quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

o quebra-cabeças



- E ai, mãe, colou?
- Colou o quê?
- O seu quebra-cabeças.
- Não, não colei.
- Ué. Você não me fez ir naquela loja só para comprar a cola especial para quebra-cabeças no começo da semana?
- É. Fiz você ir mesmo.
- E não colou ainda?
- Não, lúcia.
- Quer que eu te ajude?
- Não. Na verdade, filha, eu desmontei.
- Hã? Desmontou?
- Desmontei tudo.
- Como assim?
- Sei lá. Me deu uma coisa e eu desmontei tudo. O João, teu filho, até me ajudou a guardar na caixa. Ele não te contou?
- Não. Mas mãe, porque você fez isso?
- Porque... ah, sei lá. Sabe quando você sabe que uma coisa é a coisa mais certa para se fazer mas não sabe muito bem porquê?
- Mais ou menos.
- Acho que foi meu instinto que mandou.
- Mas eram mil e quinhentas peças, mãe. Você demorou mais de um mês pra acabar.
- Eu sei. Era complicadíssimo. Aquele monte de cabecinha. Aquele monte de cavalo. Aquele monte de planta. Um horror. Até estragou minha vista, tive que ir no oculista e trocar de óculos.
- Você precisou até de lupa. Lembra?
- Isso mesmo.
- E como você reclamou, mãe. A gente tinha que toda hora ir ai na sua casa para olhar, valorizar, falar para você não desistir.
- É. Eu quase desisti.
- Daí, sem mais nem menos, você desmonta tudo, mãe? Judiação.
Ela ficou em silêncio um tempão.
- Sabe o que é, filha? É que fui só eu que montei.
- E daí? Melhor para você.
- Melhor nada. Montei sozinha, coisa mais sem graça. Daí eu acabei e pensei, “e agora?”.
- Ué. Não era isso que você queria? Você queria, fez e pronto.
- Eu achei um desperdício colar. Colado, a gente olharia eternamente para aquele quebra cabeça e pensaria que fui só eu que montei. Mas desfeito não. Aos pedacinhos outras pessoas podem montar e o mérito não fica só meu.
- Mas qual o problema do mérito ser só seu?
- Ora, e porque eu tenho que carregar esse mérito? E ainda por cima sozinha, e colada, e dentro de uma moldura na parede? Ah, tenha santa paciência, filha. Já sou mãe, avó, já fui casada, já fiquei viúva, já vi meus pais morrerem, já cuidei das minhas tias, já mudei de casa, iii, tanta coisa que eu já fiz, Deusmelivre. Olha. Eu não preciso desse mérito. Já tenho muitos, chega. Tem gente que precisa muito mais que eu.
E assim ela me olhou, sorriu e deu o assunto por encerrado.
E desmontado.

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