e falando sem parar.
Nesse dia eu estava animada. Como o reveillon seria na nossa casa, naquele ano poderíamos participar da festa. Dormir depois da meia noite era uma aventura e aquela seria a primeira vez. Ganhamos até roupas, eu e minha irmã: uma espécie de mini blusa e uma saia enrolada, estilo sarongue. Parecia muito chique aquilo.
Queríamos ficar ali, assistindo. Pedíamos para comer um pouquinho do pudim, para ganhar as aparas do bolo, para beliscar um pedaço de carne. Era muito legal a cozinha.
- Pronto, agora chega – disse minha mãe, dando um pote de suspiro para rasparmos – e não venham me pedir mai coisa que estou ocupadérrima.
Eu estava numa cadeira de palhinha, numa mesa próximaà parede onde havia um relógio. Era um relógio verde, quadrado, de fórmica. Foi quando minha mãe olhou as horas e se lembrou de uma coisa.
- Ah, lúcia! Já que você está ai, faça alguma coisa de útil.
- O quê.
- Sobe na cadeira, abre o relógio e dá corda. A chavinha está em cima da tampa.
Subi na cadeira. O relógio abria por baixo, levantando-se a tampa.
- Achou a chave?
- Achei.
- Abriu?
- Abri.
- Agora páre o pêndulo com a mão.
Olhei para o relógio pelado ali na minha frente, com todas as engrenagens à mostra. Em baixo do local onde ficavam os números estava o pêndulo, uma peça pesada, com uma bola chata de ferro e um espeto comprido em baixo dela. Tudo aquilo ficava escondido dentro da caixa-roupa. Agora o relógioe stava nú. Segurei a bola.
- Pronto. Já parei.
- Isso. Agora pegue a chavinha e dê corda. O furinho para dar corda fica bem no meio dos números, está vendo?
Trec, trec, trec.
- Já dei, mãe.
Era ótimo poder fazer alguma coisa pelo reveillon. Minha mãe suspirou.
- Imagina esse relógio parar e ficarmos sem “meia noite” no reveillon – ela disse, rindo – Isso, agora balançe o pêndulo bem devagarzinho, feche a tampa, guarde a chave e desça daí.
Balancei o pêndulo, ia fechar a tampa e ...
Olhei de novo para o relógio para ver se o pêndulo ia se mexer para ambos os lados.
Nossa.
Cadê o pendulo? Eu tinha acabado de encostar nele e ele não estava mais ali.
Foi quando eu senti a dor. No pé. Mais especificamente, no dedão do pé. Uma dor fortíssima. Olhei para baixo e vi o pêndulo, que outrora estava pendurado no relógio, no meu pé, com seu espeto em forma de agulha fincado bem no meio da unha do meu dedão.
Comecei a berrar.
O meu pé, o meu dedo, a minha unha, o pêndulo.
- Aaaaa!
- Que foi meu Deus do céu? Desce daí, filha! O que foi? O que foi?
- Aaaaa!
Então começou a acontecer uma coisa engraçada. Eu não conseguia sair dali simplesmente porque meu pé não saia do lugar. O pino pontudo do pêndulo pregou meu pé no assento da cadeira de palhinha e eu fiquei grudada. Quando percebi que estava furada de um lado a outro, gelei.
- Desce filha! – gritava minha mãe, me levantando no colo e carregando a cadeira junto.
- Aaaaa!
Minha mãe passou a me arrastar, eu arrastava o pêndulo, o pêndulo arrastava a cadeira pela cozinha, numa gritaria sem fim, até alguém puxar o pêndulo com força e me desgrudar dali.
Fomos para o pronto socorro, estragando a festa, a preparação, a arrumação. Lá ficou comprovado o óbvio – o pino do pêndulo furou a minha unha, a carne, o osso, a carne de novo e saiu pelo lado de lá.
A cadeira de palhinha ficou com a marca do furo por anos e anos, até ser reformada. Passei o reveillon de sarongue e pé enfaixado. O furo cicatrizou, a unha cresceu, o pêndulo que me furou voltou para o mesmo lugar, como se não fosse com ele, e continuou oscilando para cá e para lá, fazendo a meia noite acontecer por anos e anos, até quebrar e ser jogado no lixo.
E dessa história só sobrou... essa história.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

uma matéria importante




Hoje saiu no Caderno Metrópole do Estadão, como se fosse uma matéria, uma carta do Zé. Levamos um susto, pois ele mandou apenas uma... uma... carta para o Estadão, e quando vimos tínhamos na frente uma matéria de seis colunas, grandalhona, importante.
Hummm.
O texto fala por si, mas é sobre um assunto interessante e importantíssimo. Na verdade, é mais que isso. O que temos que ver nesse assunto é a forma de entendermos a cidade, a forma de entendermos a pobreza e a miséria. Não é segregando. É integrando.

Favelas podem ajudar a desenhar novas cidades
URBANISMO

Sobre o editorial 'O modelo de Heliópolis', publicado no dia 14, o arquiteto José Armenio de Brito Cruz enviou a seguinte carta: 'É positiva a iniciativa deste jornal em pautar este assunto, e por 2 vezes nesta semana, que entendemos como primordial no estudo da situação das nossas cidades. Se enfrentadas seriamente pelo poder público (como defende o editorial), as chamadas habitações subnormais, frutos de ocupações ilegais e consideradas por muitos o problema das nossas cidades, serão o caminho para o desenho de novas cidades, justas, democráticas e pacíficas.
Há 7 anos trabalhamos com e para comunidades das chamadas 'favelas' inclusive em Heliópolis. Como arquitetos, que trabalham e emprestam o conhecimento à formulação de demandas e soluções, entendemos que a postura do poder público frente a estes territórios deve ir além de oferecer o passaporte da chamada 'inclusão' social por meio do assistencialismo ou da viabilização do direito à propriedade.
As situações urgentes e o direito à propriedade devem sim ser atendidos, mas em uma perspectiva do desenho de uma nova cidade. Uma cidade que aprende com as lições de solidariedade destas sociedades (ou comunidades como se queira chamar) e desenha novos espaços, novas densidades e novas relações. A situação vivida nas nossas cidades mostra que é urgente a busca de novos modelos. Exemplos internacionais que pautam a sustentabilidade, o respeito ao meio ambiente mostram que esta é hoje uma preocupação mundial.
A quebra dos guetos é hoje um paradigma assumido por urbanistas de todo o mundo na construção de uma sociedade menos violenta e mais solidária. O modelo segregacionista que ainda hoje orienta o desenvolvimento das nossas cidades precisa ser rompido. Os exemplos de gestão de desenvolvimentos imobiliários em Vancouver (Canadá), o movimento dos Novos Urbanistas americanos (CNU, EUA) ou a pauta territorial do desenvolvimento responsável da rede Smart Growth atestam a preocupação mundial na mudança de rumo para as políticas públicas de habitação e de desenvolvimento territorial e urbano.
Exemplos como o de Heliópolis em São Paulo, ou de alguns movimentos por moradia, podem construir algo além do que foi engendrado, como por exemplo, no programa Favela Bairro no Rio de Janeiro. A pauta hoje é o rompimento das barreiras que caracterizam a favela como 'não-cidade'.
O desafio hoje é a integração destes territórios à nação. E o risco (dependendo do desenho, da atitude) é o de aprofundarmos ainda mais o abismo social que vivemos. Os ocorridos recentes do Rio atestam isto. A questão é territorial e nacional. A questão não é isolada.
O problema da favela é problema dos bairros de classe média ou das elites. Na ótica do território, a favela é o outro lado da moeda do condomínio fechado, da insegurança nas ruas dos bairros de classe média e do shopping center. Acontece que a moeda é uma só; a sociedade é uma só e precisa encontrar códigos de convivência ou caminhará para uma situação cada vez mais violenta.
Estes códigos passam por desenhos. Por exemplo, o direito à propriedade não é necessariamente o direito a um lote no formato conhecido hoje. Recentemente, o prefeito de Barcelona, em visita a São Paulo (conforme noticiado por este jornal) mencionou ironicamente que lá (em Barcelona) não poderiam se dar ao 'luxo' de planejar com índices de densidades populacionais usados aqui em São Paulo. Não há economia urbana que se viabilize com o grau de horizontalização e conseqüentemente os baixos índices de densidade que vivemos na cidade.
As experiências em Heliópolis atestam que, muitas vezes, os próprios moradores tem esta compreensão tanto para sua moradia quanto para os espaços de convivência coletiva. Ainda assim, o poder público insiste em reproduzir por vezes modelo já ultrapassados de cidade.Outro aspecto, também visto em Heliópolis, é que a organização da demanda, por parte das associações existentes, ultrapassa em muito a capacidade do poder público do seu atendimento. É conhecido o valor retido nos órgãos de financiamento público para habitação. É também sabido que o déficit habitacional empurra grande parcela da população para a ilegalidade. Cumprimentamos novamente este jornal, certos de que se houver diálogo com mais comunidades, organizadas social e politicamente como a de Heliópolis, e se houver disposição para romper o modelo segregacionista que orienta o desenvolvimento das nossas cidades, estaremos construindo um país mais justo a cada dia. Parabéns pelo editorial.'

estou de volta



Hoje pela manhã fui tirar as fotos do natal da máquina quando achei, de presente, no meio das "minhas" fotos natalinas, essa pequena "foto-gracinha" que alguém tirou na surdina, num momento que abandonei a máquina.
Quem fez isso com livro do Vlado? Um dos meninos? Um dos meus primos? Um dos meus tios? Minha irmã?
Agora é tarde para averiguar. A festa já acabou, né?

sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

problemas...

... por motivos de força maior, acho que a franka só volta a postar domingo ou segunda.
beijos e feliz natal!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

FRANKA MENTE de novo



Ontem passei em frente ao Shopping Higienópolis, aqui em São Paulo, e dei de cara com um shopping coberto de luzinhas, com as árvores cobertas de luzinhas, com as ruas cobertas de luzinhas, os postes, os prédios vizinhos cobertos de luzinhas, o quarteirão todo coberto de luzinhas. Eu não sabia o que olhar primeiro. Não reconheci nada, logo eu, que já morei cinco anos naquele bairro. Nunca vi um natal com tantas luzes de natal. Impossível não reparar nelas.
Coisa estranha. Nem soube dizer, numa primeira instância, se aquilo era bonito ou feio. Aliás, sei. Achei bonito, como uma criança que olha um coisa que brilha pela primeira vez. Existem coisas no mundo, como rostos de bebês, cachorrinhos pequenos e luzinhas de natal que são sempre cativantes. Uma vez eu li que esse sentimento de “fofura” vem dos gens dos ancestrais por algum motivo relativo à preservação da espécie.
As luzes de natal, de uns anos para cá, passaram a contornar prédios, árvores, canteiros, postes. E no escuro criam outros espaços, imaginários, que não vemos de dia. Hoje em dia muitas árvores de natal são feitas somente de luzes, invisíveis de dia.
Ontem também vi na tv que, em algum lugar do nordeste, existe uma porcissão de barcos com luzes de natal. A coisa era fantástica, aquele monte de barcos a vela iluminados no horizonte. Mas quando a câmera se aproximou, notei. Epa. Não eram todos a vela. Um deles era uma lanchinha com uma vela “falsa”, de luzinhas.
Foi quando eu entendi. As luzes de natal recriam novos espaços com seus contornos. Olha que coisa fantástica. Elas contam outra história, ficcionam, inventam, selecionam partes de um espaço para que vejamos somente o que interessa, o que é bonito, o que é natal.
Mais mentira, impossível.
Pura literatura, as luzes de natal.
Isso vem a calhar essa semana, quando participei de uma polêmica no blog do Ivam. O Ivam é meu amigo, ator de teatro e escritor. Tem um blog muito bacana, chamado Terras de Cabral, onde coloca seus textos, trechos de peças, desejos, memórias. Pois bem, como o Ivam sempre fala em primeira pessoa, ele contou que vem recebido muitas críticas de gente assustadíssima com uma certa ‘pornografia’ do blog, gente que, segundo ele, reprova a atitude dele de escrever o que bem entende. Teve gente que disseque o blog dele era pornográfico, nervoso, exagerado.
Tive vontade de rir. Um blog, pornográfico? Exagerado?
Ora, todos são, sempre!
Blogs são sempre textos. E textos são ficção, são palavras deliciosamente inventadas, criadas e selecionadas por quem digita. Nunca li um blog achando que aquilo é verdade ou que é o diário intimo de alguém. Blogs são literatura, ou tentativas de chegar a isso. Queiramos ou não, são irreais e devem ser encarados assim. Mentimos, inventamos e criamos aqui. Essa é a mágica.
Acho que os blogs são como as luzinhas de natal. Selecionamos somente o que é bonito, o que queremos contar e recriamos uma nova vida.
Uma vida que brilha como brilha com nossas luzinhas.
Esse post é para dar uma força pro Ivam. Para ele se iluminar ainda mais, se tornar mais brilhante, lindo e pornográfico, se esse for o caminho para evitar a mediocridade e a hipocrisia.
E para quem ainda se impressiona, eu já disse, blogueiros mentem, escritores mentem.
Até franka mente.

terça-feira, 20 de dezembro de 2005

... “finalizando” a relação...



- Posso te dar uma idéia para uma crônica?
Era um amigo meu, numa dessas happy hours de final de ano onde a gente volta rouca, com cheiro de cigarro e chopp.
- Todo mundo deve te dar idéias, não é, lúcia? Deve ser uma encheção.
- Não, não é não.
Na verdade, muito pouca gente entende o que é uma idéia de crônica. Uma idéia de crônica não é uma história ou um caso, necessariamente. É uma coisa que a gente percebe, que se liga com alguma outra coisa que necessariamente não tem a ver com a primeira coisa, mas que faz sentido e principalmente tem graça.
- Fala a sua idéia – pedi à ele, curiosa.
- A questão é a seguinte: antigamente, como você desligava as coisas?
- Como assim?
- Como você desligava coisas que ligavam, como rádios, tvs, ferros de passar, liquidificadores, calculadoras?
- Girava ou apertava um botão. “Plec”.
- Isso. Perfeito. “Plec”. Ou “tic”. Ou “tluc”. Um único barulho. Um único botão.
- Isso. E daí?
- E quanto tempo levava?
- Para desligar? Ora. O tempo de girar um botão. “Plec”. Um segundo.
- Ahá! – ele exclamou, animadíssimo – Tá vendo?
- Não tou vendo nada. Onde está a idéia de crônica?
Ele recostou na cadeira, sorriu e suspirou fundo.
- Está justamente ai. Hoje em dia as coisas não desligam mais com um “plec”. Desligam com... escândalo.
- As coisas fazem escândalo? Como assim?
- Olha, vamos supor que você está numa reunião com um monte de gente e esqueceu de desligar o celular. De repente, você se lembra disso. Você, quietinho, pega o aparelho do bolso e aperta o botão de desligar.
- Tá.
- Olha, lucia, o seu eu não sei, mas o meu faz um escarcéu polifônico insuportável. É um vexame total – e ele imitou, cantando alto – “titiririri- riririri- ririruimqui- quim”!
- É mesmo...
- Um alvoroço, parece um alarme de incêndio. Parece o final de uma apresentação de uma orquestra sinfônica, só falta um maestro rodopiando para chamar mais atenção. Custava ser discreto? É como se ele não quisesse desligar, o desgraçado. Aliás, repara. Tudo é rápido num celular, menos o botão de desligar: você tem que segurar mais de um minuto, apertando com força e quase quebrando a unha. O ato de desligar um celular no mundo moderno é materialização do gerúndio: você realmente “vai estar desligaaaaando” o telefone.
Eu ri. Ele continuou.
- Outro dia passei um vexame danado no cinema. O aparelho, além de avisar para todos que “ia estar desligando”, ainda acendeu as luzes, me iluminando. Tentei abaixar o som e, no escuro, aumentei mais ainda.
- Já passei por uma situação assim – me lembrei, rindo e me lembrando – eu, por exemplo, não consigo desligar Ipod. Minha filha falou “mãe, esquece e abandona que ele desliga sozinho daqui a pouco”.
- E os computadores, já reparou? – ele prosseguiu, animado quando percebeu que sua idéia de crônica, além de uma boa idéia de crônica, estava virando uma idéia de assunto - O meu, quando eu digo para ele que vou desligar, resolve fazer um monte de coisas, parece que de propósito. Atualizar o Windows, atualizar o antivírus, retirar os ícones não utilizados... Além disso, quando realmente desliga, depois de horas, lá vem a sinfonia. Tororororóum! Para a casa inteira ou o escritório inteiro ouvirem o que você acabou de fazer. Para quê isso? Desligar essas máquinas é pior que acabar casamento. Daqui a pouco elas vão querer discutir a relação. Ou será que essas coisas foram feitas para não ser desligadas?
Foi quando uma outra amiga que ouvia tudo ali ao lado interveio.
- Ah. Arranca o cabo, como eu. Quando “eles” começam a demorar, eu venho e nhaca. Arranco o cabo do meu notebook. Desgraçado. Acha que eu tenho todo tempo do mundo?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

dentro dos canos



Morei muito tempo da minha vida em apartamentos. Nasci em um, fui criança em um, quando era menina meu pai tinha até um outro apartamento para as férias em São Vicente.
Lembro de uma sensação engraçada. Eu, criança, deitada na cama e pensando quantas pessoas estavam dormindo em cima e em baixo de mim no nosso prédio. Eu morava no terceiro andar, o prédio tinha onze. Conhecíamos todos os moradores, meu pai comprou o apartamento “na planta”. Imaginar que eu estava empilhada sobre outros seres humanos como minhas roupas na gaveta era muito estranho. Mais estranho era pensar nas pessoas que estavam em cima e em baixo e mim, óbviamente todas conhecidas.
Depois que me formei arquiteta aconteceu outra coisa curiosa. Quando você vê as coisas em planta, como os arquitetos fazem o dia todo, é inevitável não se lembrar, por exemplo, que a cabeça da tua empregada dormindo está a menos de 50 cm do seu filho ou coisas assim. Uma vez tive uma cliente que, quando viu a planta da casa que tínhamos projetado, notou que o banheiro da empregada encostava parede com parede com o closet do marido. Deu um chilique em mudou o desenho todo, não adiantou o marido argumentar que era possível fazer uma parede mais grossa, com tratamento acústico, com o caramba a quatro. Ela foi categórica, nem pensar. Não conseguiria morar num lugar onde a empregada ficasse pelada tão perto do marido dela, que também poderia estar pelado no closet.
Mas a sensação mais estranha que tive sobre essa coisa de morar em apartamentos surgiu depois que eu passei a fazer e gerenciar obras. Tive que acompanhar muitas reformas de apartamentos e entender toda a infraestrutura. Bem, se você prestar atenção, não são somente as camas das pessoas que moram em apartamentos que são empilhadas. São os fogões, as geladeiras, as privadas, os chuveiros, as tvs, as roupas. E para tudo isso funcionar direito, todas as tubulações dos apartamentos de cima e de baixo do seu, queira ou não, passam pelo seu. Ou seja, a água do prédio todo que está na caixa lá em cima desce por uma parede da sua casa, o ralo do jardim da cobertura desce por outra parede, e pode ser que, numa das paredes do seu quarto, pertinho da sua cama, esteja um enorme cano de esgoto onde passam as fezes e excrementos de todos os seus vizinhos de cima.
Argh.
Não acham que isso é meio nojento?
Meio nojento?
Beeem nojento.
Surtei. Até conseguir as plantas de hidráulica do prédio onde eu morava na época, passei a escutar as paredes, desconfiada. Mudei a cama de lugar, troquei o sofá de lado na sala. Olhava desconfiada para os vizinhos no elevador. Tudo por causa dos canos de esgoto.
Um tempo depois de perceber isso, resolvi não morar mais em prédios. Não que eu não volte, claro que isso não é definitivo. Mas vou sempre prestar bastante atenção onde coloco a minha cama.
Para que meus sonhos não entrem pelo cano...

sábado, 17 de dezembro de 2005

a lembrancinha

(caramba, eu adoro essa crônica... e todo ano sei que vai ser a mesma coisa)

Dia de natal, festa de família.
Todas festas de natal de família são meio parecidas. Existe um ritual que todas as famílias respeitam. A ceia, o peru, os doces, a árvore, os presentes.
E é sobre eles que eu queria falar. Os presentes de natal.
Na minha família todos dão presentes uns aos outros. Todo ano é uma trabalheira para comprar aquele montão, mas, como dá vergonha receber e não ter nada para dar, todo mundo presenteia todo mundo.
Chegamos na festa com aquele monte de sacolas. A árvore fica entulhada, o chão fica intransitável, as crianças, curiosas, mexendo nos pacotes. Conversamos. Ceiamos. Sobremesa. E enfim, chega a hora dos presentes.
Aí que começa. A farta distribuição das... "lembrancinhas".
É isso que eu não entendo. Juro. Esse negócio de lembrancinha. Já falei delas aqui outro dia, mas no natal a coisa fica insuportável. Elas se proliferam, e, quando você menos espera, está com dúzias de "lembrancinhas" nas mãos. O problema é que as tais “lembrancinhas” nunca vem sozinhas. Junto delas vem sempre uma pessoa se desculpando e justificando o motivo de te dar uma coisa tão inútil. Não sei, mas parece que lembrancinha não é presente de verdade.
— Olha, é só uma "lembrancinha", hein? Coisa de nada, não repara!
Peraí. Além de dar um presente que não é um presente, e sim uma reles "lembrancinha" de nada, quer dizer que o presenteado não deve nem reparar nela? Nem... olhar para o presente? Escuta, se o presente é mixuruca e se você nem deve gastar teu tempo passando os olhos por ali, porque é que a pessoa te deu?
Eu tenho a maior vontade de responder:
— Ah, é? É coisa de nada mês-mo? Jura?
E, zummm, jogar o presente para trás, como se fosse lixo.
— Fica tranqüilo. Nem reparei.
Esse ritual acontece há anos, repetidamente, em todos as famílias, não é só na minha. Acho que somos todos malucos. Pensa uma coisa. O teu parente faz uma lista de presentes, sai de casa, vai numa loja, enfrenta fila, trânsito, paga estacionamento, escolhe um presente, manda embrulhar, paga, leva até a festa, dá e te avisa:
— Olha, é uma porcaria. Nem olha.
E o pior é que temos que agradecer na escala oposta, exagerando, como se aquele presente fosse o máximo dos máximos. Haja adjetivo para inventar.
— Uma mini caixa de costura de bolsa! Maravilha, adorei, é tão útil, tão gracinha, tão adequada, tão colorida, tão prática, tão artesanal, tão diferente, tão fofa, tão necessária, tão bonitinha...
Acho única frase verdadeira nessas horas é a resposta que a gente dá quando ganha a tal da "lembrancinha".
— Ah, obrigada! Não precisava!
Isso sim é perfeito. Não precisava mesmo. Não é?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

trinta anos



Eu não conhecia aquele engenheiro. Estávamos finalizando uma reunião quando ele avisou que viajaria na semana seguinte.
- Vai tirar férias com a família? – perguntei, curiosa.
- Não, vou viajar de lua de mel com minha namorada nova. Eu me separei faz três meses, depois de um casamento de trinta anos.
Eu dei um pulo para trás.
- Nossa. Trinta anos de casado e você se separou? Que pena...
- Pena? – ele se espantou – Porque pena, lúcia?
Eu fiquei com cara de tacho. Não sabia o que falar.
- Sei lá, é que trinta anos é tempo, e um casamento de trinta anos...
Ele me interrompeu, seríssimo.
- Olha. O meu casamento de trinta anos foi um “puta*” casamento, lúcia. Afinal de contas durou trinta anos. Se não fosse um “puta” casamento, não duraria trinta anos, duraria, sei lá, só um ano. Pensa sobre isso – ele me falou, sorrindo e guardando os seus papéis para ir embora rumo à lua de mel II.
Trinta anos.
Olhaqui, gente, assumo.
Ele tem toda razão e eu estou totalmente errada.
Essa é a diferença entre homens e mulheres. O meu comentário, aquele “que pena”, dito instantaneamente, é o comentário típico de uma mulher. Um ridículo e caricato comentário feminino padrão. Saiu sem querer, sem eu pensar, e é nele que mora uma verdade difícil de admitir. Eu e todas as mulheres do mundo, queiramos ou não, gostamos muito de um casamento. Queremos um casamento. Almejamos um amor eterno, comprido, cheio de brigas e reconciliações. Sonhamos em ser conchas, fechadas e trancadas com nossas famílias dentro das nossas casas.
Essa é a nossa natureza, e, nas horas que falamos sem pensar, sem reprimir, é isso que sai das nossas bocas. Eu sou assim, a namorada do engenheiro que está com ele há três meses é assim e que atire a primeira pedra qualquer mulher que não seja assim.
Já o meu colega engenheiro, do alto do seu status de homem-maduro-do-sexo-masculino, me deu um belíssimo esculacho com sua réplica. Sim, gente. Um casamento de trinta anos é um "puta" casamento, um grande casamento, um belíssimo casamento, um casamento de tirar o chapéu. E um casamento de trinta anos acabar é o de menos, gente. Realmente, depois de trinta anos de união, o término de um casamento não importa.
Acho que não é porque uma coisa tem fim que ela deixa de ser boa. Não é porque o casamento não foi eterno que devemos sentir “pena”. Existem bons casamentos de trinta anos, de dez anos, de um ano e de dez dias. Todos podem ser bons. Temos que parar de ser reféns da eternidade, precisamos abolir da cabeça a maldita frase que diz “e eles viveram felizes para sempre”. A noção da eternidade divide homens e mulheres. Por causa dela nós, mulheres, nos apegamos`a vida de tal modo que não permitimos que ela ande para frente.
Não precisamos viver felizes para sempre. Aliás, quem disse que quem vive junto para sempre é mais feliz?
* perdões pelo termo feio, mas fui fiel à fala do personagem.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

a piscina da Helena

(o pecus ontem falou de empregadas, piscinas e infância no post "severino e nair"e eu lembrei dessa história)

Chamava-se Helena, a empregada. Eu tinha uns 7 anos e minha irmã uns 5. Morávamos num apartamento em Cerqueira César, perto da Paulista e da Consolação. Toda quinta feira meu pai e minha mãe iam ao cinema e nós duas ficávamos em casa com ela.
A Helena era uma negra bonita, grandona, com uma boca enorme. Volta e meia dava enormes gargalhadas. Achava graça em tudo que acontecia, graça no que minha mãe falava, no que a gente falava, nas ordens que minha mãe dava.
Adorávamos a Helena.
A rotina das quintas era sempre a mesma. Jantávamos, a Helena tirava a mesa, lavava a louça e ia ver tv conosco na sala até as 10 horas, quando tínhamos que tomar banho e ir dormir. Meus pais chegariam logo em seguida, lá pelas onze horas.
A Helena sempre tinha sono quando ficava na sala conosco. Falávamos para ela sentar no sofá, mas ela preferia arrastar uma cadeira da sala de jantar, de espaldar duro, e ficava ali ao lado, como se estivesse num trono.
- No sofá eu durmo – ela declarava, bocejando sem parar e coçando os braços.
Aliás, gente com sono coça muito os braços, nunca entendi porquê.
Nesse dia não me lembro da Helena estar com sono. Aliás, acho que a nossa idéia acabou tirando totalmente o sono dela, pois ela ficou animadíssima. Completamente sem juízo, mas animadíssima.
Qualquer adulto que ouvisse aquela idéia de girico de duas crianças, uma de sete e uma de dez anos, mandaria as duas catar coquinho. Qualquer adulto com um mínimo de bom senso perceberia que aquilo não ia dar certo. Mas a Helena achou a maior graça e disse que a idéia era muito boa.
Foi minha irmã que inventou a coisa. Ao invés de tomarmos um banho de banheira, ela sugeriu que tomaríamos um banho de... banheiro.
Seria o seguinte. Taparíamos o ralo da banheira com uma tampinha, o ralo da pia com uma tampinha e o ralo do bidê com uma tampinha. No ralo grande do chão, colocaríamos uma tampa de um pote e seguraríamos com o pé, sentadas no bidê. Embaixo da porta colocaríamos toalhas. Ligaríamos todas as torneiras e assim transformaríamos nosso banheiro em... uma enorme piscina!
Em questão de segundos convencemos a Helena, que, além de dizer que daria certo, sugeriu que colocássemosaté maiôs.
Executamos o plano e ficamos esperando a nossa "piscina" encher. A pia transbordou, o bidê transbordou e a banheira transbordou. A Helena se encarregou de pisar na tampa do ralo grande e o banheiro começou a encher.
Gente do céu, o pior é que a coisa estava dando certo.
Obviamente parte da água começou, sem que nós percebêssemos, a sair por debaixo da porta, através das toalhas. Assim a água escorreu para o corredor, para a sala, para a cozinha, para o hall da sala, para o hall do elevador, para o elevador...
Só sei que quando meus pais chegaram e foram pegar o elevador escorria água pelo poço. Uma cachoeira pingava sobre eles, sobre as portas dos halls. De onde viria aquilo, eles se perguntaram? Jamais imaginariam queseria do apartamento deles.
Já nós estavamos em transe. Aquilo era demais. A casa estava encharcada, mas lá dentro, na “piscina”, estávamos na maior alegria com com a água nas canelas. Minha irmã nadava, eu pulava, a Helena batia palmas. Pena que no meio da farra começamos a ouvir uns berros desesperados.
Levamos uma grande, enormíssima bronca, eu, minha irmã e a Helena, que não foi despedida. Aliás, acho que ela nunca se sentiu arrependida de ter feito aquilo. Ela não entendeu que “encher” o banheiro estava errado – achava que o errado foi não ter conseguido manter a água lá dentro. Me lembro dela ainda encafifada na quinta feira seguinte, coçando os braços na cadeira dura. Porque aquela água saiu por debaixo da porta...?
- Acho que aquela toalha é uma porcaria, sabe? Veíiinha, puída... Devíamos ter colocado uma mais grossa...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

os dentes de noel


Bom, eu não agüentei.
Espero que ele, o meu dentista, não ache ruim, mas um cartão de natal desses merece um post. Tive um acesso de riso hoje pela manhã ao abrir o envelope. Nem ia falar sobre isso, mas mudei de idéia e resolvi falar sobre papais noéis, dentistas e blogs. Aliás, aconselho a todos a linkarem e visitarem um ótimo (e talvez único) blogueiro-dentista, o mr. teeth, do blog Al Dente.
O nome não é genial?
Mas ATENÇÃO: o mr. teeth não é o meu dentista e nem esse ai da foto, não confundam!
Bom, esse é o meu dentista da minha infância e o cartão de natal que ele inventou e mandou para todos os pacientes. Gostei muito da ingenuidade da idéia - pouca gente é bem humorada com sua profissão e sua imagem. É como se ele, o dentista, fosse um pouco irreal, como o papai Noel. Fiquei imaginando diversos amigos meus mandando cartões de natal com o velhinho: advogados com ele no escritório, médicos com ele na sala de cirurgia, engenheiros com o papai noel em cima da laje, psicólogos com o Noel no divã.
Mas voltando ao velhinho, li na revista da TAM na semana passada que, na verdade, essa imagem do papai noel que a gente cultua veio de uma propaganda da Coca Cola dos anos vinte. Até então o papai noel era apenas um velhinho de camisolão ou um duende, um ser imaginário sem imagem definida. Sugeriram à um desenhista que criasse um papai noel para um anúncio do refrigerante, e ele criou um senhor com a cara dos parentes dele e com roupa da cor do logotipo da coca.
Ô tristeza. E eu que achava que ele vinha das fábulas.
Estão vendo? O consumo está a cada dia mais acabando com os nossos sonhos, e o papai noel tomou tanta coca cola que está com os dentes todos estragados.

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

o chicletinho




Fui convidada para ir com um amigo assistir à um espetáculo de teatro no sábado. Era uma encenação de um texto muito bonito, feita por um ator maravilhoso.
Sem querer, sentou ao meu lado o diretor geral do local onde a peça era encenada. Pelo que notei, ele era um cara importante naquele lugar e para todas aquelas pessoas. Bem que percebi que aquele lugar à minha direita estava reservado para alguém pois um rapazinho no corredor não deixava ninguém sentar ali. Bastava alguém se aproximar que ele cochichava alguma coisa e a pessoa se retirava.
Um tempo depois o diretor importante apareceu. Cumprimentou todo mundo ao redor, inclusive a mim, a vizinha de cadeira, como fazem os famosos, políticos e chefes. Todos se aprumaram, cumprimentaram o homem e as luzes se apagaram.
A peça começou. Maravilhosa. O tempo passava e eu estava a cada instante mais encantada com a interpretação e com o texto.
Mais ou menos no meio do espetáculo, senti um gosto ruim na boca. Hum. Eu tinha exagerado na cebola no almoço. Que nojo. Suspirei e olhei meu amigo ao lado. Melhor nem falar com ele, pensei, apertando os lábios.
Credo. Odeio gosto ruim na boca. "Um chicletinho ia bem", pensei com meus botões.
Lembrei do meu amigo ali ao lado. Ele sempre me convida para ver peças com ele, pois ganha muitos ingressos, mas um dia confessou que odeia pessoas que comem em espetáculos, cinemas e teatros. Ele acha que balas e chicletes fazem barulho e diz que é o fim da picada desrespeitar os atores e a produção.
Bem, eu nunca disse para ele, mas desde menina que sou ta-ra-da por uma bala frutela no cinema. Cinema sem bala frutela, para mim, é o fim da picada. E o que tem de mais? Bala frutela não é igual a tic tac que faz barulho, nem é como pipoca que emporcalha tudo. Bala frutela é uma guloseima completamente inócua.
Lembrei do chicletinho trident também inócuo que eu tinha na bolsa e olhei de soslaio para ele. Não, não ia pegar bem. Ele jamais concordaria. Se eu quisesse comer aquele chicletinho, deveria ser... escondido.
“Trident não faz barulho para abrir. Se eu conseguir pegar sem ele perceber, dou um jeito de enfiar na boca”.
Respirei fundo e comecei a operação. Primeiro arrastei minha bolsa, que estava pendurada no encosto do lado esquerdo da cadeira para o lado direito, o lado do diretor.
Avaliei a bolsa que eu usava aquele dia. Uma bolsa saco, dessas que estão na moda, sem zíper nem fecho. Ela tinha apenas um cordãozinho no meio para amarrar. Perfeita. Respirei fundo e resolvi esperar um tempinho para não chamar a atenção.
Pronto. Coloquei a mão direita ao longo do corpo, um pouco para trás. Devagar, achei o vão da bolsa e lentamente coloquei a mão lá dentro. Eu não deveria fazer movimentos bruscos e nem barulho.
Chicletinhooo, chicletinhooo, cadê você...
Achei o molho de chaves. Certo. Um papel, devia ser o do estacionamento. Outro papel, mais duro, tipo um cartão de visita, uma moeda grande e uma pequena. Nada. Resolvi procurar em outra região. Achei uma carteira de couro, que comecei a tatear lentamente.
Porém a carteira não tinha fecho e tampouco era lisa como a minha. Era uma carteira gorda, cheia de coisas e de um couro bem crespo. Caramba, que era aquilo? Tateei mais ainda. Ei, mas aquela não era a minha carteira. E, se não era a minha carteira, aquele lugar...
Acho que foi nesse momento que percebi. Senti um calafrio e eu comecei a gelar. Se aquela carteira não era minha, então aquela bolsa não era a minha e então... então... eu estava com a mão...
Afe.
Eu estava com a mão dentro do bolso do paletó do diretor, que estava pendurado no escosto da cadeira dele, gente. E pior, estava segurando a carteira do cara, como se eu fosse afaná-la. Uma ladra, uma golpista, uma trapaceira. Senti um calafrio da cabeça aos pés. O que me deixou mais assustada foi aquele instante mínimo quando, ao não reconhecer a minha carteira, eu quase tirei dali para olhar com os olhos.
Tremendo toda, com o coração pulando pela boca, larguei a carteira do diretor bem devagarzinho e retirei minha mão. Respirei fundo. Foi como viver de novo.
Eu estava salva.
E ilesa.
Esqueci da cebola, do espetáculo, do chicletinho. A peça acabou, saímos dali e eu vi o homem de longe, do outro lado do saguão.
Bem, dizem que todo bandido volta a cena do crime, não é? Pois eu, como uma verdadeira bandida, confesso que senti um certo prazer em passar beeem pertinho dele de novo, olhando furtivamente para o paletó e para o bolso com a carteira polpuda que eu quase roubei.
Aliás.
Cuidado comigo, gente.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

os vícios



Fomos almoçar num restaurante tipo lanchonete, daqueles lugares caros e bem apessoados, com um espaço moderninho, cardápio planejado e hambúrgueres com bandeirinha em cima. Fui, mas sei que sou muito ridícula e cretina, pois esses lugares absurdos vendem hambúrgueres que podem ser encontrados em qualquer esquina pelo preço de um filé. Um contra senso tão grande como aquelas grifes que vendem jeans rasgados por mais de quinhentos reais.
Não entendo porque vou a esses lugares. Gastamos um tempão aqui em casa pensando onde almoçar acabamos escolhendo esse restaurante asséptico e sem graça. Eu deveria ser mais categórica nas decisões para dar exemplo aos filhos, mas morar na nossa cidade não é fácil e as decisões são determinadas por outras coisas além da minha razão: o medo de assalto, o lugar para parar o carro, o trânsito do natal, o negócio de aceitar cartão, a cozinha limpinha e toda transparente.
O mundo, as vezes, é meio besta, e a gente idem.
Bom, nesse restaurante havia duas alas. A da direita, dos não fumantes e a da esquerda, dos fumantes. Entre os dois, um pátio com uma enorme árvore.
Um lado podia olhar o outro através dos vidros, mas os dois locais eram incomunicáveis. Ou seja, do lado de lá ficavam os viciados, que baforavam sem culpa e do lado de cá, os puros, limpos, cheirosos. Que horror de lugar. Porque fazemos uma coisa tão cruel com nossos semelhantes? O pior é que eu, embriagada pela assepsia do ambiente e com minha exibição pós-abstemia, enchi o peito de ar puro e falei com ares superiores à moça da porta.
- Não fumantes, por favor.
Como se aquilo fosse melhor, como se nós fossemos melhores, como se eu fosse mais vencedora, mais poderosa. Como se eu fosse de uma raça superior à aqueles que não tiveram tanta força de vontade. Que absurdo. Se existiram povos que discriminavam por causa de religiões, raça ou cor da pele, agora discriminamos por causa da falta de... força de vontade? Olha, é um absurdo o que a sociedade faz com os fumantes. Ninguém tem culpa de ser fumante. Um dia nos foi oferecida uma oportunidade de ter status, de colocar alguma coisa na boca, de aspirar uma fumaça cheirosa. Viciamos. E agora temos que ser engaiolados a cada esquina, principalmente nesses restaurantezinhos da moda, tão limpinhos, assépticos e sem autenticidade e que fazem tanta propaganda de si mesmos como fizeram os donos das fábricas de cigarros?
E o pior de tudo sou eu, uma pseudo-mulher vitoriosa, que conseguiu parar de fumar sem remédio, sem ajuda, sem adesivos ou terapia, e que brada bem alto nas portas dos restaurantes, nos píncaros da sua vitória:
- Não fumante, por favor.
Que coisa mais ridícula e maldosa que é a nossa sociedade.
Eu acho que vício do cigarro não tem a ver, propriamente, com o tabaco. Tem a ver apenas com vícios em geral. Falo por mim. Acho que apesar de ter largado o cigarro, sou uma pessoa sedenta de vícios. É da minha natureza ser assim. É como se, na minha vida, faltasse sempre algum tipo de alimentação. Não comida, mas uma alimentação de prazer. Eu preciso me embriagar de alguma coisa para me sentir plena. Com o cigarro era fácil, ele vinha em doses mínimas, podia ser carregado e ser ingerido ao longo do dia, causava um certo torpor. O importante não era apenas onde colocar as mãos, era ter onde chorar a cada vinte minutos sem derramar uma lágrima para fora do pote.
Cigarros, gente, são ralos.
Depois que eu larguei, fiquei como quem perde um ente querido. O dia todo inundada de alguma coisa, sem ter onde colocar o que cai para fora. Passei a comer mais, passei a beber mais. Quanto à comida não há o que fazer, engordamos depois emagrecemos, já a bebida é mais complicada. Além de perigosa, só é vendida em doses máximas – se meia garrafa de vinho já me despenca, imagine uma de uísque, que nunca tomei. Na verdade, acho que tenho medo da plenitude da embriaguês. Ela é boa demais.
O que resta hoje? Um vazio e um prazer besta de me declarar não fumante e politicamente correta. Vez ou outra uma grande alegria, uma grande festa, um pequeno limite ultrapassado, e o prazer contido é aliviado.
No resto do tempo, o mesmo vazio nas salas de restaurante sem nenhuma fumaça.

sábado, 10 de dezembro de 2005

voar e rezar


Viajei muito esses dias. Na mesma semana fui para o Rio, Ilhéus e Itacaré. Aviões, carros, táxis, ônibus, muita espera, muita sacola carregada, cartões de embarque, “a senhora quer recibo?”, “janela ou corredor?”, embarque portão treze, a varig agradece.
Olha. Acho viajar a maior perda de tempo. Claro que é absolutamente necessário, impossível fazer e fiscalizar obras sem ir até elas, mas é uma maluquice o que se gasta de tempo para chegar ao destino. Das dez horas úteis de um dia, num dia de viagem trabalha-se três, quatro horas.
Mas não era sobre isso que eu ia falar. Eu queria falar sobre aviões e decolagens.
Notei antes de ontem. Eu já tinha essa sensação há algum tempo, mas nunca pensei a respeito. É uma sensação que acontece na hora da decolagem.
- É enjôo? – perguntou meu amigo engenheiro quando comentei com ele – tem gente que enjoa em decolagens e pousos.
- Não – retruquei – É uma sensação, digamos, mística.
Ele não entendeu nada.
Vou explicar. Numa das viagens dessa semana, por exemplo, estávamos num grupo grande. Sentamos todos perto e conversávamos animados. Eu contava uma das minhas histórias, empolgadíssima. Eu não conto histórias só aqui no blog, conto na vida real também, e como me envolvo de corpo e alma, não notei que o avião estava decolando.
Olha. Não dá para falar nessa hora, gente. Sei lá porque, nunca comentei com ninguém, mas meu inconsciente me diz que avião decolar é coisa muito, mas muito séria. Interrompi subitamente.
- Espera, gente. Estamos decolando.
Eu parei de falar, fiz o sinal da cruz e fiquei feito estátua de pedra na cadeira. Notei que os outros não levavam tão a sério a decolagem e ainda conversavam. Conversavam!
Descobri que sou uma pessoa incapaz de relevar uma decolagem. Devo ser a maior caipira, mas uma decolagem para mim é uma coisa sagrada. Eu sei que estou num vôo de carreira, num avião comum, que aquele vôo não é espiritual, mas minha mente se recusa a deixar para lá. Deve ser uma coisa ancestral, mas não consigo falar, rir, distrair ou conversar na hora que eu começo a ... levantar vôo. Na hora da decolagem minha mente me manda rezar e rezar e rezar. sem parar.
Voar é uma coisa sagrada, gente. Quer saber? Me emociono mais na hora de voar dentro de uma avião da TAM do que em igrejas.
Pronto, falei, perdões.
Acho que essas coisas de superstições têm a ver com os medos da gente. Eu devo ter medo de voar em todos os sentidos. Medo de voar nos textos, nos relacionamentos, nos trabalhos, na vida, no avião. Mas como é impossível não voar, em todos os sentidos, eu me entrego, vôo e... rezo.
Tenho certeza da mágica mística de um vôo, seja qual for. Acho e acredito – podem rir de mim – que um vôo sempre tem que ser rezado, abençoado e venerado. Voar não é para nós, humanos. É para os seres que ganharam asas de Deus. Sei lá quem, exatamente, é Deus. Mas rezem, assim como eu. Encolham-se, fechem-se e concentrem-se.
Voar é coisa de anjos.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

o dono da coisa que eu mais amo



Estávamos juntas na viagem a trabalho, aguardando o avião. Ela me disse que tinha que voltar cedo pois tinha o lançamento de um livro de uma vizinha.
- Vizinha, Mari?
- É. Mas não é livro de literatura, é livro de trabalho. Ela é psicóloga, escreveu uma tese que será publicada. Eu tenho que ir, pois como ela é vizinha, fica chato não dar um alô. A gente se vê todos os dias.
- Olha, a nossa reunião acaba as cinco. Dá tempo de sobra de pegarmos a ponte das seis, chegamos em São Paulo as sete e você vai no lançamento do livro da sua amiga.
- Já disse, não é amiga – ela lembrou com ênfase - É vizinha.
A Mari suspirou, e continuou a falar, pensativa.
- Essa vizinha... Não dá para ser amiga dela, ela é muito esquisita. Imagine que ela pegou emprestado meu livro de adestramento de cães, um livro que eu adoro, não sei porque fui emprestar, mas...
- Ela tem cães?
- Não, eu que tenho. Mas ela adora meu cão, é como se ele fosse dela. Me falou que queria ler o livro para entender melhor o meu cão.
- Vizinha estranha, Mari.
- Lúcia, você não viu nada. Eu não sou implicante, mas essa mulher é demais – ela contou enquanto esperávamos a chamada do vôo no saguão.
- Ela te perturba?
- Não é isso, vou te explicar. Primeiro que ela adora meu cão. Quando faz compras para ela, compra ração e biscoitos para ele. Ela adora quando ele vai à casa dela. Ela tranca a porta e demora horas para me devolver o pobrezinho. Eu fico em pânico mas não posso falar não, pega mal. Ela é minha vizinha de porta, entende?
- Ah.
- Depois ela tem uma mania de colocar uns nomes esquisitos nas pessoas. Acho irritante quando ela faz isso, pois me constrange, mas ela faz.
- Coloca apelidos?
- Mais ou menos. O meu cachorro, por exemplo, ela chama de “a coisa que eu mais amo”. Não é nome, é expressão, mas ela só chamao pobrezinho assim. Ela vem e me fala: “onde está a coisa que eu mais amo? Como vai a coisa que eu mais amo? A coisa que eu mais amo já foi passear hoje?”
- Engraçado.
- O marido dela ela chama de “o marido Ted”. Ela me fala assim “nossa, ontem o marido Ted chegou muito tarde”. Ou “preciso falar com o marido Ted”. Ele não é só marido nem só Ted. É “o marido Ted”. Até nas reuniões de condomínio ela cita o marido assim.
Ela suspirou e continuou.
- Já a filha ela chama de "minha princesinha". A moça nem mora mais lá, é casada e tudo, mas quando ela me conta da filha só fala assim: “minha princesinha hoje vai passar aqui para irmos ao shopping”. Outro dia encontramos o síndico na garagem e ela reclamou de um vazamento no banheiro da princesinha. O homem ficou olhando para ela com a maior cara de tacho.
- E você?
- Eu? Sou “a lindinha”. Mas o pior de tudo é como ela chama o meu marido.
- Como é, Mari?
- É que ela colocou um nome que tem um duplo sentido e ela não percebe, entende? Ouça. Como ela adora o nosso cachorro, então ela só chama meu marido de “o dono da coisa que eu mais amo”. E fala isso para os outros a toda hora, é um absurdo. Imagine alguém, numa reunião de condôminos, apontar seu marido e dizer: “quero saber a opinião 'do dono da coisa que eu mais amo'!”. Não é constrangedor?
Ouvimos a chamada do nosso vôo.
- Vamos, 'menina lindinha, mulher do dono da coisa que sua vizinha mais ama' – eu disse a ela, rindo – mas... escuta, Mari.
- Sim?
- Disse que ela é psicóloga e vai lançar um livro?
- É.
- Acho que você deve ir, comprar e ler esse livro. Essa coisa não me cheira bem. Depois você me conta do que se trata?

quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

o povo que inventa


(enfim! consegui colocar o carneirinho carneirão!)

Gente. Ontem eu não pretendia escrever uma crônica sobre uma conversa com um taxista. Ia escrever apenas sobre uma frase dita pelo taxista. Para me lembrar dela, escrevi a conversa toda. Mas achei a frase no final, e ela martelou na minha cabeça hoje sem parar.
É a seguinte:
- Cada uma que esse povo inventa...
Isso mesmo. Eu e o taxista paramos no trânsito da avenida dos Bandeirantes ontem à noite, olhamos para uma churrascaria onde acontecia um leilão de ovinos, ele apontou as gaiolas com os dois carneirinhos gordos e pelados, sorriu e me disse essa pérola de frase.
- Cada uma que esse povo inventa.
Olha. É sobre essa frase a crônica de hoje.
- Cada uma que esse povo inventa.
Não sei como ninguém falou sobre essa frase até hoje. É uma das melhores e mais bem humoradas frases do mundo moderno. Impressionante. É uma frase que tem um misto de espanto e graça, é uma frase com um extremo bom humor, dita por quem está de bem com a vida e nem ai com nenhum entendimento mais profundo, seja intelectualmente, politicamente ou socialmente.
- Cada uma que esse povo inventa.
Acho que perdemos a ingenuidade diante da vida. É muito triste não ser inocente tampouco singelo. Sabemos muito, isso nos torna ligeiramente ásperos com os fatos do cotidiano e rígidos e exigentes com nós mesmos.
Eu, por exemplo. Eu olhei aqueles carneirinhos no mesmo momento que ele e não achei graça nenhuma. Na verdade eu fiquei triste ao ver os bichinhos naqueles cubículos, fiquei pensando na gordura artificial daqueles seres disformes, entendi que eles deveriam ser carneirinhos reprodutores, especulei quanto deveria custar um galão de sêmem de carneiro. Olha. E a última coisa que eu pensaria seria na frase: “cada uma que esse povo inventa”.
Acho que o meu chofer de táxi vê o mundo como se fosse um enorme parque de diversões. Acha que na vida as coisas acontecem e, sem mais nem menos alguém inventa uma “coisa” engraçada para ele descobrir. Era exatamente esse o tom da frase. O tom da certeza inabalável de uma força da natureza que chega e se coloca diante dele. Chove, faz sol, as pessoas nascem, morrem e o "povo" inventa umas "coisas" para o chofer de táxi rir. Ele não pensa quem é esse povo e nem que aquilo não tem invenção nenhuma além da propaganda do negócio e uma grande vontade de um investidor de ganhar a maior grana. O povo inventa umas coisas e ele ri. Já eu não rio porque sei demais. Sei que não é isso. Sei que rir não é tão simples. Nós, que sabemos, rimos muito menos.
Muito menos.
Concluo que o chofer de táxi é bem mais feliz que eu. Nas conversas faz terapia, nas ruas ri das loucuras que o povo inventa.
A vida da gente bem que podia ser simples assim. Mas cada uma que esse povo inventa, né?

o taxista, o carneiro e a filosofia


Cheguei à noite, chovia em São Paulo. Peguei o táxi no saguão central. O aeroporto de Congonhas está a maior bagunça por causa da reforma.
O motorista era um senhor grisalho. Eu tinha comentado, numa conversa com um engenheiro amigo meu, como os motoristas de táxi se metiam nas conversas dos passageiros. Não tem uma vez que o motorista não sem mete na minha conversa ou até na conversa que estou fazendo ao telefone. Impressionante.
E ontem foi só chegar em São Paulo e entrar no táxi para a coisa acontecer de novo.
- Nossa, essa chuva... A senhora prefere ir por dentro ou por fora da marginal?
É o botão de start. É nesse instante que começa a conversa mole que rola para todos os lados.
- O senhor que decide, eu não tenho a menor idéia – respondi.
Ele era simpático. Me contou que trabalhava no ponto do aeroporto há mais de trinta anos, que até prestou concurso para entrar. Hoje é uma espécie de coordenador do local. Pelo que entendi, existe uma espécie de associação dos motoristas de táxi do aeroporto e ele é o terceiro homem em ordem de importância. Falou isso com orgulho. Disse que como o aeroporto está em obras, eles têm muita coisa para resolver. A localização dos pontos é muito importante para eles não perderem clientes, mas o ponto muda a toda hora pois o embarque muda de lugar. E depois tem o fluxo, que do modo que está vem causando um grande congestionamento na via. "Está complicado para resolver", ele explica.
- Mas o problema maior, moça, são os taxistas que reclamam. O resto eu tiro de letra – ele conta.
- Reclamam de quê?
- De tudo. A senhora sabe gente que reclama? Tem gente que reclama de tudo e principalmente das coisas que não tem como resolver. Isso que me atrapalha e incomoda. Os colegas que reclamam.
- São taxistas como você? Os que reclamam?
- Pior é que são. Por exemplo, para a senhora entender melhor. Estamos em obras e as obras existem para melhorar e atualizar o aeroporto. Vai ficar bom, bonito, eu sei, já vi os desenhos. Mas esses colegas não entendem. Atrapalham nosso trabalho e gastam um tempo enorme reclamando da reforma. Ô Deus, como reclamam.
- Ah. Eu sei como é.
- Não entendo como eles não percebem que não adianta nada. Reclamar é a coisa mais burra do universo. Eu, por exemplo. Eu não reclamo de nada - e ele começou a filosofar - Vamos supor que eu chego em casa e vejo que minha mulher mudou a mesa da cozinha de lugar. Eu olho a mesa e a mulher. Eu vou reclamar? Claro que não. Eu apenas sento na mesa e como o meu jantar. Se tem comida e tem mesa, está mais que bom. Não importa onde. A senhora entende?
- Entendi sim senhor.
- Mas eles não. Parece que para eles não basta ter comida e mesa. Eles discutem tanto o lugar da mesa, reclamam que está errado, ficam lembrando de antes e quase se esquecem de comer. E gastam horas e horas nisso.
- Moço, acho que é um estilo de vida.
- Pode ser. Mas atrapalha. Confunde. E enche – o homem, animado, resolveu filosofar mais ainda – É, a senhora tem razão. É um modo de ver a vida. Tem gente que resmunga e reclama sem parar de tudo! É mãe que reclama que filho dá trabalho, esposa que reclama da hora que o marido chega, trabalhador que reclama que tem muito trabalho... Por que será? Coisa estranha que é o homem, a senhora não acha?
- Acho que tem gente que gosta de reclamar, moço. O senhor reparou numa coisa muito, mas muito interessante. Eu também conheço um monte de gente assim. E também nunca entendi para que serve reclamar, sabia?
Foi quando passamos em frente a uma churrascaria onde se lia numa placa que ali aconteceria um leilão de ovinos naquela noite.
- Olha só, senhora, um leilão de carneiros! – ele apontou – e veja, colocaram alguns carneiros ali na porta!
Olhei. Era verdade. Dentro de dois engradados, na porta da churrascaria e no meio da chuva, da avenida e do trânsito, dois pobres e gordos carneirinhos pelados estavam parados e resignados.
- Cada uma que esse povo inventa... – falou meu motorista, rindo - Esses ai que deveriam reclamar. A senhora não acha?

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

relações perigosas


Começou há alguns meses. O meu filho menor, o João, ficou mais alto que eu. Desde então eu estou encolhendo a cada dia. Na verdade, adoraria estar encolhendo na largura, mas infelizmente é apenas na altura.
Sensação pra lá de estranha essa de ter filhos maiores e filhas mais peitudas que você. É uma relação física, que, queiramos ou não, influi no modo de educar ou cuidar. Acho que é a natureza e os nossos instintos em ação. Devo estar vivendo um momento histórico na minha vida de mãe.
Essa coisa da relação é muito engraçada. Lembrei de uma sensação que eu e o Zé tivemos, uma vez, numa estrada com um carro que não andava nada.
Foi assim. Na época tínhamos filhos muito pequenos e nossa vida era completamente atrapalhada. O Zé recebeu parte de um pagamento de um trabalho em um carro. Era uma Towner, uma espécie de perua Kombi mais fina e estranha, um carro engraçado mas enorme por dentro. Achamos aquele carro ótimo para nossa família tão cheia de filhos e tralhas e resolvemos viajar com ele antes de vender. Bem, aquele carro normalmente andava muito devagar, carregado então, não andava nada. Com o veículo cheio de crianças, carrinhos de bebê, malas, sogra e comidas, estávamos a ... sei lá, acho que a uns quarenta quilômetros por hora, no máximo.
- Puxa... esse carro anda devagar, não é, Zé? – arrisquei.
- Devagar? Ouça! – ele desabafou, mostrando os zumbidos dos carros que nos ultrapassavam como se fossem foguetes ultrassônicos – Olha para isso! Tenho a nítida impressão que estou de marcha ré, voltando para São Paulo!
É a mesma coisa. Embora eu não esteja encolhendo, parece que estou de marcha ré diante dos meus filhos. Encolhendo! Além disso, uma mãe de adolescentes sofre de outro tipo de críticas.
- Nossa, mãe, você está muito horrível hoje.
- Mãe, teu cabelo está nojento, tua cara está péssima e essa roupa está muito tosca.
- Mãe, dá pra você não falar nada hoje na frente dos meus amigos? E nem contar seus casos?
Dizem que isso faz parte do crescimento. Que um adolescente precisa acabar com a imagem do pai e da mãe para sobreviver, que é um modo deles se auto-afirmaresm, blá, blá, blá. Mas e os pais, como ficam nisso? Eu acho que logo logo vou precisar de terapia, pois minha auto-estima está lá nas cucuias. Por causa dessa convivência, além de encolhida, ando me sentindo velha, feia, tosca e horrorosa.
Pensei muito. Acho que a única solução é arrumar uma turma de septuagenário ou octogenários. Numa turma dessas eu me sentiria a maior... lolita. Isso seria uma verdadeira delícia: para um senhor de oitenta, uma mulher da minha idade vai parecer muito, mas muito menina. Fico até imaginando a cena, que coisa mais boa.
- O quê? Você nasceu na década de sessenta? Hahaha! Como pode, muito jovem! – dirá um dos meus novos amigos.
- Quantos anos você tinha na época da Tropicália? Não viu os festivais? Nossa, que menina! – falará outro.
- E que saúde! Rapazes, ela não tem nada, nem reumatismo, nem gota, nem safena! – arrematará mais outro, me deixando com um enorme sorriso de satisfação no rosto.
Contei minhas teorias para o Zé.
- Hã? Temos que arrumar uma turma de... octuagenários? – ele se espantou.
- É, Zé! Isso! É que tudo é uma questão de relação. Em relação aos adolescentes, somos uns velhos, mas em relação a essa turma de coroas, seremos novinhos! Olha, eu prefiro ser novinha, sabia? E olha... Se eu notar que, algum dia, você está se engraçando com alguma mocinha de vinte, Zé, eu arrumo loguinho uma turma coroas bacanérrimos de sessenta ou setenta. A diferença é a mesma! Mesmíssima, você vai ver!

segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

dona concha


Quando fui assistir “A vida na praça Roosevelt”, do Sátyros, uma das personagens que mais me incomodou foi uma mulher chamada “Dona Concha”, interpretada por Ângela Barros. Dona Concha é uma mulher solitária de meia idade, com filhos crescidos e que trabalha há anos como secretária de uma firma falida. Mora num apartamento na praça Roosevelt com um monte de gatos e um dia descobre que tem câncer.
Essa mulher me incomodou quando li o texto, e depois, ao ver a personagem no palco, a coisa tomou forma e ela não me sai da cabeça. Vejo Donas Conchas em todos os lugares. Para mim ela é a personificação do medo de todas nós, mulheres.
Vou explicar. Minha mãe morou no mesmo prédio por 40 anos. O prédio, que existe até hoje, chama-se “Edifício Imperial”. Ali eu nasci, ali minha irmã nasceu, ali meu pai morreu. Um dia eu e minha irmã nos casamos e desde então minha mãe passou a morar sozinha no prédio, com um monte de mulheres na mesma situação que ela, muitas mães de vizinhos amigos nossos. Todas ficaram sós, sem filhos, muitas sem maridos e todas com plena consciência da sua limitação diante do mundo.
Aquele monte de Donas Conchas.
Olha. Difícil para um homem entender isso. Homens sempre têm como meta sucesso profissional, status, número de mulheres, caramba a quatro. São metas atemporais, que devem ser conquistadas desde a adolescência até a velhice. São metas que crescem e independem da idade, do momento da vida que eles estão. Já para as mulheres a realidade é diferente. De um certo modo, a vida de uma mulher finda no casamento, na maternidade, no fato de ser avó. Depois disso, não sobra muita coisa. Não existem mais homens, prazeres, desejos ou limites para serem ultrapassados.
Sinceramente? Tenho medo, muito medo da Dona Concha. A vida de todas as Conchas amigas da minha mãe que ainda moram no Imperial é a mesma. Vivem fechadas nos seus apartamentos, com consciência de terem cumprido sua missão, mas passam dias e noites sem entender o que devem fazer no mundo dali para diante. Elas são a materialização da falta da perspectiva. E o pior é que todas têm a compreensão plena da falta de uma estrada, estão paradas no meio do nada. Mas não há muito o que fazer diante daquela inevitabilidade.
Acho que vida delas já acabou, só que elas ainda não morreram.
E isso é bastante nítido.
Para muitas mulheres a vida tem apenas dois objetivos. A espera da vida, na gravidez, e a espera da morte, depois de criar os filhos. Acho que minha vida não será muito diferente disso, por isso me agarro às letras e palavras com tanta fúria: tenho medo de ser a Concha. Dentre os excluídos, ela consegue excluir-se da própria vida. Todas nós temos medo de acabar com tanta coisa nas mãos e tão poucas possibilidades. À Dona Concha não falta nada: nem passado, nem filhos, nem netos, nem emprego, nem apartamento, nem gatos, nem câncer. A Dona Concha é morna, e bastar-se com a temperatura morna é horrível. O melhor seria a água ou o incêndio, mas o pior é que as chamas nunca a destruirão. Sinto que até o fogo se esquece dela.
Sai da peça com essa sensação. Desde então tento entender porque a vida, e só ela, não basta.
Não sei.
Mas não basta.

sábado, 3 de dezembro de 2005

O fígado da astronauta



Depois de uma batelada de exames, o médico achou alguma coisa no meu fígado. Eu nem imaginava que tivesse fígado. Estômago eu sei que tenho, pulmão idem, mas fígado, nunca notei.
- Acho que não é nada, mas melhor fazer uma ressonância.
- Doutor, não dói, não incomoda, não vejo, é um exagero, não...
- Não discuta, lúcia.
Bom, como médico é médico, lá fui eu com o Zé para o departamento de exames de um hospital atendido pelo plano de saúde. Chegamos, era no subsolo. Instruções, muitas salas de espera, muitas fichas para preencher.
- A senhora coloque esse avental e aguarde naquela sala.
Parecia que eu ia para a lua. Não sei se era por causa da falta de janelas, porque estávamos no subsolo ou porque todos usavam uniformes, mas parecia que eu estava fazendo um estágio na NASA para passar uns dias num ônibus espacial.
- Por aqui, senhora.
Chegou minha hora, entrei na sala e lá estava o famoso tubo da ressonância magnética.
- A senhora tem claustrofobia? – perguntou a mocinha.
- Hum. Acho que não.
Ela explicou direitinho.
- A senhora irá entrar ali – e ela apontou o buraquinho - Daremos algumas instruções pelo sistema de som durante o exame e a senhora tem que obedecer.
- Instruções?
- É. Basicamente pediremos para a senhora prender a respiração e soltar. Se a senhora não se mexer, o exame demora cerca de meia hora. Se a senhora se mexer demora mais. Na sua mão colocaremos uma campainha, qualquer coisa aperte. Não adianta falar lá dentro.
Eu estaria realmente na lua.
- Só que a senhora não pode dormir, dona Lúcia, pois tem que responder às instruções.
A moça saiu e voltou com uma uma enorme injeção.
- Que é isso?
- Um remédio. Buscopan. Como a ressonância da senhora é no abdômen, não podemos deixar o abdômenm da senhora se mexer. Esse remédio serve para relaxar o abdômen.
Fui injecionada e me deitei. A cama era estreita, mas confortável. A moça me deu um travesseiro, colocou cobertores. Fiquei quentinha, agasalhada, estava gostoso. O lugar era silencioso, ouvia-se apenas um chiado da máquina. Depois de um tempo eu comecei a bocejar. Olha. Sou um pouco fraca para remédios. Eu não imaginava, mas aquela injeção de Buscopan me relaxou um pouco a mais do que o necessário. Não foi só meu abdômen que relaxou. Eu relaxei. Ouvi uma voz vindo da terra. Era o médico, que me assistia através de uma vitrine.
- Dona Lúcia, a senhora está bem? Vamos testar a campainha, aperte.
Eu apertei lentamente...
- Muito bem. Agora vamos entrar na ressonância, está certo...? Lembro para a senhora que, qualquer problema, é só tocar a campainha....
Bocejei. A voz estava a quilômetros de distância.
A máquina começou a se mexer e eu entrei no tubinho, bem devagarzinho. Ô coisa boa. Só sei que, naquela hora eu já estava pra lá de cochilando naquela nave. Estava no meio das estrelas, naquele estágio de quase sono. Nossa, que moleza.
Bem, dormi.
Não sei o que aconteceu em seguida. Provavelmente causei um grande distúrbio, pois, quando acordei, uma hora e meia depois, me vi numa mini UTI, com um monte de pessoas de máscara ao meu redor. Eu estava com oxigênio, aparelho de pressão, medidor de batimentos cardíacos, com o caramba a quatro e quase de ponta cabeça, toda afivelada numa cama inclinada. Abri os olhos.
- Ela acordou doutor, ela acordou.
Gente, ER era pouco.
- A senhora está bem? – perguntou a junta médica, assustada.
- Eu dormi?
Foi dificílimo convencer os astronautas que o que eu tive foi apenas... sono. Mas foi, juro. E que coisa boa. O remédio me deu sono e eu simplesmente dormi. E depois de ser examinada por uma enorme junta médica, voltei ressuscitada para o tubo para... fazer o exame de novo. Bem, perdi o dia todo por causa da minha soneca na ressonância, mas foi deliciosa. Que lava-jato o quê. Bom é dormir em tubos, o Zé nem imagina.
E o que eu tinha no fígado? Nada. Absolutamente nada.
Mas pelo menos fígado agora eu sei que tenho. Vi nas imagens.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

... e tudo ficou muito escuro


Ontem a noite começou a chover. Muito. Daquelas chuvas que, quando você pensa que está acabando, está na verdade apenas começando.
De repente, um barulho.
Drummm drummm drummm.
Acho que estourou algum transformador em algum canto aqui por perto e pimba.
Apagou a luz da casa toda.

Tá vendo essa linha em branco ai em cima? Uma linha branca num texto é como acabar a luz de uma casa de repente. Não há o que fazer nessas horas. Dá um branco preto. Acho uma loucura o que acontece quando acaba a luz com as pessoas como eu, que vivo completamente ligada na tomada. Pelo menos 90% das coisas que eu e minha família fazemos toda noite depende de energia. A gente faz tudo errado - ligamos um monte de TVs, aparelhos eletrônicos e computadores. Acabar a luz, para nós, é como ser subitamente teletransportado para outro planeta, onde nós nos sentimos uns ETs pré-históricos.
Tem umas coisas engraçadas. Primeiro que ninguém sabe onde o outro está e isso parece um problema terrível. Acho que sem luz a a gente fica meio burro, só pode ser isso, pois basta acabar a luz que aqui em casa todo mundo começa a chamar o nome do outro aos berros, como se a pessoa sumisse junto com a claridade.
Eu sou a primeira a fazer isso, feito uma desesperada.
- Ai. Cabou a luz. Naniii! Onde você está, Naninha?
- Joããão. Tá me ouvindo?
- Chico. Chicoooooo! Tá ai em cima? Alô!
Lembrei de uma empregada que tive uma vez. Acabou a energia da casa no meio da tarde. Eu cheguei a noitinha e dei de cara com ela na sala. Ela tinha acendido umas velas e estava brincando com as crianças.
- Oi Cida, tudo bem? Os meninos já jantaram?
- Não senhora.
- Já tomaram banho?
- Não senhora.
Olhei ao redor. A maior bagunça.
- Cida. Você não arrumou a casa? Nem fez jantar, nem lavou a louça do almoço?
- Não senhora. Não tem luz, né? Num dá.
Ela achava que, como não tinha luz, não existia gás, nem água nem telefone. E assim ela passou a tarde toda sem fazer nada. Nadinha.
Ontem a escuridão nos pegou no meio do jantar. Por um instante eu fiquei atrapalhada igual a Cida. Será que eu continuava comendo, mesmo sem luz? Podia?
É estranho viver sem luz. É como se desligassem parte da minha vida e você começasse a viver outra vida, dimensionada na escala da velinha. Aliás, quer coisa mais deliciosa que ficar a noite toda envolta em velas?
O único problema é que, sem luz, neca de crônica. O "frankamente..." é escrito no início da noite, e não funciona a pilha ou manivela, infelizmente.
Então fica aqui apenas esse relato mal iluminado e rapidamente escrito... a luz do dia.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

amigo secreto de novo?


Aquele aniversário infantil era a chance. Toda a família, ou ao menos um representante de cada núcleo familiar, estava presente. Como alguém ameaçou ir embora, duas primas minhas se adiantaram.
- Gente! Atenção! Antes de todo mundo ir embora vamos tirar o amigo secreto para o natal.
- Já? – questionou uma tia.
- Já estamos no final de novembro - lembrou a prima, essa que organizava, a líder.
- Mas não está todo mundo aqui – argumentou meu tio.
- Olha gente, vamos tirar assim mesmo – disse a prima líder - Tirar com todo mundo junto é impossível, vocês sabem. Hoje tem gente de todas as famílias. Tiramos, e para as pessoas faltantes, algum familiar tira e leva.
Uma das tias protestou.
- Mas vamos fazer amigo secreto de novo? Combinamos ano retrasado que não íamos fazer nunca mais, depois daquela confusão...!
- Tem que fazer, é presente demais! – retrucou uma prima.
- Acho natal com amigo secreto tão sem graça... – argumentou alguém.
- Ninguém tem dinheiro para tanta lembrancinha – disse mais uma outra.
- E dessa vez deixaremos as crianças de fora – falou a prima líder, absoluta no seu reinado.
- Crianças? Qual é a idade de corte? – perguntou a prima ao meu lado.
- Dez anos – respondeu a líder.
- Iii. Dançamos... – a prima ao lado me olhou – Eu vou ter que comprar mais dois presentes e você três.
- Tem razão – respondi - E depois falam que amigo secreto é econômico.
- Mas a gente pode dar para quem quiser? – perguntou minha mãe.
- Como assim?
- Eu entro – ela disse - mas eu quero dar para quem eu quiser fora do amigo secreto.
A prima líder pensou antes de responder.
- Hummm. Poder pode, contanto que não seja para todo mundo, tia.
- Porque não pode para todo mundo? Eu que vou dar, eu que vou comprar!
- Ah, porque atrapalha, tia.
- Ah, vá, nunca vi presente atrapalhar – desabafou minha mãe, meio brava.
Minha prima líder me chamou.
- Ajuda a recortar os nomes, dobrar e vê se eu esqueci alguém.
Olhei para a lista.
- Quem é esse?
- O primo italiano.
- Ichi. Ele vem?
- Vem.
- Mas ele vai trazer presente de lá?
- Acho que sim. Vão avisar para ele.
- Ai. Tomara que eu não caia com ele – eu disse – O que dar de presente?
- Dá umas coisas do Brasil. Estrangeiro adora coisa do Brasil.
A prima líder falou alto.
- Não pode tirar pai, mãe, filho e irmão, hein?
- Como assim? – exclamou minha mãe de novo – Se eu tirar a Lúcia ou a Ângela eu não devolvo. São minhas filhas!
- Filha só pode se for de outra familia, de outra casa.
- Não estou entendendo nada – ela cochichou para a cunhada ao lado – Mas minhas filhas não são da minha família?
A prima líder explicou.
- É assim. A Lúcia não pode tirar a filha dela, por exemplo, porque elas moram na mesma casa. Mas você tirar a Lúcia pode, pois são duas casas.
- Regra estranha, não acha? – disse aquela prima do lado, rindo.
- Pronto. Vamos lá – e ela mostrou o vaso com os papéis.
Começamos a pegar. Troca, destroca, devolve, dá uma olhadinha, guarda. Sai de lá com cinco papelzinhos dobrados que tive que olhar antes, segundo orientação da prima líder, para saber se não eram da minha família.
Missão cumprida.
Cheguei em casa e redistribui ao Zé e aos filhos. Todos os pares foram feitos, e, quando eu abri o meu...
Bom, óbvio.
Cai com o primo italiano.