terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

franka, a diabólica



Viciei, há algumas semanas, num joguinho de palavras cruzadas japonês de números (epa, acho que o correto seria dizer “números cruzados” e não palavras, uma vez que o jogo não tem letras...) chamado “sudoku”.
Trata-se na verdade de um tipo de quebra cabeças, onde você precisa completar seqüências de números de um a nove, em quadradinhos, em diversas linhas e quadrados horizontais e verticais, sem repetir nenhum número.
Me falaram que é um “febre mundial”, esse tal de "sudoku"
Ai, ai. Lá vou em me perder de novo em mais um modismo. Mas um modismo barato desses acho que não tem problema algum em aderir. Um joguinho sem tomada, sem chip, sem internet.
O tal jogo começou a aparecer nos jornais há uns anos. Demorei muito para entender a lógica da coisa, até que um dia, num vôo de São Paulo - Rio, um engenheiro amigo meu me ensinou. Fiz então muitos jogos errando tudo, até entender como funcionava. Quando tive o "clic", foi o máximo. Fiquei então tão entusiasmada, mas tão entusiasmada, que acabei comprando uma revistinha só de sudokus. Estou carregando essa revista há umas duas semanas, onde eu for. Como se fosse um vício. Uma tara. Uma mania.
A tal revista já foi motivo de piada aqui em casa. Primeiro por causa do nome, que acaba em "ku". Óbvio que os meninos fazem trocadilhos. Além disso, ao longo das páginas, os sudokus vão ficando mais difíceis, como se fosse uma prova, um teste de vestibular ou uma aula de inglês. Os primeiros são nível “fácil I” e “fácil II”, depois vem o “médio I” e o “médio II”, depois o “difícil I” e difícil II” e depois vem o .. “diabólico”. E pior. Depois do “diabólico I” vem o ... “diabólico II”.
Uia.
Tenho arrepios de pensar no “diabólico II”.
Estou no "médio I". E confesso, acho que tenho que treinar muito para ir adiante. Depois do “fácil II”, a coisa tem ficado bem complicada.
Hoje de manhã, no meio dos descanso que faço antes de começar outro jogo, fiquei pensando o que me atrai nesse joguinho. Cheguei a muitas conclusões. A primeira coisa que me veio a cabeça é que o jogo me deixa tranqüila porque sei que todas as respostas estão ali. Fazer esse quebra cabeças com números é diferente de fazer palavras cruzadas, onde temos que descobrir as palavras certas. Eu sou péssima de palavras cruzadas. Péssima é pouco. Sou horrível, ruim, nota zero. Nunca a palavra certa me vem à cabeça.
Sempre fui uma negação em jogos de palavras, como “forca” e “stop”. Já no sudoku não. No sudoku não tenho que lembrar de palavra nenhuma: as respostas são números, e os números vão do um ao nove. Um dois três quatro cinco seis sete oito nove. O problema é somente rearrumar.
Um dois três quatro cinco seis sete oito nove.
Foi quando eu comecei a pensar sobre esse negócio de organizar. Na verdade, eu não gosto apenas do sudoku. O que eu gosto é de arrumar as coisas. Sempre gostei disso, de arrumar, apesar de nem sempre conseguir. A outra coisa que me agrada é seguir à uma regra. Reorganizar. A regra é bem clara, e isso é fácil de entender. É isso tudo junto que me deixa tranqüila nesse jogo: tudo está ali, não há o que inventar ou lembrar, basta colocar do modo correto.
Apenas isso.
Acho que é assim que eu gosto e preciso ver a minha vida. É como se eu soubesse que tudo que eu preciso para viver bem está na minha frente. Um dois três quatro cinco seis sete oito nove. Não haverão sobressaltos, nem pânicos de me esquecer da palavra certa. Um dois três quatro cinco seis sete oito nove. Ah. Como eu queria que minha vida fosse como um sudoku. Um dois três quatro cinco seis sete oito nove. São apenas nove números, que precisam a toda hora ser colocados nos lugares corretos e pronto. Um dois três quatro cinco seis sete oito nove.Uma hora o jogo acaba.
E nessas metáforas, lá se foi o carnaval. Tomara que na quinta feira eu já tenha passado de fase.
E que me aguarde a fase diabólica.

domingo, 26 de fevereiro de 2006

uma casa em pleno vôo


Eu vejo essas casas de revista, de filme e de novela e juro, não sei onde errei.
Hoje, por exemplo. Um domingo. Todo mundo em casa, óbviamente sem a empregada, que está de folga. São oito e meia da noite, e parece que passou um furacão aqui. New Orleans total. A bagunça é imensa, fenomenal. Os jornais se multiplicam feito vômito pela sala e cozinha, existe uma multidão de sapatos e sandálias havainanas exatamente na porta da entrada, percebo uma montanha de pacotes e embalagens pela sala e uma quantidade de bolsas e sacolas jogadas por todos os lugares. Roupas no sofá, meias desparelhadas pelo chão. Já a quantidade de pratos e copos espalhados nem se fala. O pior é que já dei uma "limpa" depois do almoço, mas algumas horas bastam para tudo se desbagunçar de novo.
Impressionante. Somos apenas cinco humanos sem trabalhar e sem estudar.
Já fui maníaca de arrumação quando tinha os filhos pequenos e algum controle sobre suas ações. Nos finais de semana, vivia para colocar as coisas em ordem. As crianças tinham que estar limpas, vestidas e alimentadas, a casa tinha que estar um brinco, e os brinquedos (gente, que pesadelo que eram os brinquedos...) tinham que estar nos potes, nas caixas, nas estantes. Eu só ia dormir com tudo no lugar. Afe, como eu era chata. Chatérrima! Um dia me toquei e desisti. A vida se encarrega de nos ensinar a dar de ombros para algumas coisas - acho que para conseguir sobreviver. É mais ou menos o seguinte: ou você desencana ou vai ser infeliz eternamente. Um dia olhei para minha casa, que estava numa zona total, suspirei e saí da guerra: peguei os filhos, o Zé, e tranquei a porta.
- Vamos deixar tudo assim, lu? – ele me perguntou.
- Sim. Voltaremos na hora de dormir. Entraremos direto, deitaremos e nem acenderemos a luz. Amanhã a Maria vem e arruma.
Desde então sou uma mulher bem mais feliz nos finais de semana. Fico a tôa, leio muito, tomo sol no quintal, ouço música. Piso nos sapatos, nem olho a tralha que se acumula. A casa que se dane. Já fui muito escrava dela.
O meu problema não é bagunça em si, mas queria saber como as outras pessoas do mundo resolvem essa questão. São poucas as casas que eu entro nos domingos que são verdadeiramente bagunçadas como a minha. Gente, vocês não sabem do que eu falo. Aqui é beeeeeem zoneado. Gente, a cozinha, a pia... olha, são poucas as cozinhas que eu vejo que são tão caóticas como a minha num domingo a noite. E é pouca gente que eu ouço que reclama de arrumar. É como se as casas alheias se auto-arrumassem. É como se as outras donas de casa fizessem isso com prazer. Eu acho que eu e a minha casa temos algum problema.
Uma vez um arquiteto muito importante, professor meu da FAU, falou sobre isso: a bagunça. Segundo ele, bagunça é criação em estado puro. Um verdadeiro processo criativo precisa ser caótico. Era uma teoria onde, metaforicamente falando, para inventar alguma coisa nova você deve jogar no chão tudo que dispõe e reorganizar. Essa reorganização resultará numa coisa nova, inédita, genial. Segundo ele, o excesso de arrumação significa estagnação. Lugares bagunçados é que são máximo, pois geram arte, poesia, arquitetura, literatura. E, pelo que eu me lembro dessa aula, ele arrematou com uma imagem:
- Uma criação é uma águia em pleno vôo: alcançando altura, gerando ventania, bagunçada, revoando as penas para todos os lados.
Hã?
Bom, sempre que eu olho minha casa como ela está hoje eu penso nessa aula. Sinceramente acho que não tem nada a ver. Por mais que eu tente colocar um sentido qualquer na zona dominical, uma casa com sapatos, embalagens de jornal, bolsas e casacos no hall não me parece muito criativa, nem muito artística, nem muito... nada. Parece apenas bagunçada.
Aliás, parece mesmo que entrou um águia voando aqui dentro.
Mas pra que criatividade no domingo? Prefiro nem olhar. Afinal, a Maria vem amanhã mesmo.

sábado, 25 de fevereiro de 2006

Já repararam?


Hahaha.
A sala de reunião da Belíssima é num hall de elevador - e o elevador atrás da mesa está sempre parado no 23* andar - e o advogado da Júlia se chama "Dejúlia".

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

os frangos ‘popping up’



Outro dia comentei que meus filhos adolescentes acham e-mail coisa de velho, dizem que hoje em dia ninguém mais usa. Segundo eles, o negócio é messenger ou torpedo. E-mail já ficou obsoleto, declararam.
Fiquei intrigada. Como uma coisa pode ficar obsoleta tão rápido? Mas fazer o quê... Existem invenções de vida curta, como walkmans, telefones de disco e e-mails, e invenções de vida longa, como guarda-chuvas, volante de carro, tesouras.
Ah. Pobre e-mail. Quando ele foi inventado, anos atrás, ninguém acreditava que daria certo. Nessa época, um dia, fui numa reunião com um engenheiro. No meio da conversa ele tira um papel da mala e me mostra, exibido.
- Que é isso? – perguntei.
- O e-mail que o calculista me mandou. Leia.
Eu li, e logo em seguida ele me colocou outro papel na frente.
- Agora leia esse aqui, que é a minha resposta... – e ele tirou mais um papel da pasta – ... e depois esse, que é a resposta dele. E tem mais um ainda, que é o que eu respondi para ele.
Eu olhei, pasma.
- Você imprime todos em-mails que recebe?
Ele tirou da mala uma pasta recheada.
- Todos. Minha secretária que faz isso e me dá. Olha aqui – ele mostrou, orgulhoso.
Absurdo. O cara andava com seus e-mails pela cidade, pelas obras, pela vida. Era o máximo receber e-mails, embora fosse difícil acreditar na virtualidade. Depois nos acostumamos. Ficou impossível viver sem conecção, sem internet, sem caixa de mensagens. Mas do jeito que as coisas estão indo, sei não.
Ontem recebi um e-mail engraçado de um amigo lamentando o fim do e-mail e falando uma coisa interessante. Ele diz que atualmente usa e-mail e Messenger, mas diz que se incomoda com a falta de cerimônia da janelinha “popping-up”. E compara a entrada da janelinha com uma invasão: “É mais ou menos como quando você está concentrada em sua casa, trabalhando, e a Maria bota a cara dentro do teu escritório e pergunta se você comprou frango. Não é insuportável?”
Ele tem toda razão. O problema do messenger é que ele é um comunicador meio mal educado, gente. Acho que é ai que mora a minha implicância. Não pede licença, é invasivo, é como se ele não batesse na porta para entrar na sua casa. Aliás, há algum tempo que a nossa tela de computador é um tipo de casa, falaverdade...
Quando trabalhava num escritório grande, com outros arquitetos e estagiários, detestava ser interrompida a cada instante pelas mais insignificantes perguntas. Era como se eu, por estar disponível, pudesse ser interrompida a cada quinze minutos. Depois vim trabalhar em casa, estou aqui até hoje e as interrupções continuam, o tempo todo. Sim, agora é a Maria querendo saber se comprei frango para a torta do jantar, é o filho que entra reclamando que acabou a Coca Cola, é a filha que pede dinheiro para o cinema. Caramba, a vida com suas janelas “popping up” é estressante, e agora nem virtualmente a gente está salvo!
E tenho certeza que, se a Maria tivesse computador, ela ia me mandar um messenger lá da cozinha:
Pop!!!
- Você não comprou frango, Lúcia?
Gente velha, viva o e-mail.
Impresso!
... e gente, a partir de hoje, o "frankamente.." estará todas as sextas também numa sen-sa-ci-o-nal coluna na revista paradoXo chamada falaverdade...
Vão lá conferir, deixem mensagens, falem o que acharam, etc, etc.
E olha que engraçado o pé de página que me deram lá:
"*Lúcia Carvalho é arquiteta, vive no eixo Rio-Sampa mas mora em São Paulo. Foi iniciada na literatura por Mario Prata e hoje é uma apaixonada pela crônica."
Falaverdade, isso não é genial? Sou uma APC: apaixonada pela crônica!

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

fáxcil, fáxcil



- Mãe, tenho um problema.
- Fala.
- A professora hoje deu um texto de português para a gente ler. E eu esqueci na classe.
- Ichi.
- O que eu faço?
- Hummm. Pede para algum amigo ler para você por telefone. É muito grande?
- É. Cinco folhas.
- Bom, então pede para algum amigo te passar por fax.
- Fax? Acha que eles têm... fax em casa?
- Claro, Juca. Muita gente tem.
- Não sei não... Não é mais fácil eles escanearem e me passarem pelo MSN?
- Claro que não. Tá maluco? - Eu olhei fundo para ele - João, vai por mim. Fax é facílimo. A humanidade usou fax por décadas.
- Mãe, mas eu nunca passei um fax na minha vida - e ele olhou fundo para mim - E meus amigos também não, tenho certeza.
- Acredita em mim. Vai. Liga para um amigo e pergunta se ele tem fax.
- Tá.

- Mãe, liguei. O André tem.
- Tá vendo?
- Mas a mãe dele não está e ele não sabe passar. Como que faz?
- Eu ensino. Primeiro desliga o telefone e liga do seu celular para o celular dele.
- André, minha mãe vai ensinar. Desliga que eu vou te ligar no celular. Pronto mãe.
- Fala para ele ficar na frente do fax.
Ele me interrompeu.
- Mãe, ele tá perguntando se a folha dele vem para cá quando coloca no fax e se ele vai ficar sem o texto. Porque ele também precisa fazer a lição.
- Não, João, o que vem é só uma cópia do dele. A folha que ele coloca no fax dele lá fica lá mesmo na casa dele. Tipo entra por um lado e sai pelo outro.
- Ah, tá.
- Então fala pra ele...
Ele interrompeu de novo.
- Mãe, tá grampeado. Ele quer saber se ele tem que tirar o grampo ou se pode passar com o grampo.
- Não, tem que tirar.
- André, tira aí o grampo.
- Agora fala para ele colocar a folha na máquina com a parte escrita virada para baixo.
Ele explicou.
- Agora fala para ele discar o número do nosso telefone.
- Falei.
- Agora fala para ele apertar o botão verde.
- André, tem um botão verde aí? Aperta.

- Mãe, olha! Tá vindo um papel! Genial!
Ele pegou o celular e começou a pular enquanto falava com o amigo.
- André, você não acredita! Tá chegando, deu certo! Hahaha! E olha, sabia que apareceu o nome do teu pai e da tua mãe na folha, antes do texto? Como que é? Ai apareceu escrito “from Lúcia Carvalho” no visor do fax ? Aahahahaah! "Lúcia" é o nome da minha mãe, André! Sei lá como essa máquina, velha desse jeito, sabe quem é quem. Olha o tipo do papel que veio, André, tem até que cortar... Cara, fax é coisa pré histórica, mas o pior é que funciona!
Ele olhou para mim enquanto a máquina ia, lentamente, passando o texto e fazendo seu característico barulho de... manivela.
- Mãe, são cinco folhas. Ele quer saber como que ele faz com as outras.
- Fala para ele colocar na seqüência, Juca. Vai entrando uma por uma.
- André, coloca as outras em seguida. Tipo fila.
Ele olhou para o papel que chegava e continuou falando no celular.
- André, elas vem grudadas. Cara, que absurdo. Que absurdo.
Depois que chegaram todas, ele me pediu para cortar e grampear.
- Obrigadaí, mãe. Amanhã vou mostrar para todo mundo na classe. Da hora. Da hora!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

chuva de pedra



Já disse que gosto muito dos Stones, somente não gosto de ir a shows lotados.
Ouço os Stones há muitos e muitos anos, já dancei infinitamente as suas músicas nas festas da minha adolescência, juventude e maturidade, e tenho algumas das suas melodias e letras impregnadas na minha memória para sempre. Certas músicas, como “Satisfaction” e “Atirei o pau no gato”, são eternas.
Tudo isso para confessar uma coisa engraçada e vergonhosa sobre uma das músicas dos Stones que somente a minha família e alguns amigos (muito íntimos) sabem. Mas enchi, não vou mais guardar segredo sobre esse meu vexame. É melhor que todos saibam quem eu sou, de uma vez por todas. E quer saber? Eu vou contar, e tenho certeza que, depois da minha revelação, a música nunca mais será a mesma para ninguém.
Essas coisas pegam, entende?
É que desde que sou pequena, eu canto um refrão muito errado. E refrão, bem, refrão de rock a gente canta e grita, ou seja, eu já devo ter gritado muitas e muitas vezes, feito uma cretina desavisada, o tal refrão dos Stones totalmente equivocado.
Sabe a musica “Start me Up”? Pois bem, eu sempre achei que eles falavam “Scorpion” ao invés de “Start me Up”. Sei lá porquê, pois é meio diferente. Mas eu ouvia e entendia: “scorpion”. E como escorpião é meu signo, eu tinha certeza que o Jagger cantava mais para mim do que para os outros. Que pensamento mais ridículo. E o pior é que eu tinha até os elepês, e nunca fui conferir o nome da música.
A sonoridade, se vocês pensarem bem, é parecida mesmo. Quando eles cantam “Start me Up...” falam alguma coisa parecida com “estármiooou...” e quando eu cantava (e pensava) “Scorpion...”, falava alguma coisa parecida com “escórpiooou...”.
E, miou por piou, eu ficava com os meus escorpiões.
- Escórpiooou!
Ai. Quantas e quantas vezes eu, no auge da empolgação (ainda bem que na minha juventude não existiam tantas máquinas fotográficas e câmeras), eu não devo ter gritado repetidamente no meio do salão ou da pista “escorpiou”, “escormiou” ou “escorqualquercoisa”.
A empolgação, gente, é sempre bastante vexaminosa.
E confesso mais ainda. Só fui descobrir isso, o que é mais terrível, quando coloquei a música no iPod. Ou seja, há um mês!
- Escórpiooou!
Bem, falar errado por falar errado, sei que não sou a única que faz isso. O Inagaki tem um post clássico e fantástico sobre essa coisa de cantar músicas erroneamente. Vale a pena ir até lá para dar muitas risadas. Ele conta que o pessoal do Pasquim deu até um nome para o “problema” – virundum – e explica: "virunduns são os equívocos que cometemos ao cantarolar músicas (exemplos clássicos: "Virundum Ipiranga às margens plácidas", "trocando de biquíni sem parar", "Alagados, cristal, favela do Avaré")".
Vale a pena conferir, pois o post é muito engraçado.
E, para finalizar, e ainda falando de "pedras rolando", uma historinha. Na semana passada eu estava aguardando meu carro num estacionamento quando um dos manobristas comenta com outro.
- Tá caindo a maior tempestade lá no centro da cidade.
- Vichi – falou o outro – É hoje que eu não chego em casa...
- Ééé – e ele completou – Diz que está caindo até chuva de granito...
E gente, antes que chova granito, não se esqueçam:
- Escórpiooou!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

a coleira e a dona



É uma prima muito engraçada, que na época morava fora do Brasil. Como trabalhava em casa, ficava muito tempo sozinha. Perto da sua casa havia uma loja de animais, e, de tanto passar em frente, se apaixonou por um filhote que ficava na vitrine. Um certo dia, entrou e comprou.
- Que é isso? – perguntou o marido, ao ver aquele filhote rodando a casa.
- Um cachorro. Ou melhor, uma cachorrinha – ela disse, acariciando o bichinho – Não é linda?
- Vamos ter um cachorro aqui em casa? - Ele perguntou, pasmo.
- Já temos - ela declarou, animada - Você não liga, né?
Bom, a minha prima morava numa casa tipo estúdio, com um pé direito enorme. O local era extremamente silencioso, e foi exatamente por esse motivo que ela queria ter a companhia da cachorrinha.
Mas logo no primeiro dia ela notou uma coisa estranha. A cachorrinha latia. E latia muito. No começo ela achou que era implicância, que a cachorrinha estava apenas estranhando a casa. Porém o tempo passava, a cada dia a cachorra latia mais e os latidos eram cada vez mais estridentes. E, sinceramente, em algumas horas ela confessa que tinha vontade de... jogar a cachorrinha pela janela.
- Afe, ela late muuuito – ela desabafou com o marido - Eu não agüento mais!
- Foi você que inventou – deu de ombros o marido.
- Mas ela é tão bonitinha – disse minha prima , tristonha – Será que não tem um jeito dela parar de latir?
No dia seguinte, voltou à loja onde tinha comprado a cachorra. Fuçou aqui e ali e descobriu um produto que resolveria a questão: uma coleira anti-latidos.
- É o seguinte – explicou o vendedor – Você coloca no cão. A coleira tem um botão de liga e desliga. Se você liga, quando ele late, leva um pequeno choque. Não dói, mas assim ele vai associando e aprendendo. Depois de um tempo, basta colocar a coleira desligada que ele não late mais.
Ela hesitou.
- Tem certeza que não dói? – ela perguntou, desconfiada.
- Não dói – garantiu o rapaz.
Levou a coleira para casa ressabiada. Será que aquilo era certo? Ora, o vendedor falou que a coleira anti-latidos vendia muito, então não devia ser maldade. Olhou para a cachorrinha. Dava pena de pensar em maltratar aquela coisinha tão fofa.
Mostrou ao marido.
- Que acha?
- A maior maldade do mundo. Que horror.
- Pára com isso. Não é você que tem que trabalhar e ouve esses latidos fininhos o dia todo – ela argumentou.
- Mas para quê você comprou a cachorra? Para torturar a coitadinha?
- Não exagera. É só um modo de ensinar.
- Sei não.
Mas ela não teve coragem. E se doesse? E se cachorrinha tivesse um ataque e desmaiasse? Foi adiando, adiando, até um domingo, quando a cachorrinha começou a latir logo de manhã. Ela e o marido se afundaram nos travesseiros, tentando abafar o som. Era realmente insuportável. Uma hora ela não agüentou.
- Pode falar o que quiser, que eu vou colocar a coleira nela agora. Não agüento mais.
- Eu também não agüento – falou o marido – Mas confesso que tenho medo de machucar e...
Foi quando ela, num ato de desespero, resolveu fazer aquilo. Ela sabia que era uma idiotice, mas nas horas de desespero a gente é capaz das coisas mais absurdas do mundo. Foi quando ela declarou ao marido que, então, eles deveriam testar.
- Testar?
- Ora, para ver se dói. Se machuca.
- Você está querendo dizer que.
- Sim. Estou querendo dizer que vou fazer isso primeiro em mim. Não quero viver com culpa. Me arrepender depois.
E assim a minha prima, com a ajuda do marido, colocou a coleira da cachorra em seu pescoço. Pigarreou. Ligou a coleira. E, diante da cara boquiaberta do marido, latiu bem alto.
Engraçada essa prima.
Bom, ela conta que, depois que latiu, a coleira realmente deu um choque nela. Era um choque pequeno, mas incomodava. Mas o que aconteceu dali pra diante foi outra coisa. É que o marido, olhando para a esposa de coleira latindo na cama, percebeu o absurdo da cena e começou a rir. E por causa dele, ela, obviamente, começou a ter um acesso de riso maior ainda. E quanto mais ela ria, mais choques ela tomava, e mais gritava, e mais choques tomava, e assim ficou, berrando, rindo e tomando choques até ser salva pelo marido, diante dos olhares boquiabertos da cadela, nessa hora completamente... muda.
Depois disso tudo, ela desistiu da coleira. Segundo ela, não dói, mas era uma sensação muito estranha.
E a cachorrinha?
Ela conta que ela late feito uma condenada até hoje.
- Um horror, mas fazer o quê? Cachorro não tem botão de liga e desliga, né?

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

beijos no asfalto e beijos na montanha



Existem alguns assuntos que, embora não sejam os mais importantes da vida, precisam ser falados, uma hora ou outra. Quando vivemos em sociedade, temos um estranho compromisso com a humanidade de ter opiniões sobre assuntos que são pautas durante algumas épocas.
Em época de eleição isso é evidente. Tudo gira em torno dos candidatos e partidos, e não é fácil disfarçar e não se declarar. Nessa época acontecem coisas engraçadas com os meus amigos. Até então eles são uma grande turma, mas em épocas de eleição, viram duas ou três, que brigam, discutem e se implicam.
- Nossa. Viu o fulano? Viu em quem vai votar?
- Não acredito. Mas todos amigos dele...
- Pois é. Ninguém pensou.
- Mas a ex mulher é...
- Quem diria.
Na verdade, podemos sempre dividir o mundo em diversas 'duas' partes. Lula e Serra, quem vai em show e quem não vai, quem usa bidê e quem não usa, quem tá no orkut e quem não está, em quem entra em blogs e quem não entra, e até quem tem celular e quem não tem – pois tem gente que até hoje se recusa a adotar um celular. Impressionante como conseguem.
Mas tudo isso para falar que, nessas últimas semanas, eu estou sendo pressionada como nunca para dizer o que o eu acho do filme do Brokeback Montain. O mundo se divide em duas partes novamente: quem gostou e quem não gostou do filme dos cowboys gays. Fui assistir correndo na semana passada porque eu e o Zé estávamos completamente deslocados socialmente, boiando nas conversas de jantares, praticamente passando vergonha.
Mas além de assistir, é preciso ter uma opinião.
Então, antes de qualquer coisa, vou me posicionar. Eu gostei do filme. É uma história ótima sobre a repressão aos homossexuais, e qualquer filme, movimento, campanha contra qualquer tipo de repressão eu apoio. E o conflito do cowboy loiro, que não vê solução para aquele amor na vida dele, é emocionante. Quantas vezes não passamos por situações semelhantes onde não vemos saída para as arapucas da vida? Ele não consegue ser nem fazer mais nada. Empaca ali, longe do homem amado, longe do ranchinho. Coitado.
- Não acha, Zé? – repliquei logo que saímos do cinema.
- Achei a fotografia linda, um verdadeiro quebra cabeças – falou o Zé, me zombando.
Ele tem a maior implicância com gente que elogia a fotografia dos filmes.
Pronto. Agora que já fiz minha parte, deixa eu falar o que eu queria. É que eu fiquei pensando o que seria, no nosso universo atual, uma coisa tão chocante quanto ser gay em Wyoming naquela época. Sim, porque na verdade, o que fez o filme ser isso tudo foi a esquisitice da situação. Dois machões não podem se apaixonar naquele tempo e naquele lugar. Era perigoso demais.
Bom, pois saibam que quebrei a minha cabeça para chegar em algo semelhante. O máximo que consegui foi imaginar duas senhoras do interior, já avós, que se apaixonassem, mas isso não me pareceu um grande problema.
Foi quando eu entendi. Nós já fomos anestesiados, gente. Já tivemos as nossas montanhas e os nossos cowboys há algum tempo. Tudo que possa nos vir à cabeça em termos de repressão já nos foi dito pelo Nelson Rodrigues. Aliás, não foi falado. Foi falado, encenado e discutido. A história dos cowboys americanos, sinceramente, não me parece tão terrível e duvido que pareça ao resto do povo brasileiro. Histórias como essa todos nós já assistimos.
E muito.
Bom, mas Hollywood é Hollywood, e eles tem só hoje os seus cowboys gays.
Já nós tivemos o nosso beijo no alfalto há mais de quarenta anos atrás...

domingo, 19 de fevereiro de 2006

sos - salvem os não pulantes



Ontem eu, como milhões de pessoas, passei a noite assistindo o show dos Stones.
Sou da época deles, adoro, tenho discos, dançava nas festas quando era adolescente, era encantada com o Mick Jaegger e sua mega boca, e, claro, assisti ao mega show.
Pela TV, óbvio.
Deixa eu confessar uma coisa: jamais iria num show daquele tamanho. E acho esquisitérrimo que tanta gente pense exatamente o oposto que eu e... vá.
Falaverdade, aquilo é insuportável, gente.
Não é por causa da idade nem por frescura, mesmo quando eu era menina eu não ia. O motivo não é a lotação ou o incômodo, mas outra coisa: eu não entendo qual é a graça de pular e cantar enquanto você assiste à um show. Eu simplesmente não consigo pensar em fazer isso. E nesses mega shows, só se assiste assim.
Pulando e berrando.
Uma vez, na minha juventude, fui assistir a um megashow de rock com uma amiga. Lembro que ficamos mais ou menos lá na frente, um lugar ótimo. No início eu estava animada, me achando praticamente num woodstock, naquela época era muito bacana ser um pouco hippie. Bom, essa alegrai foi só no começinho. Logo que a coisa esquentou, as pessoas ao meu redor começaram a pular e a cantar, berrando muito. Levei o maior susto. Olhei para os lados e vi que todas, mas absolutamente todas as pessoas ali faziam a mesma coisa. Suspirei fundo e comecei a pular junto. Aliás, se eu não pulasse, além de não ver nada, certamente seria pisoteada. Acho que pular é um modo de você desviar do suor nojento dos outros e não se machucar. É uma estratégia de sobrevivência, no fundo aquilo é muito perigoso. Olha, sinceramente? Era muito nojento. Foi ali que eu percebi o quanto era estranho ir a um show de rock. Escuta, para quê pular olhando para o músico? Parecia coisa de fanático de igreja, de aula de aeróbica.
Bom, foram momentos constrangedores. Eu pulava e me via de fora, imaginando a cena ridícula onde eu pulava feito macaca segurando a minha bolsa e fazendo cara de nojo. Além disso, eu estava sem graça e com vergonha de algum conhecido me ver ali.
Vexame.
Já minha amiga adorou. Quando o show terminou, ela me disse sorrindo:
- Nossa, que bárbaro!
Vai entender.
Depois desse dia traumático, decidi. Nunca mais. Se me chamarem para assistir a um show dos Stones e eu puder ter a opção de ficar sentada, sem cantar e nem pular, eu vou. Mas daquele jeito, nem morta.
O problema é que eu não vejo a menor necessidade de berrar só porque o Mick Jaegger está na minha frente. E muito menos ficar histérica e desesperada. Desespero dá na gente quando a gente está numa situação sem saída, limítrofe, perigosa. E assistir a shows tendo que berrar sem legitimidade é muito chato.
Desde então, sempre que mega shows são televisionados, eu presto muita atenção no público. E, ano após ano, noto que as pessoas continuam pulando. Ô tristeza. Tenho a esperança que um dia essa moda mude e que um dia as pessoas que não pulam possam assistir a shows. Porque se tem alguém discriminado nesse mundo, somos nós, os não pulantes. É um absurdo o que fazem conosco. Óbvio que deveriam existir cotas para os não pulantes em shows.
Hahaha... Ichi.
Será que alguém vai concordar comigo?

sábado, 18 de fevereiro de 2006

a moqueca



Olha só. Estávamos com uns camarões no freezer desde dezembro, e hoje foi o dia da moqueca.
Viva o Zé, que inventa de fazer essas maravilhas.
Bom, já eu, que não cozinho, resta aproveitar e propagandear. Em cozinha é preciso um líder, único, que comande todo o processo, que seja o autor absoluto da refeição. Já falei sobre isso uma vez. Não é preguiça da minha parte, é respeito à autoria (ahahah, parece uma desculpa super esfarrapada, mas juro que não é!).
E como não dá para comer moqueca e fazer crônica no mesmo dia, hoje só teve moqueca. Além do que, a moqueca foi regada a pisco e cerveja, e tudo isso (moqueca, pisco e cerveja) são arquiinimigos da minha capacidade de escrever.
Té manhã.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

o cinema de rua

duartina, 1939

- Lú.
- Fala, Zé.
- Não é muito melhor cinema de rua do que cinema de shopping? – perguntou o Zé, enquanto esperávamos na fila para entrar.
- Muito melhor.
- Olha que simples. O cinema é direto na rua. A gente vem, para o carro na porta e entra. Simples assim. Veja, enquanto esperamos o filme, está sol ali. Olha lá! Sol de verdade, não aquelas luzes esquisitas de shopping. Quando acaba o filme você sai na rua e sabe se é dia ou noite. Se chove ou não. Se está frio ou calor.
- É mesmo.
- Olha ali a rua, Lú. Carros... pessoas... calçadas, semáforos, lojas. Quer saber? Isso que é morar na cidade. Temos que falar não à aquelas tumbas fechadas, que se acham auto-suficientes, que escondem questões essenciais do homem e que só cultuam o consumo – ele me olhou e mudou de tom – Olha, você precisa escrever uma crônica sobre isso.
- Sobre cinemas de rua?
- É. Escreve e fala que cinema de rua que é bom.
- Zé, não pode ser apenas assim. Eu não posso chegar e escrever “o cinema de rua é bom”. Precisa ter um porquê para escrever. Além disso, precisa ter um diálogo, uma teoria ou uma história qualquer que ligue, na crônica, o cinema e a rua.
- Ah, mas daí você inventa. Hummm. Deixa eu pensar... já sei. Escreve que estávamos numa fila de um cinema de rua, que houve um acidente e que um carro entrou dentro do hall do cinema!
- Ai, Zé. Que horror.
Ele ficou animado.
- Isso mesmo. Assim as pessoas vão entender que o cinema é na rua. Pensa, na rua tem carro, e, se a gente pensar bem, os carros podem muito bem entrar aqui.
- Zé, mas isso é perigoso. Pode morrer gente nessa sua história.
-Ah, até pode morrer, mas isso não é importante no momento. O importante é você falar sobre o cinema de rua.
- Mas que jeito mais estranho de chegar no tema de uma crônica, Zé. Eu preciso enfiar um carro dentro da sala de espera do cinema e matar um monte de gente para de falar do assunto?
- É exagero?
- Muito. E além disso, as pessoas vão achar que cinema de rua é perigoso, o que é uma bobagem.
- É... tem razão. Mas escreve sobre o cinema, tá? Não esquece.
- Tá. Não esqueço.
Quase esqueci. Isso foi há quinze dias. Depois desse filme vi outro, num cinema de shopping, e quando sai pensei se seria dia ou noite. Não pude saber até chegar lá fora.
O Zé tem toda a razão. Com essa mania e facilidade de ir ao shopping por qualquer motivo, estamos perdendo a noção de como é gostoso morar numa cidade. Tomar chuva, sentir calor, sentir o vento, experimentar o friozinho da noite, sentir o cheiro de uma planta, tudo isso são coisas que fazem parte da nossa memória de cidadãos. E só podemos viver isso tudo se andarmos pela cidade.
A gente sabe que shopping é bom. É confortável, seguro, cheiroso, seco, estanque em relação às intempéries. É tudo que consideramos apropriado ao nosso conforto, sem surpresas.
Mas quem disse que uma vida sem surpresas é saudável? O ser humano se nutre de se surpreender a cada instante. Essa é a nossa natureza, senão não teríamos adrenalina, frio, calor. Olha, não sou socióloga, psicóloga ou bióloga, mas sei que, para qualquer ser humano, ficar ao ar livre é saudáve. E assustar-se com algo inesperado faz parte da vida.
Putz, fui parar longe demais do cinema, eu sei.
Mas o tema é esse e tá aí propaganda. Que venham as surpresas: a noite, a chuva, o frio, o vento.
Só não venham carros dentro do hall, por favor.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

o quebra-cabeças



- E ai, mãe, colou?
- Colou o quê?
- O seu quebra-cabeças.
- Não, não colei.
- Ué. Você não me fez ir naquela loja só para comprar a cola especial para quebra-cabeças no começo da semana?
- É. Fiz você ir mesmo.
- E não colou ainda?
- Não, lúcia.
- Quer que eu te ajude?
- Não. Na verdade, filha, eu desmontei.
- Hã? Desmontou?
- Desmontei tudo.
- Como assim?
- Sei lá. Me deu uma coisa e eu desmontei tudo. O João, teu filho, até me ajudou a guardar na caixa. Ele não te contou?
- Não. Mas mãe, porque você fez isso?
- Porque... ah, sei lá. Sabe quando você sabe que uma coisa é a coisa mais certa para se fazer mas não sabe muito bem porquê?
- Mais ou menos.
- Acho que foi meu instinto que mandou.
- Mas eram mil e quinhentas peças, mãe. Você demorou mais de um mês pra acabar.
- Eu sei. Era complicadíssimo. Aquele monte de cabecinha. Aquele monte de cavalo. Aquele monte de planta. Um horror. Até estragou minha vista, tive que ir no oculista e trocar de óculos.
- Você precisou até de lupa. Lembra?
- Isso mesmo.
- E como você reclamou, mãe. A gente tinha que toda hora ir ai na sua casa para olhar, valorizar, falar para você não desistir.
- É. Eu quase desisti.
- Daí, sem mais nem menos, você desmonta tudo, mãe? Judiação.
Ela ficou em silêncio um tempão.
- Sabe o que é, filha? É que fui só eu que montei.
- E daí? Melhor para você.
- Melhor nada. Montei sozinha, coisa mais sem graça. Daí eu acabei e pensei, “e agora?”.
- Ué. Não era isso que você queria? Você queria, fez e pronto.
- Eu achei um desperdício colar. Colado, a gente olharia eternamente para aquele quebra cabeça e pensaria que fui só eu que montei. Mas desfeito não. Aos pedacinhos outras pessoas podem montar e o mérito não fica só meu.
- Mas qual o problema do mérito ser só seu?
- Ora, e porque eu tenho que carregar esse mérito? E ainda por cima sozinha, e colada, e dentro de uma moldura na parede? Ah, tenha santa paciência, filha. Já sou mãe, avó, já fui casada, já fiquei viúva, já vi meus pais morrerem, já cuidei das minhas tias, já mudei de casa, iii, tanta coisa que eu já fiz, Deusmelivre. Olha. Eu não preciso desse mérito. Já tenho muitos, chega. Tem gente que precisa muito mais que eu.
E assim ela me olhou, sorriu e deu o assunto por encerrado.
E desmontado.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

os 'marido'




Fui almoçar com duas conhecidas que trabalham comigo. As duas são mais novas que eu, são casadas e não tem filhos. Uma delas passou a contar, com uma certa naturalidade, sobre uma crise que passava no seu casamento.
Disse que não é a primeira crise. Que as coisas estavam difíceis. A outra, casada há apenas um ano, se animou e revelou que ela e o marido já tiveram algumas brigas. Não crises, mas brigas.
- Ele chega muito tarde – falou a primeira – Não avisa, não liga, não dá satisfação.
- O meu é igualzinho – falou a segunda - Fala que vem, não vem. Quando chega, vem com aquela cara de desabamento.
A primeira estava chateada.
- Ele implica comigo por qualquer coisinha. Daí eu fico irritada, brava, não falo com ele, ele não fala comigo, e quando percebo, estamos brigados a quase uma semana e não lembramos nem o porquê.
Olha. Todo casamento é meio sem graça se comparado a uma vida de solteiro. Existe uma previsibilidade natural num convívio sem sobressaltos ou surpresas. Ao mesmo tempo que isso nos agrada, existe um mau presságio nas calmarias. Acho que sentimos um quê de “tumba” nos casamentos, ainda mais se tomarmos como parâmetro a vida de solteiras, a animação, a liberdade.
No meu caso e no delas, foi pior. O casamento veio junto com a saída da casa dos pais, ou seja, veio junto com um monte de contas, preocupações com o aluguel, compras, responsabilidades. Difícil não confundir tudo.
Depois tem os maridos. Bem, depois de vinte anos casada, declaro. Não entendo a cabeça dos homens, não vou entender e ponto final. Ou melhor, pinto final. Homem é homem, tem lá a sua lógica e não se fala mais nisso.
O problema são os contos de fada. Aprendemos que nós, as princesas, devemos ser felizes para sempre. Somos quase forçadas a isso. Olha. A gente é feliz com pais, irmãos, filhos e amigos e ninguém fica falando. Tem uma forçação de barra na felicidade dos casamentos, e isso não é bom. Mas o que temos que lembrar é que a maioria dá. Muitos casamentos são bons, o problema, acho eu, é que, muitas vezes, as mulheres não percebem.
Foi isso que eu entendi, ali, no Viena do Shopping. Bom, confesso que é um lugar estranho para filosofar, mas uma mulher-mãe não pode se dar ao luxo de estar num espaço muito inspirador. E foi ali que entendi que o casamento daquelas duas meninas era ótimo, elas que estavam confusas e sem parâmetros. Gente, pensa. Elas têm apartamento, emprego, são inteligentes, bonitas, os maridos são legais, a vida delas é saudável. Elas têm tudo que toda mulher quer.
O marido não chegar na hora certa?
E daí?
Não telefonou?
E daí?
Ô problemas pequenos, esses. Falaverdade.
Tenho uma amiga advogada que cuida de separações e problemas familiares. Um dia, num desabafo, ela me disse uma das frases mais sensacionais que já ouvi sobre casamentos. Acho que ela deve ter passado o dia todo tentando resolver pepinos conjugais complicadíssimos. Saímos para tomar uma cerveja, eu devo ter reclamado um pouco do Zé e ela me olhou, seríssima.
- Olhaqui, lúcia. A gente não deve nunca reclamar dos nossos maridos. Pensa: eles não bebem muito, não batem na gente, não trazem mulher para casa e ainda por cima ajudam a pagar as contas. Quer mais o quê?
A maioria das mulheres não sabe como isso é importante. Se queremos e precisamos tanto ser felizes, temos que aprender a baixar o nosso grau de exigência. Não existe aquele homem eternamente apaixonado, maravilhoso, o galã da novela, o príncipe da história. Existem os nossos maridos-meninos, esses que ficam ao nosso lado, que cuidam dos filhos conosco, que chegam cansados em casa como nós e que também são confusos sobre o que é um casamento. Eles não são príncipes.
Mas a gente também não é lá muuuito princesa...
Contei isso para as duas conhecidas. Tomara que elas pensem nisso antes de berrarem histéricas como eu tantas vezes fiz quando o Zé chegou tarde em casa.
Aliás. Estou escrevendo aqui, são nove e meia da noite e... caramba, cadê o Zé?

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

a vendedora

foto: alberto henschel


Ela trabalha num quiosque de bijuterias no meio do corredor do shopping aqui perto de casa. É uma moça loira, sorridente. Enquanto eu olho, ela beberica água de uma garrafinha.
- Quanto é esse aqui? – pergunto, apontando para um anel.
- Pode abrir e pegar na mão – ela avisa – Isso é uma gaveta. O preço está na etiquetinha.
Nós, mulheres, não resistimos a olhar uma bijuteria. Comprar uma bijuteria sem mais nem menos é como comer doce fora de hora, é como escapar do trabalho e ir ao cinema. É uma delícia olhar vitrines cheias de pequenas bijuterias. Ah, sei lá. Às vezes comprar um brinco é deleite puro, sem muita justificativa.
- Esse anel é lindo – ela apontou - é prata. É pra você?
- É.
Depois de um certo tempo, decidi. Não era um anel lindão como o do Fagundes, mas era bacana. A moça, toda satisfeita, se pôs a fazer o pacote, usando um monte de caixinhas, saquinhos e papéis de seda de cores variadas.
- Vai pagar com cartão?
- Dinheiro. Tem troco?
- Ichi – ela me olhou e olhos arregalados – Não.
- Posso dar cheque?
- Pode – ela respondeu, sem graça – Olha, não é má vontade, é que eu não tenho como sair daqui para trocar o dinheiro.
Ela mostrou o espaço da loja. Loja? Bom, aquilo não era “loja”. Era apenas um móvel perdido num corredor. Digamos que aquela “loja” se resumia a três cômodas grandes, cheias de vidros e gavetas, dispostas em “u”. E a mocinha tinha razão: ela não tinha como sair e deixar aquele móvel cheio de gavetas sozinho. Além de vendedora, era guardiã do móvel.
- Você não tem uma ajudante?
- Não. No começo a dona falou que eu teria, mas nunca apareceu ninguém.
- E você fica o dia todo aqui?
- Fico das duas às dez. Começei em novembro.
Olhei ao redor.
- Em pé?
- É.
Ela sorriu. Estava realmente muito feliz.
- Mas isso não é problema – ela retrucou - vem tanta gente, eu gosto... e aqui é tão lindo, esse shopping, essas lojas todas tão chiques... – ela mudou de tom – E eu precisava muito de um emprego, sabe?
Vejam que coisa. O que para qualquer um de nós seria um estorvo, ou seja, ficar em pé no meio de um shopping por oito horas seguidas, para a mocinha loira era o máximo. Vez ou outra essas discrepâncias me pegam de surpresa na vida. Eu levo sustos e sou obrigada a rever a real dimensão dos meus problemas e minhas reclamações. Imagina reclamar de trânsito. A gente fica sentada no trânsito. Imagina reclamar de fila. Nunca fiquei mais de uma hora numa fila de banco. Imagina reclamar de calor, de cansaço, de demora. O que poderia ser pior que ficar oito horas em pé num shopping?
- O único problema é que é quente demais aqui – e ela me mostrou o teto e vidro, pois estávamos no último andar – e eu bebo água o dia todo. Daí, a noitinha, eu fico morrendo de vontade de fazer xixi. Tem dias que eu fico pulando até as dez. Apertaaaaada!
- Como é? Você não pode ir ao banheiro?
- E como, se não posso deixar a loja?
- Nem rapidinho?
Ela deu uma gargalhada.
- Só se eu levar tudo, todos os brincos e colares e anéis. Só se eu levar a "loja" – ela falou, se divertindo a beça.
- Mas isso é desumano. Não tem ninguém para você pedir ajuda?
Ela segredou.
- Shiu. É que eu não conheço as pessoas daqui. Às vezes vem alguma amiga visitar e eu vou. Mas se não vem, não vou.
Olhei no relógio. Oito horas.
- Ei. Você quer ir ao banheiro?
- Querer eu quero, claro.
- Então vá que eu fico aqui.
- Não, não posso. Eu não te conheço – ela disse, sorrindo – e não posso deixar a loja com uma pessoa que eu não conheço.
- Ah.
- Você pode ser uma ladra, pode ser uma pessoa perigosa – e ela olhou a minha cara de susto e disse, na maior simplicidade do mundo – Não que eu esteja falando que você vai roubar, mas eu realmente não sei quem você é.
- Ah.
- Mas agradeço mesmo – me disse, entregando os pacotes – São só mais duas horas, eu espero.
Pois é.
E depois a gente reclama da nossa vida.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

a velha do e-mail




- Sério que vocês me acham velha? – perguntei aos meninos na hora do jantar - Vejam, eu tenho computador, fico conectada o dia todo, tenho Messenger, skype, iPod, iTunes, caramba a quatro, tenho até um blog...
- O pior é que é, mãe - decretou o João, suspirando.
- Velha? Mas uma velha teria tudo isso?
- Não é isso, mãe. Por mais que você faça, não é a mesma coisa – falou o Chico, sem a menor paciência.
- Olha, Chico, vocês me desprezam, mas saiba que pouca gente da minha idade faz tudo que eu faço. Eu, volta e meia, tenho até que dar aulas para meus amigos. Ontem mesmo eu passei um e-mail para uma amiga explicando como editar as fotos e...
Ele me interrompeu, apontando o dedo.
- Taí, mãe. Exatamente aí. Ahá!
- Aí o que?
- Aí que você é muito velha. No e-mail, mãe!
- Que é tem o e-mail, menino?
- Ora mãe. E-mail é coisa de velho. Eu não passo e-mail há séculos.
- Hã? Não?
- Nunca. Nem abro a caixa, só tem lixo. Se eu quero falar com alguém, é no messenger. Dá licença, email... – ele emendou com ar superior e o consentimento dos irmãos.
- Perai, filho.
- Quê.
- E se a pessoa não está on line?
- Mando um torpedo, ué. Pelo telefone. Dãrrr.
- E... e pra mandar arquivo?
- Tudo pelo messenger.
- Bom, e... nunca vocês usam e-mails?
- Quase nunca, mãe. Só numa urgência.
Pois vejam só.
Confesso que fiquei completamente sem ação depois dessa revelação. Fui pega de surpresa. Mas, se pensarmos bem, esse fato é verdadeiro. Por incrível que pareça, com os conversadores instantâneos e com a facilidade de enviar mensagens por telefone, o e-mail está realmente em desuso. Para a geração dos meus filhos, passar e-mails é antiquado, obsoleto, arcaico. Eles têm e-mail apenas para cadastros e para comprar coisas, e enviar um e-mail é, para eles, o mesmo que colocar uma carta no correio para nós. Uma coisa absurda, fora de propósito, usada apenas em momentos extremos. Como quando temos que mandar documentos assinados e usamos o sedex.
E-mail demora, eles dizem.
Lembro-me de colocar cartas no correio e de como elas demoravam para chegar. Nesse meio tempo, esperávamos. Hoje as informações não precisam de tempo nenhum para chegar. É tudo pá, pum. Talvez isso nos torne mais impacientes e aflitos. Não incorporamos mais a espera no nosso cotidiano, e esse constante imediatismo, embora nos torne mais eficientes, nos dá a falsa sensação de invencibilidade. Olha, acho perigosa essa impressão competência constante. O mundo erra. Falha. Comete gafes. Atrasa-se. E nós nos apavoramos muito mais com isso do que antes. Eu, por exemplo, entro em pânicos depressivos terríveis com coisas banais como a falta de energia. E isso eu, que sou a velha do correio que uso e-mails. Imagine os adolescentes.
Duvido nada que, daqui a pouco, na sociedade pós e-mail, a ansiedade dos usuários crie cursos ou spas de paciência, para repormos nossa cota de espera.
“Aprenda a esperar com calma”, “resgate a sua capacidade de ter paciência”, “respire fundo e conte até três antes de entrar em pânico”.
Não duvidem.
Mas fazer o quê? Tem coisas que são maiores que nós, os velhos e as velhas dos e-mails.
E enquanto isso, deixa eu checar minha arcaica caixa de entrada...

domingo, 12 de fevereiro de 2006

desdobramentos



Vejam a palavra que está escrita na escada que temos que usar para subir pro avião: SATA.
Falaverdade, que mau gosto. Eu morro de medo até de
olhar para ela.

Desbobramentos - depois da crônica "o anel do Fagundes", alguns comentários merecem ser destacados, pois são muito engraçados:
1) Anna: "Tenho atração fatal por mãos e anéis. Certo dia, numa reunião, deixo cair atrás de mim o que tinha nas mãos. Quando fui pegar, dou de encontro com uma mão absolutamente maravilhosa e com um anel lindo. A cena ficou em câmera lenta. Um belo roteiro foi surgindo na minha cabeça enquanto buscava encarar o gentil homem, que para minha surpresa era o Fittipaldi. Respondi um rápido obrigada, quase me desculpando por ter pego na mão dele."
2) Márcio: "Certa vez, minha irmã entrou em um banheiro do aeroporto de Congonhas e deu de cara com a Gloria Menezes. Eram só as 2 ali dentro. Avoada e maluca como sempre, eis que ela não reconheceu imediatamente a atriz, tomando-a por uma amiga da nossa mãe ou coisa parecida. Assim, foi logo cumprimentando efusivamente com beijinhos e tudo. Ao se dar conta de que era a Gloria Menezes, vendo a cara de espanto dela com tamanha 'intimidade' por parte de uma desconhecida, minha irmã não perdeu a pose, e foi logo emendando: '... e o Tarcísio, como vai?'"
3) Márcio: "E tem outra, de uma amiga minha, que morou muito tempo nos EUA, como executiva da IBM. Em uma de suas vindas de final de ano para o Brasil, senta-se ao seu lado, no avião, a Gal Costa. E a minha amiga, encafifada: 'De onde eu conheço essa mulher?' Até que não se segura e pergunta pra Gal: 'Me desculpe: por acaso você trabalha na IBM?'"
4) Rosa: "Sou que nem você, tento nunca pedir pra tirar foto, ou um autógrafo, também gosto de respeitar os famosos. Mas lembrei de um amigo que foi passar férias em Nova York, Chiquérrimo, cheio de amigos chiquérrimos, e um dia, numa balada, foi jantar com uns amigos dos amigos e de repente se sentou a Juliette Lewis na mesa que ele estava. ele disse que ficou um pouco, olhou pros lados, todo mundo ficou fazendo aquele ar suuper blasé, nem aí, ele se levantou, se despediu e foi embora. E ainda contou a história dizendo: "imagina, eu na mesma mesa que a Juliette Lewis, o que eu ia dizer? o que eu tenho pra dizer pra ela? o que eu tenho que estar jantando com a juliette Lewis? Ia acabar passando vergonha, derramando comida na mesa, alguma coisa, foi melhor mesmo ter ido embora". Toda vez que ele conta essa história alguém diz: "mas que coisa devia ter ficado". Eu só penso que se ele tivesse ficado a história não ia ser tão boa, né?"
5) Mariana: "Nossa...eu e o Baixo viajamos com o Sidney Magal....mas eu já conheco o Fagundes, ele foi numa exposição e comprou um quadro do meu pai, um lampião se não me engano...ele e a Irene Ravache...no Rio fomos jantar semana retrasada num restaurante japonês muito bom com o Ernesto Neto, o artista plástico...o restaurante uma hora encheu de globais, Camila Pitanga, Mariana Ximenes, Beth Goffman e muitos outros menos cotados, mas todos vieram falar com o Ernesto Neto, a moça da mesa do lado pediu autógrafo pra ele, e pros globais, mó desprezo blasé...! Tenho um monte de histórias, uma das melhores é da casa que a gente morava e tinha fastasma e aí vieram o Mauro Mendonça e a Rosamaria Murtinho fazer sessão espírita pra afastar o fantasma....ou quando tinha 5 anos e fui tomar água na cozinha e encontrei...o Adoniran Barbosa! Ah , eu tive uma casa divertida..."
pS. : A Mariana é muito minha amiga, estudou comigo na FAU e é filha do grande Aldemir Martins. Mariana, um beijo grande para você e que teu pai fique na maior paz lá no céu com o Adoniram, os gatos, os lampiões... Só não entendi essa coisa dos fantasmas. Eles foram embora?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

o anel do Fagundes


Vocês nem perceberam, mas ontem eu fui pro Rio de Janeiro e voltei rapidinho.
Bom, fiz uma reunião numa obra, estava muito calor, o Rio estava lindo como sempre e, depois do almoço, resolvi voltar para São Paulo.
Embora o aeroporto estivesse vazio, tive que esperar mais de uma hora para embarcar por causa dos horários dos vôos. O tempo que se demorar nesse limbo antes do vôo é impressionante. Acho que é culpa dos tais procedimentos de partida e chegada, quando você tem que ficar sentado numa sala muito sem graça, apenas ouvindo as chamadas.
Chegou a hora, entrei rápido no avião e sentei na minha janelinha. Depois de acomodada, passei a olhar a fila das pessoas que ainda entravam, uma a uma, subindo a escadinha. Uma moça executiva falando no celular, dois homens suados de terno, um senhor de camiseta e cara de estrangeiro, um homem careca com óculos modernos, o Antônio Fagundes.
Epa.
O Antônio Fagundes?
Olha, eu não ando enxergando bem, e aquele vidro do avião é todo embaçado e arranhado. Enfiei o nariz na janela e olhei de novo para o homem de cabeleira branca que subia a escadinha. Sim, era o Antônio Fagundes.
Tive vontade de rir. Sempre tenho vontade de rir quando vejo atores que conheço desde a minha infância. Outro dia dei de cara com o Rubem de Falco num jantar. Eu adorava o Rubem de Falco. Me servi e fiquei sorrindo ao lado dele, que nem boba. Imagina. O Rubem de Falco.
E ali estava o Antônio Fagundes no mesmo avião que eu. Lembrei dele com uma camiseta de gola canoa quando era namorado da Regina Duarte no Vale Tudo. Olhei para as cadeiras ao meu lado e suspirei: elas já estavam ocupadas, ou seja, ele não sentaria ao meu lado. Passou por mim com a maior cara de Antônio Fagundes e seguiu para trás. Tive uma vontade súbita de pegar o celular e tirar uma foto, mas desisti quando me lembrei que um dos meus filhos, para fazer gracinha, colocou um som de pato fazendo “quac” no clic da foto. É vergonhoso.
O Antônio Fagundes. Mas para que diabos serve essa coisa de estar com um famoso dentro de um avião? Óbvio que eu jamais abordaria o Antônio Fagundes para falar com ele. Falar o quê? E morro de pena de atores, é horrível não poder nem sair na rua. O anonimato, mesmo que fingido, é melhor que o assédio. Mas então pra que serve encontrar o Fagundes no avião?
Ora, gente. Serve apenas para falar:
- Encontrei o Fagundes no avião.
Ou seja, a tua viagem não foi uma viagem qualquer. Foi uma viagem-com-o-Fagundes. Durante alguns dias você pode comentar, como quem não quer nada.
- Fui para o Rio na quinta e sabe quem estava no meu avião de volta? O Fagundes.
Ou então você pode ver o homem na tv e comentar.
- O Fagundes. Ele voltou de avião comigo semana passada.
Viajar com o Fagundes é apenas isso. Um assunto. Uma assunto bom e despretensioso que pode ser dito em qualquer situação e dar início a uma boa conversa. Não é sempre que a gente tem um assunto assim. Na verdade, na maioria das vezes a nossa vida é bem besta, sempre aquela coisa cotidiana, repetida. Encontrar o Fagundes é um fato que merece consideração.
Sabendo disso, resolvi reparar em algum detalhe para dar mais graça e veracidade às minhas histórias futuras. Quando ele passou perto de mim, atentei. Camisa branca, cabelos brancos à la Roberto Justus, jeans, tênis brancos, um livro da Susan Sontag nas mãos. Hum. Tudo tão comum... foi quando eu olhei as suas mãos: em um dos dedos da mão direita, o Fagundes usa um anel grandão de prata com uma pedra quadrada e marrom.
Háhá.
Quando vi o anel, sosseguei. Sei lá porque, aquele anel dava o tom certo na minha história. Dá até o nome da crônica. E, sério, quando eu puder, comprarei um igualzinho pra mim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

as raizes



Aqui perto de casa tem uma pracinha cheia de árvores. Algumas muito grandes, milenares, que nasceram ali da época do matagal, e outras que, coitadas, percebe-se que foram plantadas com o intuito apenas de embelezar.
Não é a mesma coisa. Óbvio que são árvores completamente diferentes. Existe uma legitimidade nas árvores que já existiam ali que não existe nas outras. Uma questão de sangue. Ou melhor, de seiva. São árvores nativas. Tradicionais.
Há uns anos atrás, uma das milenares caiu por causa de um raio numa tempestade. A prefeitura veio, tirou o tronco, os galhos, consertou a parte elétrica, os fios, os postes. Na praça ficou apenas aquele toco do tronco, aquele tornozelo podado, aquele pescoço sem cabeça, aquelas marcas fundas das raizes já sem sentido, perdidas no chão. Durante muito tempo aquilo ficou ali, sulcado na memória, até construirem uma pista de cooper que eliminou os últimos vestigios da velha árvore.
Os meninos eram pequenos, e um certo dia, nessa época, fomos dar uma volta e um deles notou as raizes ali.
- Olha mãe... ainda estão aqui as raízes daquela árvore que caiu!
- Estranho, não é? - comentei com eles - Olhem o tamanho da raiz. Dizem que a raiz é do tamanho da copa da árvore.
Os meninos olharam, andando por cima daquelas veias sulcadas no piso.
- Tudo isso era a raiz de uma árvore só? - um deles perguntou.
- Sim.
- Nossa. É enorme, não parecia - ele notou.
- Pois é, filho.
- Mas. Mas e agora?
- Agora o quê?
- O que vão fazer aí?
- Aí onde?
- Ai, na raiz, mãe - ele mostrou, apontando para o chão.
- Ninguém faz nada numa raiz, filho. Que idéia.
Foi quando ele me olhou abismado.
- Peraí, mãe. Tá dizendo que não dá para aproveitar isso para nada? Sério? Não dá pra plantar outra e aproveitar essa raiz ai?
Eu nunca respondi a essa pergunta. Mas me lembrei hoje dessa observação do meu filho.
Aproveitar as raizes.
Será?

pingos e torós


Heide Fasnacht
Rain On Window II, 2002
Colored Pencil on Rag Paper
40 x 60 in.
Finalizava meu trabalho no final da tarde de ontem quando começou a chover. Aquela chuva forte, molhada, que derruba o bafo quente como se tivesse ódio. Existem certos fenômenos da natureza que tem atitudes bem humanas.
Fala a verdade.
Eu trabalho em casa, numa salinha no andar de baixo, bem na entrada. Minha casa é antiga, e acho que esse lugar foi feito para ser escritório. Já mudei a mesa de lugar algumas vezes, mas o melhor é ficar de costas para a janela por causa do sol, ainda mais nessa época do ano.
Ouvi o barulho da chuva e senti o vento. A eminência de uma tempestade tem ventos e barulhos estranhos. É um tipo de mini fim de mundo, reparem. Quando percebi os primeiros pingos, me levantei rápido.
- Maria! Maria! Mariiia!
Corri para a sala, fechei rápido a janela, pois a ventania já estava respingando o chão. A Maria surgiu feito um azougue e despencou escada acima para fechar as janelas dos quartos. Eu corri para a copa, cerrei a janela num supetão e subi atrás dela.
Engraçado, duas malucas, rodando desembestadas.
Demos de cara uma com a outroa e ela me olhou, esbaforida.
- Fechou o quarto do Chico?
- Sim.
Eu olhei para ela.
- Fechou a porta da varandinha da Nana?
- Fechei.
Descemos as duas bufando. A chuva caia forte, e a umidade e o vento fresco estavam pela casa. Mas eu e a Maria não voltamos aos nossos trabalhos. Ficamos as duas perambulando, ora olhando uma janela, ora para outra, ora indo para a varandinha da frente.
- Será que vem pedra?
- Olha a ventania.
- Ichi. Vai cair árvore. Olha como balança.
- Tomara que não inunde a Lapa.
- Olha que poça enorme.
Olha. Acho dificílimo trabalhar quando chove. Um dia, quando trabalhava num escritório, estava numa reunião de projeto com cerca de dez pessoas quando começou a cair um toró. A sala tinha uma janela grande, do tamanho da sala, que dava para direto para a rua. Bom, foi engraçado. Desde a hora que começou o temporal até acabar, ninguém falou de trabalho, nem de reunião, nem de obra. Parecíamos malucos, todos, com as cadeiras viradas para a janelona, como se aquilo fosse um cinema.
Todo mundo olhando.
Apenas olhando.
Não sei exatamente o que vemos quando olhamos a chuva. Acho que não é bem a chuva. Talvez seja a água caindo, talvez seja a molhadeira na secura, talvez seja o ódio no bafo quente, talvez seja a nossa alma, talvez seja apenas um instinto.
Mas chuva caindo e fogo pegando são irresistíveis.
Curioso também como nós, que somos civilizados, inteligentes e tão pouco selvagens, temos ainda alguns instintos. Todo mundo sente uma tempestade, mesmo sem olhar para o céu. Eu, por exemplo, que me sento de costas para a janela, sei direitinho se devo ou não correr para fechar tudo, mesmo sem olhar. Tem alguma coisa no nosso cérebro que nos alerta para o perigo de uma tempestade.
É um instinto selvagem.
Por incrível que pareça, ele ainda existe.
Esses momentos da hora da chuva são parecidos desde que sou criança. A correria, tirar a roupa no varal, os berros, as janelas e portas se fechando. E eu, como quase todo mundo, geralmente espero o limite do limite para gritar “Maria!” e sair correndo. É impressionante. Sou precavida com tudo, pago contas antes, saio de casa antes, mas meu cérebro não tá nem ai com a chuva. Talvez isso signifique que, instintivamente, eu não seja nada cautelosa. Que meu instinto natural, aquele de bicho, de animal, seja desencanado, tranquilão.
Olha que bom.
Bem, tranquilão em parte.
Morro de medo de chuva.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

john boy e a miniporta WAN


A casa estava silenciosa. Tranquei as portas e ia me deitar, quando ouvi alguém me chamando.
- Mãe.
Era o João.
- Tá acordado, filho? Dorme que amanhã tem que acordar cedo.
- Posso fazer uma pergunta?
- Fala.
Eu sentei ao lado dele.
- Você já imaginou como é uma miniporta WAN?
- Hã? Como é?
- Meu computador hoje não entrou na internet de jeito nenhum, mãe. Fiquei horas tentando.
- Eu sei, João, e já chamei a Telefônica pra arrumar.
- Bom, ele ficou tentando conectar a tal de "miniporta WAN" e eu fiquei pensando como seria uma porta dessas. Uma miniporta WAN. Com dabolhiú no WAN.
- Bem, João, eu confesso que nunca pensei nessa porta.
- Como você imagina que é uma miniporta WAN, mãe?
Fazer o quê? Imaginei.
- Eu penso uma coisa meio ridícula... hãnnn... sabe aquela porta que fica no rodapé do desenho do Tom & Jerry?
Ele me interrompeu.
- Sério? Como eu!
- Você também pensou naquela porta, João?
- Claro, mãe! Aquela que é uma verdadeira miniporta WAN!
Tive vontade de rir.
- O engraçado, João, é imaginar a Internet, uma coisa tão moderna, conectando-se num buraco de ratos - eu começei a elocubrar, pra variar - E mais estranho é imaginar a ficção do passado, o desenho do Tom & Jerry, se misturando com a ficção do presente, a internet, pois...
Ele me interrompeu de novo. Assumiu ares filosóficos.
- Mãe, não complica. O que está errado é outra coisa. Aquela porta, a do Tom, abre para a frente. Acho que deveríamos pensar numa porta que abre como porta de van.
- Como é?
- Sabe as vans? As vans, com "ene"? Já viu como abrem as portas de vans? - ele balançou a cabeça, sabido - De lado. Deslizantes.
- Ah...
- Acho que a miniporta Wan, apesar de escrever com dabolhiú, abre deslizando para o lado. Uma porta pequenininha, no rodapé. Exatamente onde entram os fios do telefone.
- Eu acho que você não bate bem, meu filho.
- Tava só pensando, mãe, só pensando - ele encerrou, bocejando
- Acha que amanhã os caras da Telefônica vem arrumar?
- Vem, João, vem sim. Boa noite, filho.
- Boa noite, mãe.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

e franka vira notícia!


Pois franka virou notícia!

De Londrina para o MUNDO!

Leiam aqui a matéria sobre o "frankamente..." que foi publicada ontem no caderno "Folha2"da Folha de Londrina (eu gostei da parte que a Kátia fala que parece que eu estou falando de uma janela. Janela?)

Domingo, 05/02/06

CLIQUE AQUI - Aventuras na rede

A Folha dá as dicas para você navegar em blogs, fotologs e sites

Curitiba - Eles surgiram como uma febre adolescente e até hoje há adultos descolados que torcem o nariz para os milhares de blogs que pipocam todos os dias na internet. Mas da mesma forma que as prateleiras de uma livraria ou biblioteca oferecem títulos desprezíveis e imprescindíveis, assim acontece na rede. Com um pouco de tempo livre e algumas indicações, é possível encontrar textos ótimos e que proporcionam alívio imediato para quem acha que está só no mundo das pequenas loucuras e manias. Seja nos blogs que são mesmo diários virtuais, seja naqueles que comentam situações comuns a todos, sem especificar experiências individuais.

A dica de hoje é o blog da arquiteta Lucia Carvalho, o Frankamente. Não. Lúcia não é uma escritora, mas suas crônicas diárias (com uma regularidade impressionante) são muitas vezes mais divertidas do que muitos textos de quem diz dominar a cena literária. A arquiteta é casada e tem três filhos adolescentes. Usa a experiência do dia-a- dia e fatos que acontecem no Brasil e no mundo para falar, ou melhor escrever, de suas próprias idéias. A diferença é que o texto dela é tão fluido que parece que você está conversando com ela ao telefone, ou pela janela de casa. Com uma análise repleta de sarcasmo e muito humor sobre coisas que podem passar despercebidas, Lucia aborda desde as crises no casamento, até as manias de amigos, parentes e clientes.

Exposição demais? Esse é o perigo dos blogs, uma faca de dois gumes. Mas não é o que acontece com o blog das crônicas de Lúcia Carvalho, que consegue ser intimista sem identificar os personagens. Proporcionando uma navegação simples para quem está do outro lado da tela, a arquiteta destila desde dicas de livros e peças de teatro a situações tragicômicas vividas por ela e por conhecidos, como o amigo que nunca dormia de janela aberta porque teve a ingrata surpresa de acordar com um morcego espatifado em sua cama, depois de instalar um ventilador de teto. Éca.

De qualquer forma, o leitor sempre consegue identificar um ponto em comum nos textos de Lucia e isso faz o blog tão convidativo. O endereço eletrônico existe desde agosto de 2004 e vem alavancando seu número de acessos e comentários. Em um dos textos, a arquiteta confessa que já pensou em transformar o diário virtual em livro impresso e só está a procura de uma editora interessada.

Alguém se habilita?

Acesse www.frankamente.blogspot.com

Katia Michelle Pires

Equipe da Folha

sábado, 4 de fevereiro de 2006

o bazar



Olha. Não era natal, nem aniversário, nem nada, quando ela me ligou.
- Filha, comprei uma coisa para você.
- O que é?
- Uma blusinha de tricô. Decotada, sem manga, pretinha. Chique, tem até uns fios prateados. Quando você tiver um casamento, uma festa, você usa...
- Eu te pedi uma dessas, mãe? Não me lembro.
- Não, não pediu. Mas eu comprei. Comprei uma preta para você e uma beje para a sua irmã; uma mais “senhora” para mim e uma de criança para a Nana, muito bonitinha, com uns bordadinhos na frente. Depois comprei uma meio vermelha, para a Maria, a tua empregada.
- Mãe, você tá maluca? Para que comprou tanta blusa, é o festival do tricô?
- Eu tive que comprar, filha... Entende?
- Claro que não.
- Um bazar... Sabe a Rosinha, aquela que era minha vizinha? Ela fez um bazar na casa dela, eu não podia deixar de ir. A filha dela mora no sul e tem uma confecção e a Rosinha resolveu fazer um chá para vender as blusinhas da filha.
Não é exatamente assim?
A filha da amiga da mãe resolve fazer umas blusas. Tua amiga da época do primário liga e diz que está fazendo colares bárbaros. A vizinha, que tem filhos na mesma escola que os teus, pinta lenços de seda. Aquela prima resolve vender potes de cerâmica, e lá vem o bazar.
Quando você vê, já está no meio da enrascada.
Se a gente pensar bem, é mais que uma enrascada. Ir num bazar é como entrar numa prisão: você não pode sair dali assim, sem mais nem menos. Ser convidada para um bazar é o mesmo que ser seqüestrada. A gente tem que pagar para sair. Pensa só. Bazares são um tipo de cativeiro: um lugar onde você só sai dali mediante o pagamento de um resgate.
Mesmo assim, até hoje os bazares são um sucesso entre as mulheres. Isso me intriga, ainda mais hoje em dia, com tanto shopping, loja e compra virtual. Geralmente quando vamos comprar alguma coisa ficamos nos regulando, pensando em não comprar. No bazar é o oposto. Você vai, e, mesmo quando não precisa de nada, fica horas quebrando a cabeça pensando o que você pode querer precisar.
Sim, porque é exatamente isso. O lugar é feito com um único intuito. Vender. Se você vai, tem que comprar, nem que seja uma porcaria de nada. Aquelas coisas que todo mundo chama de “lembrancinha”.
Não entendo esse nome. Lembrancinha é tudo, menos uma lembrança de alguma coisa. Porque “lembrancinha” é um presente tão inútil, mas tão inútil que você não lembra o que comprou, nem para quem deu, nem de quem ganhou. Acho que seria mais adequado a gente chamar esses tais presentes de “esquecidinhas”.
Além disso, bazares vendem coisas completamente desnecessárias. No natal passado fui em um, organizado por uma tia. Fui zanzando pela casa, nada que eu precisasse. Isso fora as coisas esquisitas: achei uns panos moles, cheios de pontas, com pequenas miçanguinhas costuradas. Sei lá para que servia.
- É um... chale?
- Não.. É um pano para cobrir a jarra nos dias de festa.
Um véu para jarra? Qual a necessidade de uma jarra de suco esconder o rosto, feito uma muçulmana?
Continuei a busca. Velas decoradas; bolsinhas bordadas de tricô; roupas de nenê; brincos de pedra; toalhas com motivos natalinos; potes de biscoito com enfeites de macarrão; micro toalhas de lavabo fazendo conjunto com micro sabonetes em formato de micro conchas.
Que desespero.
Resolvi, então, achar a coisa mais inútil e inusitada do lugar. Foi quando eu vi um estranho potinho vermelho, com doze garfinhos de canapé, cada um com uma carinha de Papai Noel no cabo. Olhei para aquele enigmático objeto. Os doze garfinhos com doze cabecinhas me olharam de volta, sorrindo, me desafiando.
Que maluquice que é um bazar, gente.
Mas ótimo. Comprei, paguei meu resgate e pude ir embora.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

turu, turu, turu


Agora que começaram as aulas dos meninos, ele voltou a me importunar de novo. O despertador. Tem coisa mais chata que isso?
O meu quebrou, tive que trocar e estou implicadíssima com o novo. O barulho dele é estranho, a luz é de cor diferente.
Mas tem coisas que não tem volta. O 'despertar' mudou muito ao longo do tempo. Hoje os despertadores são mais cautelosos. Acordam com reserva, são precavidos, cuidadosos.
Acho que é porque vivemos numa sociedade que preza a auto-estima e busca o bem estar a qualquer custo. Claro que os despertadores entraram nessa. Um despertador irritante acaba com seu dia.
Não tive muitos despertadores na vida, mas me lembro de todos. Sim, eles mudaram muito.
O meu primeiro era azucrinante. Ele era feito para dar sustos. Gritava (sim, aquilo era grito) um trim estridente numa altura insuportável. Acho que era feito apenas para aquilo: para fazer trins estridentes e acordar a pessoa ao lado. E era apenas um trim, um único. Era para acordar ali, naquele trim. Olha. Não gosto nem de lembrar. Aquela era a pior hora do dia.
Depois apareceram os de tomada, eu juntei dinheiro e comprei um. A hora ficava acesa a noite toda, os números giravam como se fossem fichas. Ao invés do trim, ele fazia tu-tu. Esse despertador me acordava com mais carinho. Tocava uma vez, esperava, tocava de novo, e aquilo era terrível. Para os mais disciplinados podia ser bom, para mim era uma desgraça. Me engana que eu gosto. Tenho mais dez minutos. Tenho mais sete minutos. Tenho mais um toque. Aquela enganação me fazia perder a hora, a escola, a faculdade, o emprego.
Depois veio um digital. As horas acendiam em vermelho, tinha rádio junto. Me acordou por anos com seu tu-rú, até que outro dia pifou. Já estava velho, não era mais rádio, já não tinha alguns botões. Bem, mais de dez anos é muito para um despertador. Despertador vive mais que passarinho e menos que cachorro, e um dia, tristemente, ele, a luz vermelha e seu turu matinal foram para a gaveta das coisas quebradas. Tem coisas que eu simplesmente não consigo colocar no lixo.
Sai para comprar um pra quebrar o galho. Entrei num bazar japonês, a vendedora sugeriu um modelo que projetava a hora no teto.
- Hã?
- É – ela explicou – A senhora acorda, aperta esse botão e olha as horas lá no teto. É ótimo.
Qual será a vantagem?
Bem, acabei optando pelo modelo mais simples, mas estou detestando. A luz é azul e só acende quando se aperta. Além disso, ele desperta com um tchuf-tchuf baixíssimo. Despertador deveria ter escolha de som, como os telefones celulares. Nos primeiros dias tive certeza que não acordaria nunca com aquele murmúrio cansado.
- É uma coisa cerebral, Zé, nós somos da época dos despertadores escandalosos, dos trimmms altíssimos. Esse tchuf-tchuf não vai tirar a gente do sono nunca.
Mas tira, por incrível que pareça. Devem existir estudos para saber qual som entra nas ondas cerebrais e acorda de modo mais correto. Hoje em dia nada é sem querer.
E lá vem ele, moderno, doismiliano.
- Tchuf- tchuff - tchuff. Tchuf-tchuf-tchuf.
Bom dia, gente.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

os silêncios de cada um


Recebi uma crônica linda de um amigo. Ele mora num lugar muito silencioso, fora da cidade, e trocou de computador. Conta que o barulho do novo computador o incomodava muito, assim, levou a máquina à loja e ligou para mostrar ao vendedor. Ficou com cara de bobo: a máquina era absolutamente silenciosa na barulheira de São Paulo.
No final da crônica, ele resume tudo numa frase linda:
"No fundo, o silêncio que buscamos é outro e não depende dos ruídos
externos."

Pois barulho é uma coisa muito maluca mesmo. Cada um ouve o que quer na hora que quer. Os incômodos estão muito mais na cabeça de cada um do que no barulho em si. Somos surdos para o que nos interessa ser, ouvimos o que nos interessa ouvir.
Me lembrei de uma história interessante.
Um dia, quando eu tinha os três filhos pequenos, recebi uma visita de um amigo no final da tarde. Esse amigo é solteiro e mora sozinho. Conversávamos na copa , eu tinha acabado de fazer um café.
De repente ele me olha e faz uma careta horrível. Parece que está incomodado com alguma coisa, pois me interrompe, irritadíssimo.
- Ô lucia, como você agüenta essa barulheira?
- Hã? Barulheira? – eu estranhei – Que barulheira?
Eu juro, eu não ouvia nada.
- Que zona nessa casa, nossa! Não dá para te ouvir, entender o que você fala – ele reclamou, fazendo uma cara de quem está ao lado de uma caixa de som de 200.000 watts.
Engraçado. Barulho? Para mim estava tudo em paz, ora! O que será que ele ouvia que eu não ouvia?
Eu estaria surda?
Foi quando eu aticei meus ouvidos. Realmente, havia um barulho... bom, ali na copa era possível ouvir a TV, que estava ligada meio alto na sala, pois um dos meninos assistia à um desenho animado. Bem, ele estava com um colega da escola, e os dois conversavam e riam bem alto, fazendo a maior farra... Bom, meu outro filho estava jogando vídeo game num dos quartos e era possível ouvir os sons específicos do jogo... E minha filha ouvia uma música altíssima no quarto dela...
Começei a rir. Todos os sons – a TV, o videogame, a musica – estavam bem altos, o que fazia com que os meninos na sala levantassem muito o tom da voz na conversa deles. Nossa. Que zona. Sim, concordei com meu amigo: minha casa estava pra lá de barulhenta. Mas inacreditavelmente, antes dele me avisar, eu não percebia.
Eu entendo o que houve. Os meus filhos eram pequenos, e naquela época, para mim, “incômodo” e “barulheira” eram choros, brigas, birras, gritarias. Ali não havia nada disso. Tudo estava em paz, sem brigas, choros, queixas ou resmungos. "Maravilha", eu devo ter pensado e desligado meu botão de som. Ora, as crianças estavam felizes vendo televisão, jogando vídeo game ou ouvindo música e falatórios felizes nunca foram “barulho”.
Clic.
Ora. Mães sabem. Crianças são barulhentas quando estão felizes, e felicidade é tudo o que busca uma mãe. Além disso, dentro daquele “barulho”, eu sabia o que cada um fazia, e isso me tranqüilizava mais ainda. Criança quietinha a gente sempre desconfia...
Quer saber? Aquele era o meu silêncio.
Bem, mas meu amigo não tinha nada a ver com isso. Assim, levantei, abaixei a TV, pedi aos meninos que falassem mais baixo e fechei a porta do corredor.
Afinal, nossos silêncios, às vezes, são bem diferentes.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

retrovisores


(foto: José Medeiros (1921-1990), um dos patriarcas do fotojornalismo brasileiro e por 15 anos colaborador da revista O Cruzeiro)

Esse livro é maravilhoso. Ainda mais para quem gosta de romances.
Anotai. Recomendo.
Desengano, Carlos Nascimento Silva.
Eu adoro romance. Acho que o que falta por aí são boas histórias. Hoje em dia na literatura se vê muito texto, muito falatório, mas não é fácil achar um bom romance com uma boa história. Além de escrever bem, é preciso ter o que contar antes de publicar.
Mas motivo desse post é outro. Eu queria é falar sobre a capa desse livro.
Reparem nela.
Na foto da capa.
Além de ler o livro, gastei um bom tempo olhando essa capa. É uma foto vista de cima, com uma mãe e um filho de mãos dadas atravessando a rua.
É uma imagem bonita plasticamente, com belos pretos e brancos, com linhas cruzando o caminho. Nota-se que a mãe segura o menino com força. Nota-se que o menino arrumou-se para acompanhá-la, veste sapatos e meias. Tudo isso me cativou e me intrigou.
No nosso mundo quase nunca vemos uma cena como essa: uma mãe de mãos dadas com um filho no meio da rua. No nosso mundo mães têm carros e dirigem, no nosso mundo os filhos ficam sempre no banco traseiro. Hoje as mães levam filhos sem tocá-los. Hoje nossos filhos estão nos retrovisores, não nas nossas mãos.
Lembro que quando nasceu o João, meu terceiro filho. Na maternidade uma tia comentou sobre a dificuldade que eu teria com três filhos.
- Você tem mais filhos que mãos! – ela explicou – Duas mãos, três filhos, como eu tive. E como era complicado atravessar a rua!
Olha. Não me lembro de muitas ocasiões onde precisei dar a mão para todos os filhos, infelizmente. Mas me lembro nitidamente das inúmeras vezes que os vi no banco de trás do carro, me lembro das dores dos torcicolos por me virar inúmeras vezes para trás para apartar as briguinhas, para dar mamadeira, para olhar se todo mundo estava bem.
Eu me lembro dos meus filhos nos retrovisores, gente.
Além disso, nós, mães, nem descemos dos carros. Pra quê? Mães têm celulares, filhos têm celulares.
- Alô, filho? Já cheguei. Estou aqui no térreo, no carro. Você desce?
- Já vou.
A capa me comoveu. Não sei se essa compreensão chegou até o fotógrafo ou até o autor do livro. Lembro-me das inúmeras vezes que já andei com a minha mãe de mãos dadas pela rua. Quando meu pai morreu eu era criança, nunca tivemos carro em casa. Até hoje quando saio com ela seguro na sua mão. É um hábito, é uma forma de nos comunicarmos, de existirmos como mãe e filha. É unir a família, é estabelecer o vínculo. Dar as mãos é o mesmo que se fechar num veículo. Não que isso seja melhor ou pior. Eram outros tempos, só isso. Tempo onde tínhamos mais tempo.
Tempo de mães e mãos.
Sem retrovisores.