sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

o cinema de rua

duartina, 1939

- Lú.
- Fala, Zé.
- Não é muito melhor cinema de rua do que cinema de shopping? – perguntou o Zé, enquanto esperávamos na fila para entrar.
- Muito melhor.
- Olha que simples. O cinema é direto na rua. A gente vem, para o carro na porta e entra. Simples assim. Veja, enquanto esperamos o filme, está sol ali. Olha lá! Sol de verdade, não aquelas luzes esquisitas de shopping. Quando acaba o filme você sai na rua e sabe se é dia ou noite. Se chove ou não. Se está frio ou calor.
- É mesmo.
- Olha ali a rua, Lú. Carros... pessoas... calçadas, semáforos, lojas. Quer saber? Isso que é morar na cidade. Temos que falar não à aquelas tumbas fechadas, que se acham auto-suficientes, que escondem questões essenciais do homem e que só cultuam o consumo – ele me olhou e mudou de tom – Olha, você precisa escrever uma crônica sobre isso.
- Sobre cinemas de rua?
- É. Escreve e fala que cinema de rua que é bom.
- Zé, não pode ser apenas assim. Eu não posso chegar e escrever “o cinema de rua é bom”. Precisa ter um porquê para escrever. Além disso, precisa ter um diálogo, uma teoria ou uma história qualquer que ligue, na crônica, o cinema e a rua.
- Ah, mas daí você inventa. Hummm. Deixa eu pensar... já sei. Escreve que estávamos numa fila de um cinema de rua, que houve um acidente e que um carro entrou dentro do hall do cinema!
- Ai, Zé. Que horror.
Ele ficou animado.
- Isso mesmo. Assim as pessoas vão entender que o cinema é na rua. Pensa, na rua tem carro, e, se a gente pensar bem, os carros podem muito bem entrar aqui.
- Zé, mas isso é perigoso. Pode morrer gente nessa sua história.
-Ah, até pode morrer, mas isso não é importante no momento. O importante é você falar sobre o cinema de rua.
- Mas que jeito mais estranho de chegar no tema de uma crônica, Zé. Eu preciso enfiar um carro dentro da sala de espera do cinema e matar um monte de gente para de falar do assunto?
- É exagero?
- Muito. E além disso, as pessoas vão achar que cinema de rua é perigoso, o que é uma bobagem.
- É... tem razão. Mas escreve sobre o cinema, tá? Não esquece.
- Tá. Não esqueço.
Quase esqueci. Isso foi há quinze dias. Depois desse filme vi outro, num cinema de shopping, e quando sai pensei se seria dia ou noite. Não pude saber até chegar lá fora.
O Zé tem toda a razão. Com essa mania e facilidade de ir ao shopping por qualquer motivo, estamos perdendo a noção de como é gostoso morar numa cidade. Tomar chuva, sentir calor, sentir o vento, experimentar o friozinho da noite, sentir o cheiro de uma planta, tudo isso são coisas que fazem parte da nossa memória de cidadãos. E só podemos viver isso tudo se andarmos pela cidade.
A gente sabe que shopping é bom. É confortável, seguro, cheiroso, seco, estanque em relação às intempéries. É tudo que consideramos apropriado ao nosso conforto, sem surpresas.
Mas quem disse que uma vida sem surpresas é saudável? O ser humano se nutre de se surpreender a cada instante. Essa é a nossa natureza, senão não teríamos adrenalina, frio, calor. Olha, não sou socióloga, psicóloga ou bióloga, mas sei que, para qualquer ser humano, ficar ao ar livre é saudáve. E assustar-se com algo inesperado faz parte da vida.
Putz, fui parar longe demais do cinema, eu sei.
Mas o tema é esse e tá aí propaganda. Que venham as surpresas: a noite, a chuva, o frio, o vento.
Só não venham carros dentro do hall, por favor.

Nenhum comentário: