quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

o pêndulo do relógio da meia noite



Não me lembro quantos anos eu tinha, mas eu era criança. Estava na cozinha, onde estava sendo preparada a ceia de fim de ano.
Minha mãe sempre gostou muito de cozinhar e fazer festas, principalmente quando meu pai era vivo. Ela se desdobrava sobre as panelas, criava recheios, inventava doces, salgados, carnes, molhos, farofas. Potes com ingredientes incomuns ficavam espalhados pela cozinha: nozes, passas, frutas cristalizadas, cerejas. Sob panos de pratos, em assadeiras, estranhas comidas: um peru costurado, um lombo amarrado com barbante, uma carne rosa lambuzada de mel e espetada com cravos. Minha mãe saracoteava daqui para ali dando ordens e falando sem parar.
Nesse dia eu estava animada. Como o reveillon seria na nossa casa, naquele ano poderíamos participar da festa. Dormir depois da meia noite era uma aventura e aquela seria a primeira vez. Ganhamos até roupas, eu e minha irmã: uma espécie de mini blusa e uma saia enrolada, estilo sarongue. Parecia muito chique aquilo.
Queríamos ficar ali, assistindo. Pedíamos para comer um pouquinho do pudim, para ganhar as aparas do bolo, para beliscar um pedaço de carne. Era muito legal a cozinha.
- Pronto, agora chega – disse minha mãe, dando um pote de suspiro para rasparmos – e não venham me pedir mai coisa que estou ocupadérrima.
Eu estava numa cadeira de palhinha, numa mesa próximaà parede onde havia um relógio. Era um relógio verde, quadrado, de fórmica. Foi quando minha mãe olhou as horas e se lembrou de uma coisa.
- Ah, lúcia! Já que você está ai, faça alguma coisa de útil.
- O quê.
- Sobe na cadeira, abre o relógio e dá corda. A chavinha está em cima da tampa.
Subi na cadeira. O relógio abria por baixo, levantando-se a tampa.
- Achou a chave?
- Achei.
- Abriu?
- Abri.
- Agora páre o pêndulo com a mão.
Olhei para o relógio pelado ali na minha frente, com todas as engrenagens à mostra. Em baixo do local onde ficavam os números estava o pêndulo, uma peça pesada, com uma bola chata de ferro e um espeto comprido em baixo dela. Tudo aquilo ficava escondido dentro da caixa-roupa. Agora o relógioe stava nú. Segurei a bola.
- Pronto. Já parei.
- Isso. Agora pegue a chavinha e dê corda. O furinho para dar corda fica bem no meio dos números, está vendo?
Trec, trec, trec.
- Já dei, mãe.
Era ótimo poder fazer alguma coisa pelo reveillon. Minha mãe suspirou.
- Imagina esse relógio parar e ficarmos sem “meia noite” no reveillon – ela disse, rindo – Isso, agora balançe o pêndulo bem devagarzinho, feche a tampa, guarde a chave e desça daí.
Balancei o pêndulo, ia fechar a tampa e ...
Olhei de novo para o relógio para ver se o pêndulo ia se mexer para ambos os lados.
Nossa.
Cadê o pendulo? Eu tinha acabado de encostar nele e ele não estava mais ali.
Foi quando eu senti a dor. No pé. Mais especificamente, no dedão do pé. Uma dor fortíssima. Olhei para baixo e vi o pêndulo, que outrora estava pendurado no relógio, no meu pé, com seu espeto em forma de agulha fincado bem no meio da unha do meu dedão.
Comecei a berrar.
O meu pé, o meu dedo, a minha unha, o pêndulo.
- Aaaaa!
- Que foi meu Deus do céu? Desce daí, filha! O que foi? O que foi?
- Aaaaa!
Então começou a acontecer uma coisa engraçada. Eu não conseguia sair dali simplesmente porque meu pé não saia do lugar. O pino pontudo do pêndulo pregou meu pé no assento da cadeira de palhinha e eu fiquei grudada. Quando percebi que estava furada de um lado a outro, gelei.
- Desce filha! – gritava minha mãe, me levantando no colo e carregando a cadeira junto.
- Aaaaa!
Minha mãe passou a me arrastar, eu arrastava o pêndulo, o pêndulo arrastava a cadeira pela cozinha, numa gritaria sem fim, até alguém puxar o pêndulo com força e me desgrudar dali.
Fomos para o pronto socorro, estragando a festa, a preparação, a arrumação. Lá ficou comprovado o óbvio – o pino do pêndulo furou a minha unha, a carne, o osso, a carne de novo e saiu pelo lado de lá.
A cadeira de palhinha ficou com a marca do furo por anos e anos, até ser reformada. Passei o reveillon de sarongue e pé enfaixado. O furo cicatrizou, a unha cresceu, o pêndulo que me furou voltou para o mesmo lugar, como se não fosse com ele, e continuou oscilando para cá e para lá, fazendo a meia noite acontecer por anos e anos, até quebrar e ser jogado no lixo.
E dessa história só sobrou... essa história.

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