sábado, 30 de outubro de 2004

A Baralina



E aqui temos uma bailarininha linda a um dia da eleição de prefeito na nossa cidade... bairalina ou baralina? Tanto faz.
O debate de ontem me irritou muito. Só fui descobrir o motivo hoje de manhã, quando, na cama e ainda sonhando, me lembrei do tom de voz da Marta e do Serra: bingo, descobri! Aquilo era uma típica briga de casal. Sabe aquelas crises horrorosas que volta e meia assolam os casamentos? Aquelas que parecem que vão acabar com você, que te fazem passar noites em claro, aquelas que tem umas discussões sem fim?
Igualzinho, repara.
Se fosse possível tirar o sentido das palavras que eram ditas ali e abstrair o motivo daquele encontro entre Marta e Serra, aquele "teatro" dos dois candidatos seria uma fantástica e original apresentação de uma briga de marido e mulher, onde a ironia, as fusquinhas, os tons de provocação e o sarcasmo predominavam. Só faltou o final, onde a Marta mudaria o tom:
- Ah, chega, estou cansada... Sérra... vamos não brigar mais?
- Mas Marta, olha tudo que você me falou! - responde o homem, suspirando, cansado.
- Serra, por favor, chega... tá bom, eu exagerei um pouco, você não é tão incapaz assim...
- Ah, bom - responde Serra, inflando o peito - Admite que exagerou?
- Sim, vamos esquecer isso... - fala Marta.
- Você sabe que eu gosto muito de você, Marta.
- Não parece... - resmunga Marta com um muxoxo.
- Gosto sim - replica Serra, segurando firme na cintura de Marta - Sempre gostei de você, venha cá e pare de resmungar. Sei do que você precisa... - completa o candidato, lascando um beijo daqueles na candidata.
- Oóó, Serrinha...
***
Tá, tá, sem segredos.
Mesmo assim eu vou votar na Marta amanhã.
*

quinta-feira, 28 de outubro de 2004

tempos de colégio


Colégio Bandeirantes, turma de 1978.

Um doce para quem adivinhar quem sou eu.


Posta e Filézinho


Estávamos numa viagem de trabalho: eu, um outro arquiteto, um empreiteiro e o dono de uma empresa de que trabalha com madeiras. Fomos almoçar num restaurante na estrada e pedimos o prato do dia.
Os quatro na mesa, veio com a comida. Arroz, salada, peixe, feijão, suco.
Na minha frente duas travessas, com dois tipos de peixe. Resolvi servir todo mundo. Um deles eu chamava de "’filézinho" e o outro eu chamava de "peixe em postas".
Eu ia perguntando para cada um: quer peixe? Em filé ou em postas? Em filé ou em postas? Uma hora não agüentei.
“Ah, acho horrível esta palavra, estou detestando falar assim. "Posta". Posta é muito feio, não acham? Posta. Nem parece nome de comida, póóósta. Não vou comer de jeito nenhum esse peixe em posta. Só o filézinho”.
Tentaram me convencer. Era bom que eu experimentasse, o peixe em postas estava uma delícia. Talvez até melhor que o outro.
“Não, Deus me livre, posta não”. Aquela palavra me dava cada vez mais aflição. "Posta...".
O dono da empresa de madeiras estava ao meu lado. Ele se lembrou de algo. Que ele também detestava uma palavra. E que essa palavra, de uma certa maneira, também era um nome de uma comida. Mas ele não falava qual era a comida, ele falava "coisa". Que ele detestava aquela "coisa". E que na casa dele, quando falavam naquela "coisa", ele tinha o maior nojo. E que a mulher dele vivia falando aquilo, era horrível para ele. Todo dia ela tinha que lembrá-lo daquela "coisa". Ele nos contava isso com cara de ânsia, retorcendo o rosto todo, falando baixinho. Como se a tal comida - coisa da casa dele não merecesse sequer ser um assunto falado alto.
Ele não olhava mais para a comida no prato dele. Alguém perguntou, cauteloso, “escuta, mas você tem nojo da palavra ou da "coisa"?”.
“Sei lá”, ele disse, “sei lá... acho que primeiro tive nojo da palavra, depois da "coisa". E ela vive falando!”.
Alguém não agüentou. “Mas fala o que é!”
Ele parou um pouco, não olhou para ninguém. Disse baixinho.
"Soro".
Soro? Ninguém entendeu direito. Soro? E ele ali, olhos fechados, boca torta, espremido.
“Mas como, soro? Você detesta soro? Mas quem come... soro?” - perguntou o outro arquiteto.
Ele tomou ar e continuou, como se lembrar daquilo fosse a morte. Falava devagar, respirando fundo, olhos fechados ainda. Acho que se lembrando (ou tentando se esquecer) daquela sensação horrível.
“Olha, ela faz isso todo dia, eu detesto. Odeio, gente. Ela faz coalhada todo dia, e fala que.. fala que ... vai tirar o ... o ... soro. Ela vive repetindo, ai, já dá para tirar o "soro", já vou guardar o "soro", precisa tirar o "soro", colocar o "soro", o dia inteiro aquele negócio de soro, soro, soro, martelando na minha cabeça. Quer saber? Eu detesto soro, odeio soro, tenho nojo, nojo de soro! E um dia, um dia não vou mais agüentar! Vou acabar me separando dela por causa desse maldito... "soro"!”
Ficou o maior silêncio na mesa. Acho que ficamos todos pensando a fundo sobre aquele tal de "soro". Seria aquele líquido meio amarelado, despregado do leite? Só aquilo? Acho que nunca mais verei um sorinho inócuo com os mesmos olhos. Bom, ninguém se atreveu a falar mais nada sobre aquela "coisa" tão repugnante para aquele homem.
Tive vontade de ligar imediatamente para a mulher do homem das madeiras e falar para ela: "moça, pare imediatamente de falar de soro! Salve seu casamento de um naufrágio nesse fluido aquoso- leitoso!".
Escrevendo sobre isso, me lembrei de outra palavra que detesto: buço. Feia demais, não é? Homem tem bigode, mulher tem esse tal de "buço". Eargh.
Pensando bem, pelo sim, pelo não, melhor pedir para o Zé nunca mais falar "posta" e "buço" na minha frente. Pra garantir.
***

W. Kandisnky

Um pouco assim o dia de hoje: sabe o que é acordar feliz, cheia de idéias, mas meio doente? Fiquei em busca de uma imgem que pudesse mostrar o que sinto.
Achei.
Uma imagem que, ao mesmo tempo que me alivia e me faz sorrir, me dá uma ligeira dor de cabeça.

Mais mensagens carinhosas

Recebi mais mensagens carinhosas:

Querida Lucia : Parabens a nossa querida autora que tanto tem nos envolvido em tramas complicadas. Voce é tudo. Continue assim !!!!!! Mucho bacanuda, divertente e tudo mais. beijos Isa

Lúcia, apesar de estar sendo maltratado, aceite meus parabéns...
Gemada

Lucia Feliz aniversário, felicidades e muitos livros! (nancy)

Lucia, super pppppaaaaaaaarrrraaaaaaabbbeeeeeeeeeennnnzzzzz. Do teu único personagem que já existia séculoas antes de criá-lo ! Dok, Charles.

Salve jovem !!!
Alexandre Moreira

Parabens, (de novo)
Marta

Obrigada, gente. Beijos a todos!

quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Mais presentes, ôba


Acabei de receber. Gostei muitíssimo do texto, Aída: "muito bolo, muito fogo, muito muito e muito mais!"
Oba. Gostei dessa coisa de fogo.
E aqui todas as mensagens que eu recebi até agora. Olha que coisa boa:

Lúcia, parabéns, sempre, pois as Deusas vivem por toda a eternidade!
beijão (pode ser igual ao do Jr com A Kika?)
Z

Lúcia querida,
Te desejo muita alegria, realizações, inspiração, amor, sonhos, saúde, bons personagens e editores generosos, você merece !
Bjs das tuas admiradoras
Francisca e Kika Drake

Feliz Aniversário Lucinha!!!!!!!!!!
(delboux)

まずは第一章の論旨を簡潔に要約してから、その議論が成立しうるか、特に最近の研究や動向を考慮に入れてもなお有効かどうかを問うことにしよう。
Anônimo


...Lúcia
Super parabéns para você!!!
Que vc continue alegrando tudo e todos a tua volta !!!
Parabéns, parabéns, parabéns !!!
BARBA...

Oi Lú,Que bom te ver tão brilhante como antes...Muito sucesso, saúde e amor, sempre.
Beijos
Lúcia

Lúcia!!Parabéns!Que continue sempre essa inspiração por muitos e muitos anos.
Beijos mil,Sonia

Autora!
Parabéns!!!
Muitas muitas felicidades, novelas, crônicas e livros!
monica

Lúcia querida, nossa autora predileta,
Parabéns prá você!!!
Desejo tudo de bom e muitas felicidades.
Você merece.
Beijo
Carmutcha e Carmen

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PRESENTES


acabei de ganhar essas maravilhosas flores da queridíssima maina-clara-hipa, junto com um poema da bê.

e para a lúcia tudo
o que lhe é de direito
ou de desejo
muita animação para você
muitas idéias
muito entusiasmo

um balão que sobe eleva o espírito
o confete que cai semeia o chão
a vela, se apaga, para compartilhar o bolo
o abraço se dá
a alegria contagia
e a vida continua
bom a no para você

bê i jo

obrigada, duas.

Birthday Reminder




Tá, tá.
Hoje, 27, é meu aniversário.

terça-feira, 26 de outubro de 2004

o eclipse


um eclipse, fotografado pelo joãozinho do meu quintal

Pós festas e prés aniversários não são datas muito tranquilas. Está tudo a maior zona nesse meu trabalho, nesse meu computador, nesses emails e na minha cabeça.
Mas como convém entender de outras maneiras, é melhor entender isso como apenas um breve eclipse. Eclipses acontecem, não? Basta existir uma lua, uma terra e um sol que brilha intensamente.
Qual dos três serei eu?
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hebe x hebe


ahahaha, minha mami está hoje e agora no programa da hebe!

segunda-feira, 25 de outubro de 2004

ô coisa chique!


... em noite de gala, com flores e homenagens...

Franka e Alex Fontes

constatações

Comunhão.
Ato ou efeito de comungar.
Participação em comum em crenças, interesses ou idéias.


Era uma vez uma moça que comia pedaços dos cérebros dos outros. Como eram somente uns pedacinhos, ninguém percebia. Era preciso, ela estava com muita fome naqueles tempos.

Uma delicia de festa


JR, Kika, Franka e o Editore com os premios de Miss e Mister Fauítos
Dá licença...


enfim, autografando a novela!

domingo, 24 de outubro de 2004

o reencontro

****

Reencontrar amigos queridos, inteligentes, saudáveis e bonitos é a melhor coisa da vida.
Ou da ficção, tanto faz.


ps. acordar e ler as doces e sinceras palavras do charles no blog dele completa essa mágica...


*****

sábado, 23 de outubro de 2004


Olha ele ai: o Nelson Rodrigues

A menina sem estrela

Hoje não tenho cabeça para escrever nada.
Achei aqui um monte de frases tiradas de um livro do Nelson Rodrigues.
Me fez um bem enorme lê-las.

*

“Naquele momento, descobri que não se deve adiar uma palavra, um sorriso, um olhar, uma carícia. E como me doía não ter dito a ele tudo, não ter feito as confissões extremas... quantas palavras calei com pudor de ser meigo, vergonha de parecer piegas?”

“Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”

“Afinal, o amoroso é sincero até quando mente”

“Diz alguém que a cama é um móvel metafísico, onde o homem nasce, sonha, ama e morre”

“Disse não sei quem que o desejo é triste. E nunca se desejou tanto como naqueles quatro dias. A tristeza escorria, a tristeza pingava, a alegria era hedionda.”

“... no fim de certo tempo de rotina matrimonial, o amor, a paixão ou que outro nome tenha é substituído por um sentimento mais sereno, mais estável, mais benigno. Digamos a palavra e o sentimento: a amizade. De sorte que um desejo inopinado que venha a turvar a pura e desinteressada estima – é quase incestuoso.”

“E confesso: - o meu teatro não seria como é, nem seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto.”

“ Acabava de tocar o mistério profundíssimo do teatro. Eis a verdade súbita que eu descobrira: - a peça para rir, com essa destinação específica, é tão obscena e idiota como o seria uma missa cômica.”

“Eis a verdade: - a fome varre, a fome raspa qualquer sentimento forte. O ódio exige boa alimentação e repito: - para odiar, o sujeito precisa de um sanduíche, pelo menos de um sanduíche.”

“E, naquele momento achei, como o afogado, que nenhum homem deve possuir a mulher amada.”

“Para o homem o amor não é gênio, não é talento, e sim tempo, métier, sabedoria adquirida. Fiz as considerações acima para concluir: - o homem devia nascer com trinta anos feitos.”

“O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar na gravata.”

“E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser essa golfada hedionda.”

“Ora, sem um mínimo de morbidez, ninguém consegue gostar de ninguém. O amor ou é puro desejo ou, menos do que isso, a posse sem desejo.”

“ “ O Sábado é uma ilusão.” ” ... “E, assim, através dos tempos, criança, adolescente, homem feito, velho, tenho acumulado minhas descobertas. Hoje, reconheço que tenho uma dívida séria com várias frases fundamentais. Fiz peças de uma frase.”

“Para mim, há uma nítida relação entre a adúltera e o suicida. Aquela que trai e aquele que se mata estão fazendo um julgamento do mundo.”“Penso se o próprio sentimento de morte não deflagra essa vontade, brutal e fatal, de comer. Comecei a me justificar: - há uma fome da angústia, uma fome da solidão, uma fome do medo. Não. Do medo, não. O medo tira a fome. A angústia, sim. A angústia dá ao homem uma fome de miserando.”

Nelson Rodrigues

*

sexta-feira, 22 de outubro de 2004

o negócio do inferno astral


mudei de imagem no blog!

A partir de hoje a moça de Angra se despede para dar lugar à agente Franka 426, com sua roupa preta de couro, suas botas e sua peruca loira.
Só falta a super mochila, mas essa eu não posso postar porque estou usando.
Dizem que aqueles dias que antecedem o aniversário da gente são dias de inferno astral. Acho a maior sacanagem os astrólogos fazerem isso com a gente - decidir que viveremos um inferno antes do dia do aniversário a troco de nada. Me recuso a aceitar tamanha baboseira.

Ainda hoje, nesse tal de inferno que me colocaram, estava pensando sobre os binas, detectores de mensagens e aquela foto do multiply onde aparece a ultima pessoa que te visitou.
Internet está ficando cada dia mais igual a vida real - não demora muito para a página da gente ter a imagem real da gente, via webcam, conectada direto com voz e tudo.
Impossível, assim, entrar escondido nos sites alheios, cada vez mais difícil fuxicar nas coisas dos outros.
Telefone virou a mesma coisa: acabou-se o trote ou aquelas ligações adolescentes para ver se a pessoa está em casa: ligou, tá detectado.
Detesto essa idéia do detectado. Depois que começou isso, a gente não pode nem ligar errado pros outros que logo em seguida vem uma ligação de alguém perguntando porquê que a gente ligou para ele.
- Eu te liguei?
- Ligou. Agora. Faz uns 5 minutos.
- E... quem é você?
- O que você queria falar comigo?
- Mas quem é você?
- Não, não. Foi você que me ligou. Diga antes quem é você.
- Olha, acho que eu liguei, mas devo ter discado errado, foi engano.
- Não sei não... Com quem estou falando?
Aaa.
Daqui a pouco existirá "detectados" para sites, para textos, para tudo. Já existem nas ruas, com as cameras em todos os lugares, com as fotos para a gente entrar no lugares.
Não que eu queira fazer nada escondido. Mas queria paz. Só isso.
*

A festa da FAU


A autora, Bob Delboux e o querido JR há vinte anos. Continuamos os mesmos? Não, estamos todos um pouco mais velhos e muuuuito mais bobos.
A festa será amanhã, depois de mais de mil "prévias", com direito a lançamento de livro, entrega de prêmios e muita conversinha.
Duas coisas são de doer: esse óculos do Delboux e essa maquiagem gay do JR...

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

O Paulo Autran



"...lúcia, menina, mas eu a-dooo-rei a sua peça!..."

... ahahah mas que delicia... será que está chegando o dia de virar dramaturga?...


O Paulo Autran. Acho que agora está passando meu nervoso, minha falta de ar e minha emoção. O meu querido Paulo Autran me ligou hoje as duas da tarde para dizer que leu e que adorou a peça do Barabai. É maravilhoso lembrar o que ele me disse. Emoção é pouco de receber um elogio desses. Estou até agora numa pasmaceira mental e com um sorriso bobo colado na cara.

sem vergonha

Meu corpo é um tubo
De Colgate no fim
Que você aperta
Pra ver se ainda resta
Algo de mim

Paula Taitelbaum

O OLHAR

já que achei esse texto hoje, vou postar aqui.
Um texto que virou romance, depois migrou para uma peça, depois voltou para um diário, depois foi para outra peça.

***

O olhar

E um dia ele apareceu na minha frente. Queria entender qual foi o mecanismo que me fez olhar para o lado e perceber que ele estava ali. Também não sei se foi ele que olhou ou se fui eu que o forcei a isso.
Mas houve um olhar. Um longo e demorado olhar. Que, claro, foi desviado. É preciso saber medir esse tempo. Um pouco a menos ou um pouco a mais atrapalha. Ele olhou, eu olhei. Não há muito mais do que isso, não existe música para isso, não há como pintar esse quadro, nem como dançar essa dança. Ele olhou, eu olhei. E, nessa hora, meio segundo a mais se passou.
Ah, se a gente pudesse contar e dizer o que realmente significa esse meio segundo a mais. Se a gente pudesse... Meio segundo a mais acende um luz. Um coisa de bicho, de animal no meio da floresta, de vontade instintiva e quase pré histórica. Natural como dar a luz, e ter leite nos peitos na hora seguinte. Ele olhou, eu olhei e foi assim que foi tecida a trama do começo da história. Para sempre existirá esse enlace, esse fio de linha, ainda tênue e frágil, mas indestrutível como a memória.
É claro que houve muitos outros olhares, que tentaram provar para a consciência que aquilo tudo não foi um engano. Outros olhares, com sorrisos, com emproar de corpo, com respirações profundas. Mas esse olhar tão inexplicável de duas pessoas que nunca se viram. Sem passado, memória, sem outras horas e, mesmo assim, completamente inevitáveis. Não há cálculo, nem precisão, só um brusco atropelamento diante dos corpos. Um fisgar violento, posso falar assim? Violento? Pode alguma coisa ser violenta e doce ao mesmo tempo?
Ele olhou, eu olhei. O destino quis e nos deu esse olhar, casual, denso, insensato, diabólico, dissolvido. Era tudo que me pediam na minha vida. Olhar e olhar de novo, dentro daquela área contida no meio do tempo.
E eu sei. Sei o que é uma coisa germinando, e ainda uma coisa seca e pálida. Sei como regar, como tornar férteis a noite e o dia, como transformar todo esse sonho numa outra verdade, ah, tão alimentícia.

***

a amélia, que é muito maior que eu...

na gipoia com o guinter

O táxi

*
Fim da tarde. Liguei para o celular do Zé, meu marido.
— Alô.
— Zé? É você?
— Não.
— Desculpa. Engano.
Tentei de novo.
— Alô.
A mesma voz de homem.
— Zé?
— Não.
— Quem é?
— João Pereira.
— Engano de novo. Desculpa.
— Não, dona. Esse telefone não é meu.
— Não? Não é o do Zé?
— Deve de ser...
— Mas... quem é você?
— João Pereira.
— Tá, eu sei. Jo-ão Pe-rei-ra. Mas porque o telefone do Zé está com você?
— Quem é esse Zé?
— O dono do telefone! E você é quem, moço?
— Eu? Sou motorista de táxi. João Pereira, às ordens.
— Ah, entendi... o Zé esqueceu o telefone no táxi...
— É. Já tocou para burro. Só agora entendi como atende.
— Porque não leva pra o escritório dele?
— É aqui? No Paraíso?
— Nossa, olha onde foi parar o telefone do Zé...
— Quem é Zé mesmo, hein?
— O dono do telefone! Onde você está?
— Agora cheguei na Paulista, indo pra Consolação. Por que?
— Vou te dar o endereço dele. É na General Jardim.
— Tem alguém para receber lá? São sete horas.
— Ichi. Acho que todo mundo já foi embora.
— O telefone está apitando, dona.
— Ai. Está acabando a bateria. Rápido. Onde é seu ponto?
— Eu não tenho ponto.
— Hum, deixa eu pensar... João, você tem passageiro?
— Tomara que eu tenha, né? Eheheh! Táxi sem passageiro é uma tristeza!
— Perguntei se você tem passageiro agora!
— Agora não. Mas se aparecer alguém...
— João, não pega ninguém! E anota um endereço.
— De quem?
— Meu.
— Porque? A senhora precisa de táxi?
— Não!
— Não entendi. Pra quê eu vou ai, então?
— João, você vai trazer o telefone aqui. O telefone que é o seu passageiro.
— Hã? O telefone do seu Zé é o quê?
— É o passageiro! Eu pago a corrida dele.
— Ah, entendi... se a senhora tivesse falo antes...
— Mas pára o carro, você está indo pra o lugar errado!
— Errado? Como errado? Estou indo pra casa! E... a senhora vai pegar o telefone do seu Zé, hein? Ele tá sabendo disso?
— E como eu vou avisar, se você está com o telefone dele?
— Eheh, é mesmo... ei. A senhora é o quê dele?
— Mulher, João.
— Verdade? Olha...
— Juro. É melhor o telefone ficar comigo do que com você, que não é nada.
— Como nada? Sou motorista de táxi há vinte anos nessa São Paulo. Vinte anos e.
— João, desculpa. Mas anota logo o endereço. É perto da ponte da Cidade Universitária. Anotou?
— Anotei... Butantã é longe, viu...
— Você está onde?
— Embaixo do minhocão. Perto da Alameda Glete.
— Pára o carro, João!
— Calma, dona... pronto. Ei...e a senhora tem dinheiro?
— Hã?
— Não conheço a senhora... depois é trote...
— Ai. Que aflição do telefone rodando a cidade assim... João, acredita, senão o Zé perde o telefone pra sempre!
— Não tô ouvindo!
— Traz aqui, João! Eu paaa...
Bem, acabou a bateria e lá se foi o seu João. Quarenta minutos depois, toca a campainha. Quem é? Reconheci a voz no interfone.
— É o telefone!
Lá estava ele, o famoso seu João Pereira. Fomos até o táxi, paguei a corrida e ele me mostrou, sorrindo, o telefone do Zé sentado no banco do passageiro. Seu João me deu um cartão. Quando precisasse...
— O senhor não tem celular, seu João?
— Eu, hein! Depois eu perco no táxi! Eheheh!
Eu entrei rindo em casa. Cada uma.
O Zé chegou uma hora depois, distraído como sempre. Olhou na mesinha da entrada.
— Olha, meu telefone... sabia que tinha deixado em algum lugar!
*

quarta-feira, 20 de outubro de 2004

terça-feira, 19 de outubro de 2004

o email da bê

EVA?
acho que entendi o seu estado
acordar hoje e ver o livro lá, posto sobre o piano, foi um tapa
o livro está posto, querida
existe
existe fora do seu computador
fora do grupo
existe por conta própria
é, está, exerce o seu próprio poder de sedução
com sua capa aveludada, seu tamanhinho correto, suas letras enfileiradas, seus pretos e brancos
roubou de ti parte da sua existência para ter sua própria, feito de sua costela, adão
a partir de agora serão dois
você e o livro, independentes
mas não livres
cada qual carrega em si parte do outro
bê ijo


A procissão em Duartina. Deve ser dia de Santa Luzia. Pena que, por um triz, não dá para ver em baixo a casa do vovô, quando ela ainda existia.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

A operação da Josi

*

Lembrei de uma manicure que eu tive uma vez. Eu estava fazendo a unha, ela falando ao meu lado.
Me contava de uma amiga que teve que fazer uma operação no dia anterior. Foi ela que levou a moça para o hospital, disse que a amiga berrava de dor. Eu concordei: "ter dor é muito ruim, ainda mais assim de repente".
Perguntei se ela já tinha se operado alguma vez.
- Já, uma vez... Faz tempo, eu era moça - ela explicou - Tirei a minha apênis.
Eu dei um pulo. O que ela falou?
- ... tirei minha apênis, pois estava inflamada - ela disse mais alto.
- Como é?
- Uma dor horrível que me deu, me levaram para o hospital - ela explicou - O médico disse que não tinha jeito, que eu ia perder a apênis mesmo. E eu operei e tirei.
- A sua...
- Apênis. Essa coisa aqui do lado, na barriga.
Ela mostrou com o dedo.
- Apêndice?
- É, é isso aí. A apênis - e ela continuou - e tirei mas nunca senti falta dela. Nem sei porque mulher precisa dessa apênis. Não usa para nada! Não tenho apênis faz uns dez anos, e olha, estou ótima.
- ... ah.
E ela concluiu, seríssima.
- Mas a operação foi horrível, horrível mesmo, lúcia.
Eu acredito... Bem, eu ainda tenho a minha, mas também nunca notei se eu uso para alguma coisa.
*

sete amigas

olá, brando.

O faqueiro

*

Tivemos que acordar de madrugada, pois uma das crianças estava com febre e dor no ouvido. Acabamos levantando nós dois, eu e o Zé, para dar remédio, esquentar uma bolsa de água quente, fazer um pouco de carinho, essas coisas. Quando ele melhorou, fomos para a cozinha tomar um chá.
O Zé colocou as xícaras na mesa e foi esquentar a água. Eu tomo sempre chá sem açúcar, ele com açúcar. Ele pegou uma colherinha, estava morrendo de sono, bocejando. Ficou olhando a colher, olhando, girando nos dedos.
- Que foi, Zé?
- A colher de chá... tava pensando nela.
- Quê?
- Eu estava pensando que numa gaveta, as colheres de chá são tão desprezadas, não acha?
- Colher de chá “desprezada”? Por que, Zé?
- Pensa uma coisa. Nem existe lugar para elas. Ficam no canto, meio de lado na gaveta, junto com as colheres de café, junto com um monte de canudos, espetinhos. Mais ou menos no lixão da gaveta de talheres.
- É... pode ser.
- E nem são usadas. As de café são usadas o dia todo, as de chá tão pouco... dá um pouco de dó. Se você não acha a colher de chá pega qualquer outra no lugar dela, qualquer outra colher serve para mexer o chá.
- Zé. Eu tou maluca de tudo ou você está comparando as pessoas do mundo com... talheres?
- Pode ser. Mas tem dias que a gente tá ótimo, animado, cheio de idéias, “se sentindo” o tal. E tem dias que eu me sinto... uma colher de chá, sabia?
- Mas... mas o que você queria se sentir? Uma concha de sopa?
- Claro que não. Imagina que horror, uma concha de sopa. Gordona, feia. Quéisso. Eu queria ser era aquele garfão, sabe aquele de cortar carne? Aquele que nem sai da caixa do faqueiro de veludo vermelho. Nem vai para a gaveta. Fica lá, no palácio... tem até uma cadeirinha só para ele, numa sala especial, tudo tão bacana. Mas nem sempre me sinto o garfão. Tem dias que me sinto a colher de chá.
- E... as colheres, os garfos, as facas?
- Tudo empregado, trabalhador braçal. Muito úteis, todos iguais demais. A massa trabalhadora.
- Entendi. Acho que entendi. Meio esquisito pensar isso, assim no meio da madrugada.
- E você? Acha que é o que?
- Eu? ... Sei lá, Zé. Acho que só uma colher mesmo. Mas de sopa. Assim, arrendondada, bunduda, com quadril, rebolando nas águas das sopas. Colher é mais feminina, entende?
- Tem razão. (bocejo) Vamos deitar?
E assim eu fui dormir. Feito uma colher de sopa. Como todas as mulheres e mães, que fazem caber dentro delas mais alimento, mais comida. E que são mais delicadas e não machucam ninguém.
Não acha?
*

sexta-feira, 15 de outubro de 2004


Que dia!

Haja sofá...

*
Já foi a Casa Cor esse ano? Essa é uma das perguntas que eu mais ouço.
A Casa Cor, para quem não sabe, é uma exposição anual de decoração que acontece numa casa da nossa cidade. Cada ano é num lugar, e cada ambiente dessa casa é destinado a um decorador, que usa o espaço para mostrar seu talento e sua criatividade.
E por que é que eu tenho essa implicância com a Casa Cor?
Não sei. Acho que é um lugar estranho. Não acredito muito em decoração, e mais ainda do modo que ela é colocada nessa mostra.
Acho que as pessoas passaram a complicar a vida. Antigamente não existia tanto decorador, e as pessoas se viravam sozinhas quando iam morar em algum lugar. Era muito simples. Uma sala tinha que ter sofá e poltronas, ladeados por uma mesinha lateral, uma mesa de centro e uma tv. Na parede, quadros que tua tia pintava quando era artista e meio hippie. Você podia comprar os móveis em qualquer lugar. Podia, inclusive, trazer umas coisas da casa da tua mãe e reformar aquele sofá que ganhou do amigo que foi morar fora. Para resolver as cortinas você chamava o cortineiro, aquele do bairro, ele trazia os tecidos e você encomendava. Nas suas viagens trazia uns bibelôs, no teu quarto colocava a tua cama, a mesinha com abajur, uma colcha comprada nas Pernambucanas e assim ia montando devagarzinho a tua casa. Você podia trocar os móveis de lugar, inverter, testar se ficava bom o sofá embaixo da janela. Era tão fácil, tua vida se encerrava ali e aquilo era problema teu, só teu.
Mas agora não é mais. É também dele. Do decorador que você foi arrumar.
É, virou moda ter um decorador, todo mundo quer ter um. Funciona como uma espécie de marca, você pode usar o nome dele à vontade e ele define a tua maneira de morar, o melhor, o teu “estilo”. É mais ou menos o seguinte: além de decorar a sua casa, o teu decorador diz “como” e “o quê” você vai fazer lá dentro. É impressionante isso: ele te inventa coisas que você nunca tinha imaginado fazer na vida. Você vai ter uma sala de ginástica. Vai ver filmes numa sala de cinema, vai ter um jardim de inverno, chamado de “gazebo”, vai cuidar de uma horta, vai ser chefe de cozinha num ambiente com eletrodomésticos modernérrimos, vai ter uma “family room”. Como você não pensou nisso antes?
- Aqui a gente coloca um sofá enorme para você ficar lendo um livro.
- Ler? Mas aqui não é o corredor do apartamento?
- Era, não é mais. Agora aqui é uma “sala de leitura”. E ali adiante é a biblioteca – declara o teu novo decorador, apontando o resto do corredor.
Isso tudo está lá na Casa Cor. A decoração, as idéias e os estilos de morar. Os cenários para a tua vida estão na Casa Cor, e você escolhe qual quer usar.
Além disso, a Casa Cor é o local que mais tem sala no mundo. No final das contas, todos os decoradores querem mostrar como são bons para fazer “sala” e transformam tudo em sala de estar. Acho que é o local com mais sofá por metro quadrado da paróquia. Às vezes, no meio daquele monte de sala de estar achamos uma privada:
- Olha, que mau gosto. Colocaram uma privada na sala.
- Sala? Isso aqui é o lavabo da casa.
Tem sofá no jardim, sofá no banheiro, sofá na cozinha, sofá no terraço, no quarto e na garagem. Está certo que sofá é um lugar delicioso para se ficar, mas não é preciso exagerar. É, acho que ter estilo é isso. Você já foi a Casa Cor? Vai lá ver. Haja sofá...
*

terça-feira, 12 de outubro de 2004


No dia das crianças

o sábado e a pomada

*
Era um sábado. Um dia, algum tempo atrás, os sábados à noite tinham outro sentido na minha vida. Tudo podia acontecer, e se minha vida tivesse que tomar outro rumo, tomaria num sábado. E de noite. Claro.
Hoje as coisas são diferentes. Esse sábado sequer estava sendo lembrado como um sábado, era uma reles noite no cotidiano da família, um dia à toa, sem data e sem localização no calendário. Era hora do jantar, passava das dez da noite. Foi quando a Nani, minha filha do meio, resolveu fazer um tipo moderno de sopa para ela, dessas instantâneas e horríveis, que anunciam na tv. Ferveu uma água, preparou, mas na hora de colocar no prato, tropeçou no pé do pai e derramou aquele negócio fervente na mão dela. Deu um gritinho.
"Uiii".
Deve ter doido muito, a tal sopa estava borbulhando. Ela passou a chorar feito criancinha. Corri para olhar. Para cuidar.
"ÔmeuDeus, como foi derrubar, filha?".
A mão estava vermelha, inchada, ela chorando. Coloquei água fria, paninho, "calma menina, a mamãe já passa uma pomadinha, a gente cuida, não foi nada, calma". Fui direto na caixa dos remédios. Cadê o diabo da pomada de queimadura? Ué. Nada. Procurei quem nem doida. Sumiu, desapareceu. Aquilo me deixou enfurecida. Quem tira duma caixa uma pomada importante como a pomada de queimadura e não coloca de novo no lugar? Pomada de queimadura é uma pomada urgente, não dá para ficar procurando, tranqüila e catarolando. E coisas urgentes devem ser fáceis e acessíveis.
Nada da pomada: nem na caixa de remédio, nem no armarinho do banheiro, nem no móvel do corredor, nem no meu armário de roupas, nem em nenhuma gavetinha de coisas perdidas.
A Nani choramingava, tristonha, fazendo um certo esforço para ser corajosa. Olhei para ela, melhor desistir de rodar a casa em vão.
"Eu vou comprar, querida, dois minutinhos e já volto".
Sair de carro, à noite e sozinha, sempre me parece uma grande aventura. Talvez fossem os resquícios das lembranças dos sábados à noite de antigamente, aqueles, que eu esqueci como eram. Saí apressada, era mais ou menos como cumprir uma missão rapidamente. Era ir à farmácia, comprar e remédio e levar para casa, dentro do menor espaço de tempo que fosse possível.
O estacionamento estava vazio. Parei meu carro e entrei correndo, eu era única pessoa ali dentro. Apesar das farmácias exercerem uma grande atração pela quantidade de produtos, resisti e fui direto ao balcão, com minha pergunta na ponta da língua.
"Moça, preciso de uma pomada para passar em queimadura. Já comprei uma vez, era uma pomada com o tubo azul, mas não me lembro o nome. Sabe qual é?".
Com a pomada na mão, fui direto para o caixa, abrindo a bolsa para pagar, mas tive que parar.
Já tinha alguém ali. Alguém mais rápido do que eu, que deve ter entrado depois de mim, pego algum produto e chegado ao caixa antes. Assim, me prostrei atrás da pessoa, em fila.
Era um homem. Um pouco grisalho, um pouco mais velho do eu. Pelas costas parecia uma pessoa comum. Suspirei, pensando. Um pai de família, que também tinha saído de noite para comprar uma pomada de queimadura ou um remédio para febre de algum dos filhos. Aquelas eram umas costas familiares, simples. Costas paternas, pensei, achando divertido aquilo. Acho que eu me identifiquei com elas. Com sua curvatura, com seu tamanho e seu suspirar. Espelhei-me naquele homem-pai, ali, num sábado não mais sábado, exatamente como eu, morno e parado ali na frente, os dois em fila, os dois esperando alguém aparecer no caixa da farmácia numa noite. Era nesse ponto que eu queria chegar. Pois, se eu não olhei para o rosto do homem, também não olhei também para o que ele tinha nas mãos, supondo que, claro, seria um tubo de pomada de queimadura como o meu. Além disso, a idéia da existência daquela casualidade, daquele encontro lindo de um homem-pai qualquer com uma mulher-mãe qualquer comprando a mesma coisa, num sábado, numa farmácia, era confortadora. Notar, ao acaso, que alguém vive uma vida semelhante à sua, dá forças para continuar. É como se todas as coisas estivessem tediosas, mas corretas. Era um aval para ir adiante.
Foi quando ele notou que eu estava ali, atrás dele. Virou-se, mas rapidamente me deu as costas, tímido. Aquilo me intrigou. Percebi que ele ficou tenso quando percebeu eu e meu tubo de pomada ali atrás dele. Tudo foi muito rápido, mas perceptível. Aquelas costas passaram a esconder alguma coisa. Passaram a me temer, e aquilo me incitou a descobrir o que seria.
Ainda ninguém no caixa. Alguém gritou de lá do balcão, chamando o rapaz, que provavelmente não sabia que tinha aparecido um cliente. Silêncio na nossa fila. Eu já mais curiosa com aquelas costas encolhidas. Arrepiadas. Comecei a dar uns passinhos para o lado, para poder olhar para a cara dele. Poderia ser impressão minha, ele não poderia ser quem o tipo de homem que eu supunha. Poderia ser um menino, ou um senhor muito idoso, ou quem sabe um estrangeiro ou.
Hã? Camisinhas?
Por mais que ele tentasse esconder, aquilo estava nas mãos dele. Era impossível eu não olhar de novo e de novo, para ter certeza que aquilo era verdade. Camisinhas. E, a cada relance de olhar meu, ele ficava tão envergonhado que se encolhia um pouco. As costas se apertavam tudo que podiam, e o tal pacotinho preto crescia mais e mais nas suas mãos, chegando a proporções imensas. Céus. Camisinhas gigantescas.
Olha, aquilo era uma coisa de pesadelo mesmo. Ele devia estar na maior vergonha, para me passar aquela sensação. Foi nessa hora que eu entendi que toda a impressão que eu, com meu tubo de pomada nas mãos, tive dele, ele também teve de mim. Sim, éramos semelhantes, insuportavelmente semelhantes dentro daquela farmácia. Tão parecidos que ele, com aquele pacote ardente, sexual e indecente nas mãos, se encolhia de culpa e de vergonha da mulher-mãe com a simplória e banal pomada de queimadura. Seria impossível, claro, que eu precisasse daquela pomada de queimadura por algum tipo de perversão sexual ou coisa do tipo. Assim, estava claro que estávamos em horas e momentos diferentes. Pelas nossas regras, eu parecia correta e ele, completamente inadequado. Ele tinha uma cara de quem estava morrendo de vontade de engolir aquela camisinha e pegar uma inócua e santa cartela de novalgina na prateleira. Tinha uma cara de quem estava se sentindo fora dos padrões, fora dos princípios éticos do mundo dos pais casados no sábado de noite.
A santa e o pecador. A freira e o tarado. Sei lá, alguma coisa do tipo.
Tudo pode ter se passado em menos de um minuto, mas o tempo contido naquela compreensão ia muito além dos muitos anos dos casamentos, o meu e o dele. Éramos ali, aparentemente, apenas um homem e uma mulher do mundo, um homem e uma mulher que um dia poderiam até ter se encontrado e casado, um homem e uma mulher que poderiam ter namorado e feito amor, um homem e uma mulher que poderiam ser atraídos pela natureza de cada um, apenas um homem e uma mulher próximos, colados e juntos numa fila. Mas nunca um homem e uma mulher puderam estar tão parecidos e tão distantes um do outro.
Eu gostaria muito de poder falar isso para ele, naquele momento, e mostrar o que me impressionava naquela situação. Que aquele homem ali na frente precisasse de camisinhas no meio da noite de sábado era o de menos. Quanto a isso, sorte dele. O problema não era ele e suas camisinhas, e nem eu e a minha pomada.
O problema era o acaso, a distância entre nós dois e a transparência poética desta diferença. E, céus... O quanto eu teria que mudar minha vida para que eu pudesse ter uma necessidade urgente de comprar camisinhas numa noite de sábado?
O rapaz do caixa apareceu. Ele pagou, e saiu. Eu paguei, saí atrás.
Saí dali com minha pomada e com minha vida toda. A solidão do meu sábado ficou toda com o homem da camisinha. Saí isolada, mas encontrada. Sai sem ser mais mãe, sem ser mais mulher, sem ser mais humana do que estava antes, mas sai rindo muito. Saí, como quem viveu a navegando à deriva por muito tempo, e uma hora, num sábado à noite, toma conhecimento de onde está e leva o maior susto.
Bem, cheguei em casa com a pomada. A Nani dormia, tranqüila, no sofá. Enquanto passava a pomada, vi que a mão dela estava vermelha, mas que não tinha bolhas. Não era tão grave, pensei.
Ah. Nada nesse mundo é tão grave. Ainda bem.
*

sexta-feira, 8 de outubro de 2004

Yeats

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"Tivesse eu as roupas bordadas do paraíso, tecidas com luz dourada e prateada, o azul e o escuro e os negros panos da noite, e a luz e as metades- luzes, eu espalharia essas roupas sob os teus pés. Mas, sendo pobre, tenho apenas os meus sonhos. Eu tenho espalhado os meus sonhos sob os teus pés. Por isso, pise suavemente; afinal, você está andando sobre os meus sonhos".

("He Wishes for the Cloths of Heaven" - Willian Butler Yeats)

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A maior arvore do mundo Posted by Hello

quinta-feira, 7 de outubro de 2004


Em marte Posted by Hello

Um pedaço de um romance

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A vida dela, às vezes, também não tinha a menor graça. Ela não sabia viver, só fazer ficção. Precisava sempre de um cenário, precisava sempre de gente ao redor. É, personagens, um monte deles. Era melhor não perguntar muito, que ela não saberia responder ou explicar porque as coisas eram assim. Era assim, era apenas assim.
Ela era uma moça perdida, buscava uns sonhos bobos, inventava, mentia o tempo todo, era medrosa, não ia nem ao cinema sozinha, vivia em casa, era comportada, trabalhava feito maluca e precisava de tempo e de paz para poder escrever. Não desejava mal a ninguém, não fazia maldade, mesmo depois que descobriu o quanto as palavras podem acariciar, arranhar ou machucar. Elas, essas tais palavras. Essas irritantes palavras que se impregnaram nela como feridas secas, que a faziam chorar mais que música, mais que medo, mais que alegria. Que ela podia fazer? Escrever era a sua prisão, o seu asilo, sua escola, sua cama toda suja de porra. Era mais do que isso. Era aquilo que crescia dentro do seu corpo e que precisava ser expelido, como um corte na pele, como um fluxo de sangue que não cabe na veia, como uma lágrima que explode de dor diante dos olhos. Era completamente obsessiva pela escrita, escrevia como quem atacava um inimigo numa guerra, como quem fazia amor, como quem tinha uma fome ancestral. Escrever era mais que apenas viver. Era algo que a fazia grande, que a fazia existir mais do que existia naquela porcaria de mundo real. E, se escrever a fazia rir, é porque era preciso rir naquele momento; se a fazia chorar, é porque era absoluta a necessidade de perder o controle. Era muito, muito mais que isso. A escrita existia apenas porque ela queria ser normal, porque ela queria ser querida, porque era carente de tudo e de todos, porque ela era uma mulher triste, e porque na verdade ela não entendia nada. Porque era apenas mais um mísero momento da vida. E porque era lindo.
Ela deveria pensar onde é que aquilo ia dar. Onde era o começo e onde seria o fim. Mas essa era a parte chata da história. E nesse dia ela não escreveu nada, nadinha, embora o romance já tivesse começado."

Os olhares da Silvia Posted by Hello

quarta-feira, 6 de outubro de 2004

a colher de chá

hummm... acho que vou publicar essa crônica na coluna...
*
Ter filhos muda a vida duma mulher.
Primeiro que, de um dia para outro, você passa a conviver com uma mulherada danada. Sei lá de onde vem tanta mulher logo depois do nascimento de um bebê. Entopem a tua casa e a tua vida, não tem cafezinho que chegue. Cada uma vem com um presentinho na mão e setecentas mil dicas inúteis e infalíveis.
Anos atrás, essas mulheres ensinavam as outras a cuidar dos filhos. Educar era uma sabedoria passada através de gerações e amigas. Hoje não. Elas vem e te indicam profissionais, cursos, equipamentos e babás. Resultado: não sabemos mais fazer mais nada sozinhas.
Quando nós nascemos, éramos bebês idênticos aos bebês que nascem hoje. Pode parecer que estou falando bobagem, mas um bebê não é igual a um carro, que a cada ano muda de modelo. Existem hoje muitas inovações na medicina, até geramos bebês a partir de laboratório, mas as crianças nascem iguaizinhas, com o mesmo design e motor. E, se antigamente as mães cuidavam dos seus filhos sozinhas, por que nós precisamos de tanto manual de instrução? Será que perdemos nosso instinto maternal natural?
Acho que entendo. É que um bebê é simples demais, não nasce junto com uma lista de regras ou um DVD explicando como utilizar. Não é possível alguma coisa ser tão simples para funcionar e não precisar de mais nada além de você. Além disso, tem outra coisa meio estranha: depois de ter um bebê, alguma coisa torna as mulheres modernas, sempre tão inteligentes e sabidas, meio lentas para raciocinar.
A pediatra dos meus filhos me contou uma história engraçada. No meio da noite tocou o telefone dela. Era a mãe de um bebezinho com febre, atrapalhada e nervosa. Ela explicou para a mulher calmamente.
- Olha, faça o seguinte: dê um banho nele, cinco gotas de um antitérmico e...
- Ai, doutora, espera, espera... – falou a moça – fala mais devagar, por favor. Como que é? Cinco gotas?
- É. Cinco. Um, dois, três, quatro e... cinco – a médica repetiu.
- Cinco... cinco, tá. Mas... como é que eu dou para ele? – falou a mãe, aflita.
- Ué, com um conta-gotas, com uma colherzinha. Tanto faz – explicou a doutora – O importante é dar o remédio.
- Como? É complicado demais. Colherzinha? Mas... de que tamanho é essa colherzinha? – disse a mãe, confusa.
A médica conta que teve vontade de rir, a mãe simplesmente não entendia nada que ela falava.
- Uma colher de chá ou café, pequena... bom, de um tamanho que caiba na boca dele, claro – explicou.
- Hã? Colher de chá? Assim, colher... da gaveta? Da minha gaveta? Das que eu uso? – perguntou a mãe – Por favor, doutora, vai devagar que está complicado. Tem que ferver? Esterilizar?
- Olha, pega uma colher limpinha – falou a médica, paciente – Só isso. Se as suas colheres de chá estiverem muito sujas, ferva. E dê o remédio para ele que ele vai melhorar. Certo? – ela concluiu, tentando encerrar o assunto.
- Espera, não desliga, doutora! – implorou a mãe – E... por onde que eu dou?
- Como, “por onde”? – estranhou a médica.
- É... para dar pela boca dele?
- Pela boca dele, claro! – a médica respondeu, espantada.
- E se não entrar? E se ele cuspir? – falou a moça, quase chorando.
- Coloca de novo, dá um jeito! Senão, se ele vomitar, podemos tentar um supositório de...
- Não! Nem pensar! – desesperou-se a mãe – Ei... mas quantas gotas eram mesmo?
- Cinco! – riu a médica, diante da confusão.
- Do que mesmo? E... como mesmo que dava? Explica, só mais uma vez! PeloamordeDeus!
Olha. Acho que não merecemos mais ser mães. Perdões, meus filhos. Pensando bem, não me lembro direito, mas acho que já ouvi esse diálogo em algum lugar. Será que essa era eu?
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Depois de vinte anos, a gente ainda juntas Posted by Hello

João, olha a sua foto, que delicia! Posted by Hello

A deliciosa paella do sábado Posted by Hello

terça-feira, 5 de outubro de 2004

Uns pensamentos antigos...

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Dizem que mulheres em geral são um pouco preguiçosas mentais. Mas acho uma grande bobagem achar que não existe aprofundamento num pensamento feminino. Tem até mulheres que afundam tanto que encalham dentro da vida. Por isso sempre fiz esforço para ser o mais leve possível, dentro da minha vida e na vida dos outros. Pensa bem: uma moça leve tem muito menos possibilidades de encalhes. Meu maior medo na minha adolescência era esse: encalhar e afundar, compacta como uma âncora. Uma solteirona, sem saída, enclausurada e sem ar. Igual a minha tia, que entregou a vida ao trabalho, provou que era melhor que muitos homens, mas foi a mulher mais solitária desse mundo.
E hoje ela é tão velhinha, e tão carente.
Eu estava na casa dela e ela me pediu para ficar ao lado. Estava um pouco doente, de cama. Eu sentei ali e ficamos as duas olhando o nada. Ela, velhinha, pegou na minha mão. Me perguntou se quando a gente tem um marido a gente faz isso. “Isso o quê, tia?”, perguntei. “Ficar de mão dada, na cama, quando se está doente”. Eu falei que sim, claro. “Muitas vezes, tia, na cama, no sofá, em todos os lugares, e mesmo quando não se está doente!”, respondi. “Sem falar nada um com o outro?”, ela me perguntou.
“Umas vezes sim, outras não, tia. Depende”.
Ela ficou calada e muda, um tempão. Depois me disse: “acho que isso deve ser bem melhor que aquilo”.
“Aquilo o quê, tia?”
“Aquilo que casais fazem na cama”.
Ela explicou melhor, em claro e bom tom.
“Sexo”, ela me disse, “eu falo de sexo, menina. Isso é melhor que sexo. Não é?”.
Talvez ela tenha compreendido muita coisa, depois de tantos anos e tanta falta de amor. Sim, minha tia. Deitar numa cama e poder dar a mão a alguém, sem ter nada para falar ou ouvir, e apenas olhar o teto é muito bom. Não sei se é melhor que sexo, como ela quis achar, mas é muito, muito bom. E ser mulher é descobrir isso e querer isso.
Mulheres são mais voláteis, só isso. Acho que só assim, achando que somos voláteis e leves, que podemos sobreviver com tantos hormônios... Hahaha.
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... Posted by Hello

Cotidiano

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“...
Você estava em pane. Eu não dizia nada.
Eu não dizia nada. O homem de pedra fazia sopa.
A mulher em chamas a tomava.”

“Febre”, Ted Hughes
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A maravilhosa capa do meu primeiro livro! Posted by Hello

segunda-feira, 4 de outubro de 2004

Os acidentes de percurso

*
Peitos me dão um pouco de aflição. Sempre dei graças a Deus de não tê-los grandes demais. Uns apêndices úteis, concordo. Me foram muito úteis, ainda mais quando cresceram enormemente depois do parto e deram muito leite aos meus filhos. Inchados, gordos quentes, latejantes, eles ficaram.
Um dia, na maternidade depois de um dos partos, entrou uma enfermeira e me viu naquele estado: com febre alta, com mais leite que o bebê poderia mamar e com os braços abertos diante da imensidão das minhas mamas. A mulher me olhou com a maior dó: uma moça entregue à vida selvagem, entregue ao despejar de leite, largada e dominada pela sua incapacidade de ser bicho. Nunca imaginamos, nós, mulheres modernas, estudadas e formadas, que podemos ficar reféns da natureza: quem era eu? Nada, uma mãe, mais uma delas. A enfermeira gorda entrou no meu quarto, me olhou e eu aceitei aquele olhar piegas e piedoso como um bicho abatido e largado.
"Me salva", de alguma maneira eu disse à ela, "por favor me salva", eu repetia dando um sorriso besta com cara de coitada. "Me torna gente de novo". A enfermeira sorriu. Era uma mulher como eu, sabia de tudo e encarava meu desespero com uma certa malícia. Chegou perto e me pediu que mostrasse à ela meus peitos. Vergonha? Não, de modo algum. A minha dor era muito mais funda, como se eu nunca mais saísse dali, de dentro da minha carne.
Ela não hesitou em enfiar suas mãos úmidas em minha pele, e, pouco a pouco começou a me ordenhar como fazem com os animais, com as cabras, as vacas. Eu estava esguichando desordenadamente, vertendo assustadoramente muito líquido, sem controle, sem mais por onde espalhar. Era patético, desesperador e desconcertante, mas aquela era eu. Chorar naquele momento era pouco. A mulher tirava o meu leite de dentro do meu corpo com as mãos, fazendo movimentos contínuos, apertando, machucando e me salvando. Olha. Aquilo não era dor. Aquilo era compreensão pura de ser bicho. Nada além de umas mãos sobre um corpo, nada além da pressa da natureza de esvair-se.
Não sabemos mais ser mulheres. Me assustei com isso, mas foi a primeira vez que vi o outro lado, atrás da redoma de vidro na qual me fechei para poder sobreviver de modo asséptico. O lado cruel e doloroso de ser mãe moderna é esse: temos que fingir que não há dor, que não há leite, que não há filhos. Derrapamos na própria existência, caímos no chão e choramos todos os dias, mas evitamos a verdade.
Mas, quer saber? Naquela hora de bicho, na dor única do nascimento e da natureza, percebi que esse é o único lado que tem a verdadeira feminilidade, alcançando o lamentável e indecoroso limite do belo. Fundi-me com elas, todas as fêmeas desse universo. Poderia, naquele instante, vomitar, urrar, me debater, espumar, verter ou morrer. Pouco importava. Dane-se. O leite precisava sair.
Aliás, as coisas pouco importam.
Morrer a gente morre a cada dia, nascer a gente nasce a cada instante que respira.
O resto, acho eu, são acidentes de percurso.
*

Nossa...

***
E existem dias. Dias que todas as coisas da vida me parecem muito estranhas. Sabe-se lá porque isto ocorre, aparentemente tudo corre bem, mas de repente começo a olhar tudo com olhos tão esquisitos. Andar de carro me parece estranho, conversar me parece estranho, entender tanto as pessoas me parece estranho. E assim sendo eu me calo um pouco, achando-me absolutamente a mais estranha de todos.
Tento tantas formas de entendimento para a releitura das emoções e nenhuma delas me basta. Bastar? Mas, na minha pequena opinião, talvez o "bastar" esteja justamente neste não encontrar nunca.
Nossa, estou densa demais para uma segunda feira, não é? Pesada e arrastada, assim não chego nunca. Onde? Sei lá. Fins de semanas pressupõe leituras, e comigo sempre isso é muito complicado – muitas leituras me tiram do meu estado de consciência. Aquele estado de mãe, de dona de casa, de arquiteta, de profissional que precisa ganhar dinheiro. Me embrenho num mundo imaginário tão delicioso que custo a sair dali, me agarro às bordas, seguro nos batentes, peço, imploro à mim mesma, mais um pouquinho, só mais um pouquinho.
Nossa, estou complicada demais para uma segunda. Andei lendo e escrevendo, só isso. O que? Ah, ainda não acabei, não encerrei e não posso dizer o que li e o que ainda não escrevi. As minhas leituras são um pouco assim: tem um fim, sabe-se lá quando. Pode ser depois de meses que acabei a leitura. Uma amiga minha me pediu para emprestar um livro. Não posso, eu disse, já acabei de ler, mas ele ainda não acabou comigo. Não posso me desgrudar dele, do tal livro, e embora ele já ocupe um espaço na minha estante, ele ainda não é história, ainda está contido em mim. Ela ficou desconfiada, me olhou torto. Mas tem gente que sabe do que eu falo.
Nossa, estou confusa demais para uma segunda. Um dias os textos que eu escrevi vão sair de perto de mim e eu vou ficar livre deles. Eu misturo muito a realidade com a escrita, adoro fazer isso,e as vezes acontece o contrário, de misturar a escrita com a realidade.
Fiz uma coisa pavorosa, eu fui escrevendo, escrevendo e matei um animal. Animal? Esse é o problema. Não sei se foi um animal que eu matei escrevendo. Mas matei, matei da forma mais bruta, indecifrável e violenta que um ser humano pode matar um outro ser. Matar, ao pédaletra. Porque eu fiz isso, me diz? É uma eterna busca de limites que eu tenho, ou uma brincadeira que foi longe demais. Escrever é muito, muitíssimo mais perigoso do que eu brinco que é.
Existem dias, não é? E este dia acordou um tanto estranho, eu me sinto confusa e as palavras me atrapalham. Um dia alguém vai ler meus textos e vai ver como eu posso ser cruel, tão cruel ao pé da letra, e me ajuda a entender porque tudo é tão estranho.
Umasegundafeiraemseteparágrafos.
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domingo, 3 de outubro de 2004

as bandeiras

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Sempre achei bandeira abanando a coisa mais linda. Aquele pano zanzando no espaço, dançando no vento.
Acabei de passar de carro numa avenida, o lugar estava cheio de bandeiras de um tal candidato. Bom, daqui a pouco tem eleição, claro. Achei bonito, aquela rua movimentada, muita gente andando, aquelas bandeiras flanando, de cá para lá. Parecia que as coisas estavam na maior animação.
Mais ou menos. O trânsito parou, eu olhei direito para os lados. Aquelas pessoas abanando, abanando... êpa.
Olha, tinha um problema muito sério ali. Aquelas pessoas que abanavam as bandeiras estavam erradas. Eram pessoas pagas para abanarem bandeiras. Estavam fazendo aquilo por obrigação. Era um trabalho: abanar a bandeira do candidato nas calçadas das avenidas das oito às seis. Ninguém estava, digamos, feliz de abanar bandeira. Alguns até bocejavam abanando. Um outro abanava e falava no celular. Duas moças abanavam e conversavam, alheias ao abano.
Gente, o que era aquilo? Não tem graça nenhuma uma bandeira abanada assim. É irritante perceber essa vulgarização do abano de bandeira. É triste demais ver abanos infelizes e indiferentes. Abanar bandeira é e deve ser, sempre, conseqüência de uma grande felicidade. A força do abanar deve vir de lá de dentro da gente. Mais: a ânsia de um abano vem de dentro do âmago humano. Ânsia, abano e âmago. Is-so-mes-mo. E gente que abana bandeira de verdade, de verdade mesmo, abana sorrindo, gargalhando, berrando. Num descontrole total.
Está tudo errad. Alguém precisa avisar logo esses candidatos. Contratar gente para abanar bandeira para você é como contratar torcedores fanáticos para torcer em um jogo. Ou pagar alguém para te beijar apaixonadamente. Não, não. Não se pode pagar pela paixão, pelo entusiasmo, pela obsessão extravagante dos apaixonados.
Iii...isso tá parecendo campanha de partido. Mas paciência. É só uma opinião.
***

porque ninguém chega na hora que a gente convida?

***

Você é a dona da festa. Convida para às nove. Às nove, pronta, você entra na sala e olha para os lados.
Ninguém.
Nove e meia, ninguém. Melhor tomar um vinhozinho para relaxar. Sentar não. Amassa a roupa.
Dez horas.
Ninguém.
Mais um vinho. Senta-se, dane-se a roupa. Que amasse.
Dez e meia, nada. O marido olha e te fala (como ele é irritante quando quer ser): "...iii... tô achando que não vem ninguém nessa nossa festa..."
Dez e quarenta e cinco, você olha "p" da vida para ele e fala: "É. Acho que não-vai-vim-nin-guém-mes-mo!".
Ele concorda, calado, e dá um bocejo.
Onze horas, quantos vinhos já tomou? E aquele homem ali, é o teu marido ou o garçon?
Confusão, tontura. Melhor deitar no sofá.
Onze e meia, um desespero total. Ninguém!
Toca a campainha. Uma pessoa que você nunca viu na vida. Amigo-do-cunhado-da-prima. Dá vontade de chorar. Ainda bem que teu marido faz sala.
Meia noite e meia? A festa está ótima, animadérrima, lotada.
E a dona? Dona? Que dona? De quem é a festa mesmo?

***

sexta-feira, 1 de outubro de 2004

virou cronica!

*
O churrasco do Zé virou crônica de site. Dei uma melhorada no texto, que ficou mais caprichadinho e descobri que foi publicada hoje de manhã.
O churrasco do Zé

- Zé, vou convidar algumas pessoas para um churrasco no sábado. O que acha? Você topa fazer?
Ele me olhou por cima dos óculos.
- Sábado agora? Aqui em casa?
- É. Umas vinte pessoas.
- Putz, vinte pessoas, Lú? É muito... Eu vou ter que trabalhar demais para fazer um churrasco para vinte pessoas. Nem vou aproveitar.
- Zé, desses vinte, pelo menos dez são homens e teus amigos. Eles te ajudam.
Aquilo o deixou incomodado. Ele deu um pulo.
- O quê? Tá maluca?
- Maluca porquê? Falei alguma coisa errada?
Ele me olhou com cara de espanto.
- Você quer colocar outro homem na frente da minha churrasqueira? No meu quintal? No meu jardim, na minha casa? – ele me olhou apavorado – E quer que eu divida o meu churrasco com ele?
Eu tentei explicar, mas ele não me ouvia. Parecia que eu estava traindo meu marido. Começou com a maior discursaiada.
- Para quê? Para ele estragar tudo? Para ficar dando palpite no meu modo de fazer? Para pegar os méritos no meu lugar? Há. Essa é boa. O meu churrasco é ótimo, tenho mais de vinte anos de prática, imagina agora eu ter que fazer com outra pessoa... ora, essa é boa...
Diante da minha expressão boquiaberta, ele começou a explicar.
- Olha, vou te explicar uma coisa. Um churrasco é uma criação de um único homem. É um produto que tem autoria. Não se pode, nunca, colocar dois homens diante de uma churrasqueira.
Percebi que existe uma lógica masculina muito especial numa cerimônia de churrasco. Fazer um churrasco é como celebrar uma comunhão entre um homem e a carne que ele vai comer. Um homem fazendo um churrasco, mesmo num mundo moderno como o nosso, representa a imagem do caçador orgulhoso diante da caça. Tudo bem que ele, o homem diante da churrasqueira, não caçou aquela carne, mas ali ele tem o controle absoluto do poder. O churrasqueiro é o líder. O poderoso. Sei lá, acho até que num churrasco o mais importante não é nem comer, e sim pilotar aquela máquina de fogo e carvão. O Zé continuava me explicando.
- Uma churrasqueira, Lú, é como... é como a esposa da gente, ou como a nossa caixa de ferramentas. Não se divide mulher, nem caixa de ferramentas e muito menos um churrasco. Entendeu? – ele concluiu, definitivo.
- Zé... – Eu estava pasma – Você está me comparando com uma picanha e com aquela caixa velha e enferrujada onde você guarda as suas ferramentas?
- Num certo sentido... sim. Essas são as preciosidades de um homem – ele disse, sorrindo.
Gente do céu. Aquilo era inacreditável.
- Por isso, homem nenhum deve se meter no churrasco do outro. Jamais.
Eu suspirei fundo. Tudo bem, eu tinha entendido, mas eu podia ou não chamar os amigos? Da próxima vez, pensei, farei uma macarronada, que é menos complicado e não mexe com a masculinidade de ninguém.
- Zé, mas... e aí? Posso ou não convidar nossos amigos no sábado?
Ele deu um longo suspiro, resignado.
- Você disse vinte pessoas? Tsc, eu me viro. Mas faço sozinho! - ele exclamou - Eles vão ver o que é bom pra tosse. Ora bolas, imagina outro cara vir meter o bedelho no meu churrasco... que idéia mais absurda...
Foi quando ele se lembrou.
- E por falar nisso, onde foi parar aquela minha chave de fenda pequena? Alguém mexeu na minha caixa de ferramentas essa semana? Olha lá, hein? Já avisei, não pode...
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