quinta-feira, 21 de outubro de 2004

O OLHAR

já que achei esse texto hoje, vou postar aqui.
Um texto que virou romance, depois migrou para uma peça, depois voltou para um diário, depois foi para outra peça.

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O olhar

E um dia ele apareceu na minha frente. Queria entender qual foi o mecanismo que me fez olhar para o lado e perceber que ele estava ali. Também não sei se foi ele que olhou ou se fui eu que o forcei a isso.
Mas houve um olhar. Um longo e demorado olhar. Que, claro, foi desviado. É preciso saber medir esse tempo. Um pouco a menos ou um pouco a mais atrapalha. Ele olhou, eu olhei. Não há muito mais do que isso, não existe música para isso, não há como pintar esse quadro, nem como dançar essa dança. Ele olhou, eu olhei. E, nessa hora, meio segundo a mais se passou.
Ah, se a gente pudesse contar e dizer o que realmente significa esse meio segundo a mais. Se a gente pudesse... Meio segundo a mais acende um luz. Um coisa de bicho, de animal no meio da floresta, de vontade instintiva e quase pré histórica. Natural como dar a luz, e ter leite nos peitos na hora seguinte. Ele olhou, eu olhei e foi assim que foi tecida a trama do começo da história. Para sempre existirá esse enlace, esse fio de linha, ainda tênue e frágil, mas indestrutível como a memória.
É claro que houve muitos outros olhares, que tentaram provar para a consciência que aquilo tudo não foi um engano. Outros olhares, com sorrisos, com emproar de corpo, com respirações profundas. Mas esse olhar tão inexplicável de duas pessoas que nunca se viram. Sem passado, memória, sem outras horas e, mesmo assim, completamente inevitáveis. Não há cálculo, nem precisão, só um brusco atropelamento diante dos corpos. Um fisgar violento, posso falar assim? Violento? Pode alguma coisa ser violenta e doce ao mesmo tempo?
Ele olhou, eu olhei. O destino quis e nos deu esse olhar, casual, denso, insensato, diabólico, dissolvido. Era tudo que me pediam na minha vida. Olhar e olhar de novo, dentro daquela área contida no meio do tempo.
E eu sei. Sei o que é uma coisa germinando, e ainda uma coisa seca e pálida. Sei como regar, como tornar férteis a noite e o dia, como transformar todo esse sonho numa outra verdade, ah, tão alimentícia.

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