Tivemos que acordar de madrugada, pois uma das crianças estava com febre e dor no ouvido. Acabamos levantando nós dois, eu e o Zé, para dar remédio, esquentar uma bolsa de água quente, fazer um pouco de carinho, essas coisas. Quando ele melhorou, fomos para a cozinha tomar um chá.
O Zé colocou as xícaras na mesa e foi esquentar a água. Eu tomo sempre chá sem açúcar, ele com açúcar. Ele pegou uma colherinha, estava morrendo de sono, bocejando. Ficou olhando a colher, olhando, girando nos dedos.
- Que foi, Zé?
- A colher de chá... tava pensando nela.
- Quê?
- Eu estava pensando que numa gaveta, as colheres de chá são tão desprezadas, não acha?
- Colher de chá “desprezada”? Por que, Zé?
- Pensa uma coisa. Nem existe lugar para elas. Ficam no canto, meio de lado na gaveta, junto com as colheres de café, junto com um monte de canudos, espetinhos. Mais ou menos no lixão da gaveta de talheres.
- É... pode ser.
- E nem são usadas. As de café são usadas o dia todo, as de chá tão pouco... dá um pouco de dó. Se você não acha a colher de chá pega qualquer outra no lugar dela, qualquer outra colher serve para mexer o chá.
- Zé. Eu tou maluca de tudo ou você está comparando as pessoas do mundo com... talheres?
- Pode ser. Mas tem dias que a gente tá ótimo, animado, cheio de idéias, “se sentindo” o tal. E tem dias que eu me sinto... uma colher de chá, sabia?
- Mas... mas o que você queria se sentir? Uma concha de sopa?
- Claro que não. Imagina que horror, uma concha de sopa. Gordona, feia. Quéisso. Eu queria ser era aquele garfão, sabe aquele de cortar carne? Aquele que nem sai da caixa do faqueiro de veludo vermelho. Nem vai para a gaveta. Fica lá, no palácio... tem até uma cadeirinha só para ele, numa sala especial, tudo tão bacana. Mas nem sempre me sinto o garfão. Tem dias que me sinto a colher de chá.
- E... as colheres, os garfos, as facas?
- Tudo empregado, trabalhador braçal. Muito úteis, todos iguais demais. A massa trabalhadora.
- Entendi. Acho que entendi. Meio esquisito pensar isso, assim no meio da madrugada.
- E você? Acha que é o que?
- Eu? ... Sei lá, Zé. Acho que só uma colher mesmo. Mas de sopa. Assim, arrendondada, bunduda, com quadril, rebolando nas águas das sopas. Colher é mais feminina, entende?
- Tem razão. (bocejo) Vamos deitar?
E assim eu fui dormir. Feito uma colher de sopa. Como todas as mulheres e mães, que fazem caber dentro delas mais alimento, mais comida. E que são mais delicadas e não machucam ninguém.
Não acha?
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