Estávamos juntas na viagem a trabalho, aguardando o avião. Ela me disse que tinha que voltar cedo pois tinha o lançamento de um livro de uma vizinha.
- Vizinha, Mari?
- É. Mas não é livro de literatura, é livro de trabalho. Ela é psicóloga, escreveu uma tese que será publicada. Eu tenho que ir, pois como ela é vizinha, fica chato não dar um alô. A gente se vê todos os dias.
- Olha, a nossa reunião acaba as cinco. Dá tempo de sobra de pegarmos a ponte das seis, chegamos em São Paulo as sete e você vai no lançamento do livro da sua amiga.
- Já disse, não é amiga – ela lembrou com ênfase - É vizinha.
A Mari suspirou, e continuou a falar, pensativa.
- Essa vizinha... Não dá para ser amiga dela, ela é muito esquisita. Imagine que ela pegou emprestado meu livro de adestramento de cães, um livro que eu adoro, não sei porque fui emprestar, mas...
- Ela tem cães?
- Não, eu que tenho. Mas ela adora meu cão, é como se ele fosse dela. Me falou que queria ler o livro para entender melhor o meu cão.
- Vizinha estranha, Mari.
- Lúcia, você não viu nada. Eu não sou implicante, mas essa mulher é demais – ela contou enquanto esperávamos a chamada do vôo no saguão.
- Ela te perturba?
- Não é isso, vou te explicar. Primeiro que ela adora meu cão. Quando faz compras para ela, compra ração e biscoitos para ele. Ela adora quando ele vai à casa dela. Ela tranca a porta e demora horas para me devolver o pobrezinho. Eu fico em pânico mas não posso falar não, pega mal. Ela é minha vizinha de porta, entende?
- Ah.
- Depois ela tem uma mania de colocar uns nomes esquisitos nas pessoas. Acho irritante quando ela faz isso, pois me constrange, mas ela faz.
- Coloca apelidos?
- Mais ou menos. O meu cachorro, por exemplo, ela chama de “a coisa que eu mais amo”. Não é nome, é expressão, mas ela só chamao pobrezinho assim. Ela vem e me fala: “onde está a coisa que eu mais amo? Como vai a coisa que eu mais amo? A coisa que eu mais amo já foi passear hoje?”
- Engraçado.
- O marido dela ela chama de “o marido Ted”. Ela me fala assim “nossa, ontem o marido Ted chegou muito tarde”. Ou “preciso falar com o marido Ted”. Ele não é só marido nem só Ted. É “o marido Ted”. Até nas reuniões de condomínio ela cita o marido assim.
Ela suspirou e continuou.
- Já a filha ela chama de "minha princesinha". A moça nem mora mais lá, é casada e tudo, mas quando ela me conta da filha só fala assim: “minha princesinha hoje vai passar aqui para irmos ao shopping”. Outro dia encontramos o síndico na garagem e ela reclamou de um vazamento no banheiro da princesinha. O homem ficou olhando para ela com a maior cara de tacho.
- E você?
- Eu? Sou “a lindinha”. Mas o pior de tudo é como ela chama o meu marido.
- Como é, Mari?
- É que ela colocou um nome que tem um duplo sentido e ela não percebe, entende? Ouça. Como ela adora o nosso cachorro, então ela só chama meu marido de “o dono da coisa que eu mais amo”. E fala isso para os outros a toda hora, é um absurdo. Imagine alguém, numa reunião de condôminos, apontar seu marido e dizer: “quero saber a opinião 'do dono da coisa que eu mais amo'!”. Não é constrangedor?
Ouvimos a chamada do nosso vôo.
- Vamos, 'menina lindinha, mulher do dono da coisa que sua vizinha mais ama' – eu disse a ela, rindo – mas... escuta, Mari.
- Sim?
- Disse que ela é psicóloga e vai lançar um livro?
- É.
- Acho que você deve ir, comprar e ler esse livro. Essa coisa não me cheira bem. Depois você me conta do que se trata?
Nenhum comentário:
Postar um comentário