quarta-feira, 29 de junho de 2005

o pipizinho


... mais uma viagem de franka
(como vou viajar pra Bahia amanhã, a crônica de amanhã vai mais cedo)
Por favor, pare, agora


Estávamos numa viagem de trabalho. No carro, eu, o Ricardo, o engenheiro da obra e uma moça que vende luminárias. Estávamos indo para uma obra no litoral de São Paulo. No meio do caminho, a moça se virou para o Ricardo e pediu, cautelosamente:
- Ricardo, você poderia parar quando aparecer um posto? É que eu preciso fazer um “pipizinho”, por favor – ela arrematou.
Ele consentiu e ficou calado, sério. Mas percebi que o Ricardo não deu a mínima pro pedido dela. A estrada corria, os postos passavam e nada dele parar. Quando nós percebíamos, zupt, tinha passado mais um posto. Uma hora dei um toque para ele: cochichei, brava, para que ele parasse logo, pois a moça tinha dito que estava apertada, ora bolas. Só então ele concordou e parou. A moça, trançando as pernas, saiu correndo feito um foguete para dentro da lanchonete.
- Pô, Ricardo. Maldade.
- Hahaha. Eu não achei que era sério o "pipi" dela.
- Como não? Ela pediu.
- Mas ela falou “pipizinho”.. “Ricardo, preciso fazer um pipizinho...” – e ele imitava a moça, fazendo um biquinho - “Um pipizinho...”.
- E você nem ligou para o pipi dela.
- Também, uma pessoa que fala “pipizinho”.
- Que tem de mais?
- Quem quer apenas fazer um “pipizinho” não é levado a sério, lúcia. Quando a pessoa fala que quer fazer um “pipi”, parece que ela não está assim com tanta vontade de urinar. A palavra “pipi” tem pouca quantidade de líquido.
- Como é que é?
- Pensa. Quando uma pessoa fala que quer fazer um “xixi” parece que ela tem bem mais urina. Acho que é por causa da palavra. Xiiiii. Xiiiiii. Um monte de urina, “xixi”. Xiiiixiiiiiii. Já “pipi” não. Parece só um pingo. Ou melhor, dois pingos. Pi e pi. Ninguém respeita só dois pingos de urina. Já “xixi” é mais complicado. É um montão. Xiiiiiii...
- Se ela falasse xiiixiiiiiii você parava?
- Claro! – e ele me explicou – Quando você só tem uma vontadezinha, você fala que quer fazer um “pipi”. Se a vontade é maior, fala que quer fazer um “xixi”. Agora, se a tua vontade de urinar é enorme, incontrolável, tem que falar diferente. Tem que deixar o motorista apavorado, em pânico.
- Como assim?
- Tem que falar uma palavra mais pesada. Desculpa, Lúcia... – e ele me olhou seríssimo – ... mas tem que falar uma palavra mais forte, como “mijada”. Eu sei que a palavra “mijada” é horrorosa, mas parece que a pessoa está prestes a explodir de tanta vontade. Uma “mijada” tem litros de urina dentro dela. Uma mijada é indiscutível e totalmente respeitada. Não tem carro que não pare diante de uma necessidade de mijada.
Eu olhei para ele boquiaberta com aquela explicação. E ele resumiu.
- Pipi, xixi e mijada. É importante saber diferença, principalmente se você não é o motorista do carro.
Nisso a arquiteta voltou, satisfeita. Entrou no carro e olhou para nós dois.
- Prontinho. Vamos?

a balança e o regime


(obs. 1: essa incrível ilustração é de autoria da autora)
(obs. 2: vou falar de regime de novo, me lembrei dessa história, é engraçada)
Era um dia de férias. Eu e a minha irmã estávamos na praia com as crianças. Os meninos ainda eram todos pequenos, daquele tamanho que a mãe precisa “colocar para dormir”. Tem uma hora na vida que a gente não precisa mais fazer isso e é uma maravilha, mas nessa época ainda tínhamos que colocar as crianças na cama.
Conseguimos que todos fechassem os olhos e viemos, as duas, pé ante pé para a sala para aproveitar aquele momento maravilhoso de paz. Criança pequena o dia todo por conta da gente dá uma trabalheira.
- Ufa. Que silêncio bom... – falou a Ângela, se espreguiçando – Ei, vou ver se o nosso vinho gelou. Merecemos, não acha?
- Claro. Mas você não quer tomar uma cerveja mesmo? – perguntei.
Eu adoro cerveja.
- Nunca! – ela deu um berro – Já disse, eu estou de regime to-tal! Você não viu meu estado catastrófico na praia hoje? Achei que meu biquíni novo tivesse encolhido, mas não, fui eu que aumentei. Cerveja nunca, Lúcia. Cerveja a gente toma e zuuupt, vai direto para a barriga.
Essa é a minha irmã. Ela adora falar de comida, tem teorias sobre todas as coisas que colocamos boca adentro e adora um regime, claro. Desde que somos meninas que ela faz regime sem parar. Mas como é muito bem humorada, vive inventando planos e teorias completamente malucas sobre a questão.
- Ângela, um lata de cerveja e um copo de vinho devem ter a mesma quantidade de calorias.
- Não, não. Cerveja engorda muito mais, tenho certeza. Tem aquele gás, que incha, infla. Já viu barriga de cerveja? Barriga de vinho é bem menor, garanto.
Ela abriu o vinho, geladinho. Começamos a tomar e a papear. Uma hora ela declarou que estava morrendo de fome.
- Criança pequena janta cedo demais! – ela declarou – vamos comer alguma coisinha?
- Não tem amendoim lá dentro? – perguntei.
- Amendoim? Nem pensar, amendoim engorda, tá doida? Amendoim só se a gente tiver certeza que vai chover por três dias e que não precisaremos colocar biquíni durante um longo período.
- Tá, tá. Tem uva na geladeira, Ângela, pega lá.
- Não tem mais. Dei para os meninos, acabou – e ela se levantou – Bom, vou dar uma olhada na cozinha.
Ela voltou sorrindo, como se tivesse tido uma grande idéia. Minha irmã é assim, engraçada. Numa mão ela tinha uma maçã, e na outra um bom-bom sonho de valsa. Ela estava de braços abertos e balançava os dois, alternadamente. Como se ela fosse uma balança.
- Que é isso?
- Tou vendo o que pesa mais... – ela me explicou, seríssima – O que pesa mais, óbvio, engorda mais. Veja o alface, as verduras, que são levinhos. Não engordam. Não sabia disso?
Eu franzi os olhos, pasma.
- Ah, é a maçã! A maçã é muito mais pesada que o bom-bom.
E ela colocou a maçã na mesa, sorrindo.
- Como sonho de valsa é mais leve, engorda menos. Melhor comer o sonho de valsa – e, diante da minha cara boquiaberta, ela perguntou – Quer um?

terça-feira, 28 de junho de 2005

O cúmplice


dois copos, gente, dois copos...
(nota: atenção, esse NÃO é o Zé)



Ainda sobre o tema “garrafa de vinho”, lembrei duma coisa. Uma verdade terrível, embaraçosa e complicada de se revelar.
A questão me persegue desde a infância. Quando eu era menina, me sentava em frente à TV para assistir sessão da tarde. Na época eu adorava um biscoito compridinho e recoberto de chocolate que se chamava Deditos.
Bom, o problema é que aquilo era muito bom e quando eu percebia, pimba, eu tinha comido o pacote inteiro de Deditos. Bom, na minha casa ninguém podia comer um pacote inteiro duma coisa. Como aquilo era errado, me lembro de bolar artimanhas para ninguém perceber que dei cabo daquilo sozinha. Meus truques iam desde sumir com a embalagem, colocar os restos mortais dos Deditos na cama da minha irmã, muquifar o pacote vazio no armário. Ou seja, em uma micro escala eu já mentia um pouquinho, como, aliás, faço até agora.
Eu minto, mas bem pouco. Juro.
O tempo passou, e o “pimba” continuou me atordoando.
Quando eu via, pimba.
Tinha acabado com a caixa de Bis.
Pimba.
Tinha acabado com a coca dois litros.
Pimba.
Tinha acabado com as bolinhas de amendoim.
Comecei a fumar aos 18 anos, junto com um monte de amigos. Naquela época minha irmã fumava, minhas amigas fumavam, o Zé fumava. As fumaças se embaralhavam, tudo ficava enevoado e nada de pimba. O tempo passou, meio mundo parou de fumar e eu sobrei. Um dia, sem mais nem menos, olhei o maço de Marlboro e... pimba.
Eu tinha acabado com ele sozinha.
O pior era ser casada com ex-fumante.
- Já acabou o maço? Você abriu na hora do almoço!
- Não, Zé, é que...
Parei de fumar por causa dos insuportáveis pimbas. Não agüentava mais dar desculpa para aqueles maços vazios e nem para os bilhões de bitucas que se multiplicavam. Fazia truques de novo: escondia os maços, jogava no lixo escondido, limpava o cinzeiro de meia em meia hora. Quando parei, há dois anos, foi um alívio.
Mas nesse sábado aconteceu a mesma coisa, desta vez com o vinho do São Jorge. Ó céus. Sobrou um pouquinho, e no dia seguinte resolvi tomar.
- Nossa... – falou o Zé, olhando a garrafa que eu trouxe para a mesa.
- Que foi?
- Olha o que você tomou ontem sozinha... quase uma garrafa inteira...
Mirei a garrafa, envergonhada. Tinha só uns quatro... não, digamos uns... três dedinhos de vinho. Droga, porque eu não sumi com aquilo no dia anterior? O Zé começou o maior discurso, que eu era exagerada, onde-que-já-se-viu, que tenho que ser mais controlada, blá, blá, blá.
Fiquei o fim de semana todo com essa questão na cabeça e conclui uma coisa. A gente deve fazer essas coisas erradas e gostosas, como beber, fumar e comer bobagens, sempre com um cúmplice, um parceiro, nunca sozinha. Eu não tive cúmplices no vinho do São Jorge, deu no que deu.
O que eu sinto desde menina é o incômodo de perceber a materialização do extravasamento dos meus limites. É perceber que perdi o controle, é a culpa, o medo do abismo. Quando estamos sós, os objetos do desejo, sejam eles materiais ou não, dependem só de nós. Se o líquido da garrafa diminui, é tudo culpa nossa. As embalagens vazias de Deditos ou as garrafas vazias de vinho são a concretização, a prova viva dos nossos descontroles. Concluo que tenho, desde pequena, um conflito com as embalagens vazias. Talvez seja um conflito com a solidão, não sei bem. O que eu sei é que não posso devorar as coisas, mas como é bom, devoro. Mas tem sempre aquele maldito cadáver da embalagem que volta e bóia na minha frente.
Com um cúmplice é mais fácil. Como ambos mergulham de cabeça, ninguém sabe quem comeu mais ou menos, quem fumou mais ou menos, quem bebeu mais ou menos. Podemos jogar a culpa no outro, e isso resolve a questão.
- Eu convido até a empregada para tomar cerveja comigo, lúcia – me disse a minha irmã - A gente tem que dividir bebida com alguém, sempre, nem que seja com o garçom do restaurante.
Aqui em casa, o erro está no fato de eu tomar vinho e o Zé uísque. Toda vez que olhamos através do vidro do armário do bar, está lá estampado o consumo dele e o meu. É vexaminoso.
- Bebe uísque, como eu – ele resolveu quando expliquei a teoria.
- Eu? Bebe vinho você, Zé – bati o pé.
E enquanto esse impasse não se resolve, chega de vinho.
Pelo menos sozinha.

segunda-feira, 27 de junho de 2005

Benção, São João


Aconteceu na sexta feira, no dia 24 de junho.
Dia de São João, pra quem não sabe.
Fim de tarde. Acabei de trabalhar e fui passear de blog em blog, pitando um comentário aqui e ali. Quando passei na Sheila, li que um amigo dela chamado Jorge estava com um blog novo.
Lá fui eu. Um blog interessante o dele, mas daqueles com fundo preto. Acho tão estranho esses blogs pretos... O que leva uma pessoa a escolher um fundo preto pra escrever? Desde os primórdios da escrita que se escreve em preto sobre branco e não ao contrário. Sei lá, pode ser um jeito de viver a vida ao contrário, quem sabe? Uma hora perguntarei para ele.
Bom, comecei a ler o blog do Jorge. Era interessante, muitos poemas, fotos legais, arte e literatura. O post mais recente era sobre o dia de São João.
Ele contava um pouco da história do Santo e falava que existia uma tradição de se tomar vinho no dia de São João. Essa tradição mandava que todos da família tomassem vinho, até as crianças – para elas era necessário ferver o vinho com açúcar e fazer uma espécie de sangria. Tinha até uma receita. Bem, pelo menos foi alguma coisa assim que eu li, eu sou ligeiramente atrapalhada e tenho o dom de inventar um pouco, mas tenho certeza que li sobre o vinho e a sangria.
Hummm... vinho, pensei.
Legal.
Eu comprei algumas garrafas de vinho Periquita na semana passada, e como não veio ninguém aqui em casa e o Zé não toma vinho, acabei não abrindo nenhuma. Todo dia eu olhava pra elas e nada. Estava com vontade doida de tomar vinho e precisava de uma boa desculpa. Ora, pensei, uma desculpa dessas é uma maravilha. Uma desculpa de Santo tem credibilidade ímpar. Dei um suspiro satisfeito. É hoje.
O Zé chegou e eu logo avisei.
- Hoje é dia de São João e São João a gente brinda com vinho.
- De onde você tirou isso?
- De um blog. Reza a lenda que temos até que dar vinho para as crianças. Tipo sangria.
- Meu pai fazia sangria para a gente... – o Zé lembrou – Mas eu não tomo vinho que me dá dor de cabeça, você sabe. Toma você que eu tomo outra coisa.
- Eu vou tomar. É São João, Zé. E Santo é Santo.
Abri a garrafa, toda feliz. Bom, eu nunca fui muito boa de bebida, um copo de vinho já me deixa meio zonza, e eu acabei tomando dois copões enormes. Quando acabou o jantar, vi um pouco de tv e voltei para o micro, já meio zonza, para dar uma olhada nos e-mails e desligar. Fui aqui, ali e resolvi voltar no blog do Jorge.
Gente.
Esquisito.
Olhei para o blog dele e nada daquele post do São João e do vinho. Tinha sumido completamente. Era como se não existisse, nem o post, nem o Santo, nem os comentários, nada. Eu, que já estava meio bebadinha, fiquei encafifada. Será que eu sonhei? Cadê o Santo?
“Olha o que dá beber muito vinho”, pensei. Mas quando eu li o post eu não tinha bebido nenhuma gota, como é que podia uma coisa dessa? Será que foi uma mensagem de Deus que eu recebi via Internet? Olha as coisas que passam na cabeça da gente na hora que a gente está com álcool demais na cuca. Absurdo.
Encasquetada, fui descendo pelo blog até achar um e-mail. Escrevi para ele.
- Jorge, ou eu fiquei maluca ou tomei vinho demais. Não tinha um post sobre São João no seu blog?
Um pouquinho depois veio a resposta. Ele estava online, graças a Deus, ou melhor, graças ao São João.
- Tinha, lúcia, mas eu tirei porque era o São João errado, o Evangelista. Hoje é dia do Batista. Era vexame demais, tirei.
Gente, tomei vinho pro Santo errado. Ichi.
E daí a pouco entrou o Santo certo no blog. O Batista. Sem nenhuma história de vinho, só de batizado e de água. Nem sei se o Batista gosta de vinho, ô meu Deus.
Agradeci a explicação e desliguei o micro. É um perigo escrever em blogs depois de beber dois copões de vinho, sei disso.
E não tomei mais nenhuma gota naquele dia. São João Batista que me perdoe, mas juro, foi tudo culpa do Jorge.

domingo, 26 de junho de 2005

apenas uma viagem


...Sobre nós, mulheres


A gente acha que é a mesma coisa. Acha que não há nada que nos diferencie. Mas eu não sei. Acho que nós, mulheres, quase sempre andamos no banco do passageiro.
Andar no banco do passageiro é mais ou menos assim. No início você não sabe como controlar um carro. Sabe, entretanto, que veículos são necessários para te conduzir vida afora e que você vai ter que enfrentá-los um dia.
Bom, um dia tem aulas e aprende. Dá uma vontade enorme de continuar, mas a vida das mulheres tem um monte de regras. É estranho falar isso hoje em dia, mas é assim mesmo. Porque também a natureza manda.
O problema é que é bom ter motorista. Os perigos são ignorados, os carros na contramão estão distantes, a vista lateral é bacana. Você pode ver o pôr do sol, trocar a música, dormir para sempre. Pode até esquecer de colocar combustível.
Um dia esquecemos que sabemos dirigir. Simplesmente isso. Mas há trabalho demais há fazer enquanto o carro anda. Você tem que arrumar as malas, trocar a música, olhar as crianças no banco de trás. Por anos você vive feliz no teu banco de passageiro. Feliz como é feliz quem não sabe de nada.
Mas um dia, ah, esse maldito dia, você quer ir para outro caminho. Está cansada daquela estrada reta, percebe que o motorista corre muito. Percebe coisas que antes não percebia. E pela primeira vez fala: “cuidado!”.
É aí que acontece. Você não vê a paisagem lateral, pois olhou para frente. Viu o tamanho da estrada, o câmbio, o acelerador, o breque, o painel. Começa a observar cada parte do carro e tem vontade de guiar.
Guiar teu próprio carro.
Dali pra diante, nada é igual. E então você olha para o motorista.
Ele está de lado, sempre atento à sua vida, preocupado com tua existência, tua sobrevivência, teus filhos. Como será ele de frente? Você não pode olhá-lo de frente, senão ele não vê a estrada. Como fazer? Antes você não percebia nada disso, antes ele era só motorista, mas agora você quer olhá-lo direto.
O carro não pode parar. Você fala demais, começa a estorvar, ele se irrita. Sempre foi assim, que coisa, pára de querer mudar, ele te diz. Pára, ele fala.
Pára.
Tudo se complica. Além de dar palpite na velocidade, você fala sem parar e não troca a música. Mas que música você ouvia mesmo? Tudo fica sem tom, a estrada parece estranha, o dia escurece, não é melhor acender os faróis?
E esse carro velho, como você não viu que estava tão podre? Ele te mostra a noite que chega, olha que lindo lá fora, mas você não tem tempo para isso, tem que se preocupar com o carro, com a estrada, o mapa. O que aconteceu com a sua vida? Será que você deve pegar a direção, deve andar sem motorista ou colocar uma música e esquecer toda essa zona?
E como se não bastasse, você começa a reparar nos outros carros ao redor. Meu Deus, quanto tempo demora até o primeiro posto? Onde tem um acostamento seguro? Por favor, motorista, pare, eu preciso chorar um pouco, pare que eu quero olhar os outros carros, pare que eu preciso ver se eles estão felizes. Pare que eu quero descer.
E afinal das contas, quem é você, Sr. Motorista?

sexta-feira, 24 de junho de 2005

piii, piii, piii...


snoop dogg

O João adora rap. Minha casa treme com as músicas que ele ouve no seu quarto. Aqui no Alto de Pinheiros todas as casas foram construídas sobre um brejo, acho que por causa da retificação do rio Pinheiros, e a impressão que tenho é que estamos boiando. A música alta ressoa na estrutura e faz tudo vibrar.
Tum, tum, tum, tum, motherfucker, motherfucker, tum, tum, tum, tum, motherfucker, motherfucker, tum, tum, tum, tum.
É, rap tem esse problema. Tem muito palavrão nas letras das músicas.
- Mas é só esse o problema do rap, mãe, o resto é muito legal. Tem cada música da hora, mãe, da hora... – ele me explicou.
Um amigo meu me perguntou se eu já pensei no Joãozinho bem velho, quando ele for vovô.
- Meu João? Vovô? Como assim?
- Imagina uma coisa: o João vovô e a mulher dele vovó, os dois sentadinhos na sala da casa deles, velhinhos de tudo. Daí a vovó fala para ele: “ô João, meu querido, vamos ouvir a nossa música? Aquela, da época que a gente era mocinho e namorados?”. O João vovô sorri para ela, “Aquela música "da hora"? Claro, peraí”. Ele se levanta, coloca um disco velho no aparelho de som e senta-se ao lado da velhinha, sonhador, apaixonado, pensativo.
E a música começa.
Tum, tum, tum, tum, motherfucker, motherfucker, tum, tum, tum, tum, motherfucker, motherfucker, tum, tum, tum, tum.
Frankamente...
Bom, ontem o João foi à uma festa. Era uma ocasião importante, ele só tem 11 anos, ainda não foi a muitos bailinhos (eu sei que essa palavra está em desuso, mas não sei usar outra) e estava todo animado.
No fim da noite fui buscar. A festa era numa casa noturna toda moderna no Itaim Bibi.
- Ei. Tava boa a festa, João?
- Médio.
- Músicas legais?
- Hum. Médio.
- DJ?
- Tinha um DJ sim. Mas era um DJ nerd. Usava um óculos quadrado e um casaco do tipo do do papai. Horrível.
- Tocou rap?
- Tocou, mãe, mas não foi legal... – ele começou a me explicar - É que como a gente é criança, os DJs são proibidos de colocar música com palavrão nas nossas festas. E isso estraga tudo, entende?
- Não.
- Todo mundo gosta de rap, mas rap tem palavrão. Por exemplo, tem uma música do Snoop Dogg que tem um monte de palavrão. Essa música tocou, mas na hora dos palavrões o DJ punha um piii.
- Um piii?
- É. Um apito. Isso fez a música ficar cheinha de piiis. A música tinha mais piii que letra. Piii, piii, piii, piii, piii. Ficava apitando sem parar, era horrível. Piii, piii, piii.
- Engraçado, filho.
Ele ficou cantarolando.
- Pipi, pipi, pipi. Se bem que "pipi" também um tipo de é palavrão, não acha?

a boate



- É aqui.
- Lugar esquisito. Não parece que tem festa nessa boate, Zé.
- Quem falou que é boate? Hoje em dia nem existe “boate”. É “casa noturna”. E não é festa. É “balada”.
Era uma festa de um amigo do Zé, solteiro, animado e modernérrimo. O prédio era numa zona industrial e decadente de São Paulo, um lugar escuro, numa rua escura, com uma movimentação estranha, num bairro mais sombrio ainda. Porque boates têm que parecer tão perigosas?
Uma moça cheia de piercings no rosto abriu a porta. Pelos cantos, uns vultos.
- É por aqui que a gente entra? – o Zé perguntou - entregando o convite.
Nem ela nem nenhuma das pessoas falou uma única palavra.
- Entra, vamos – empurrei o Zé através de outra porta no final do corredor - Isso é um elevador, Zé, não tá vendo? Só pode ser por aqui.
- Elevador? Não enxergo nada, sou míope.
Saímos no primeiro andar. O lugar estava escuro, mas ouvia-se uma música alta martelando.
- Parece um bar abandonado. Zé, vamos desistir dessa birosca aqui?
- Não, senhora. Eu vim até aqui e vou nessa festa. Vem, vamos perguntar pra alguém se é aqui mesmo.
- Perguntar para quem, Zé? Tá na cara que aqui não tem festa. Tem só... uma pista de dança vazia, uma gaiola... um monte de papel no chão... o que é aquilo? Uma pia?
- Pára de falar e senta nesse sofá que eu já volto.
- Isso é um sofá? Parece uma boca gigante.
- Shiu. Tem alguém ali. Uma moça de saia longa.
- Não é moça, Zé, é garçom. Homem.
- Ele está vindo para cá. Deixa comigo.
- Oi. Vocês não preferem ficar lá em cima, no bar? Aqui ainda não abriu.
- Não, não... Queremos ficar sozinhos.
- Bom, fiquem a vontade. Querem beber alguma coisa? Eu trago.
- Não, não. Obrigado.
...
- Zé.
- Que.
- Você não perguntou nada para ele.
- Eu sei. Mas pelo menos me dei bem.
- Como “se deu bem”?
- É que eu agi como se eu estivesse cansado de saber que aqui não tem ninguém a essa hora. Entende? Não como se eu estivesse num lugar errado, na hora errada, totalmente equivocado e morrendo de vergonha.
- Mas, Zé! A gente está num lugar errado, na hora errada, estamos totalmente equivocados e morrendo de vergonha!
- Eu sei, shiu. Mas fica quieta.
- Mas cadê a festa do teu amigo, pombas?
- Acho que a gente chegou muito cedo. Onze horas... que acha?
- Onze horas, para eles, deve ser praticamente de manhã. Ah, a gente é muito desinformado, não entende nada de casa noturna. Devíamos ter ficado na nossa casa diurna, com os nossos filhos, no nosso bairro residencial...
- Que tem? Me convidaram, eu vim. Ninguém tem nada com isso. Pago minhas contas, tenho meu trabalho, minha família e estou numa festa. E dane-se.
- Festa? Que festa?
- Sei lá... mas qual que é a deles, hein? Que lugar é esse?
- Eu vou saber? É teu, o amigo. Hummm, modeeerno...
Continuamos sentados, cochichando baixinho.
- ... ô Lú.
- Oi.
- Esse garçom fica olhando, saco. Reparou?
- Deixa. Quer ir pro outro andar?
- Não, nem pensar. Questão de honra.
- Honra?
- Ah, já sei. Vem aqui.
- Onde?
- Bem perto de mim. Vamos dar uns malhos.
- Hã?
- Vamos dar uns malhos, eu e você.
- Dar uns... malhos? A gente? Mas a gente é casado há mais de quinze anos! Para quê?
- Pra ele parar de olhar, ué.
- Ele quem?
- O garçom!
- Peraí, Zé. Nós dois, adultos, pais de três filhos, vamos ficar aqui, nesse sofá vermelho de vinil em forma de lábio nos agarrando feito dois adolescentes tarados? Num... “malho”?
- É, não é uma idéia ótima? Ele vai achar que foi por causa disso que a gente quis ficar aqui sozinho. Justifica.
- Bom... tá.
...
- Lú. Ele ainda tá olhando?
- Você nem tá com vontade de beijar.
- Para de falar e olha.
- Ele parou de olhar, mas tá chegando gente. Acho que é o dono da festa.
- Então dá mais beijo e me esconde.
- Esconder?
- Quer que o meu amigo perceba que eu sou um galo cego que cheguei cedo demais?
Bem, lá ficamos no sofá até a festa encher de gente e a música se tornar insuportável. Levantamos, demos um alô para o amigo dele. O Zé me pegou pela mão.
- Agora vem. Rápido.
- Onde?
- Embora, vamos fugir daqui dessa droga de lugar já.
Fomos embora correndo, sem entender patavina de baladas direto para uma pizzaria no Bexiga, daquelas bem familiares.
Uma verdadeira casa diurna.
- Zé.
- Oi.
- Vamos dar uns malhos?
- Aqui? Nem pensar. Que vão pensar da gente?

quinta-feira, 23 de junho de 2005

a gota d´água



Ontem uma leitora, a Márcia Lustosa, me desafiou a escrever sobre um pingo de água. Bom, uma gota d´água dá margem a muita crônica, não pense que não, Márcia. Primeiro que hoje em dia todo mundo vive com uma ridícula garrafinha de água na mesa, bebericando sem parar. Dizem que é para “hidratar” o corpo e a pele, mas acho que é apenas para fazer mais xixi, e sei lá porque é bom fazer tanto xixi nesse mundo contemporâneo.
Pelo sim, pelo não, minha garrafinha de xixi, ops, digo, de água, está aqui ao lado, sempre presente e perfeita.
Voltando aos pingos de água, eu, que cuido de obras, tenho o maior ouvido para pinga-pinga de torneira. Avemaria, como vazamento dá assunto. Falo deles todo santo dia. E ainda sobre a água, poderia falar sobre a metáfora do transbordamento, que é maravilhosa. A paixão transborda, a raiva transborda, a emoção transborda, a maternidade transborda, eu transbordo todo dia de saudade do meu filho mais velho que foi sozinho para Paris no sábado.
Mas já que é para falar sobre água, resolvi falar sobre uma coisa diferente e que me irrita muito. Homens desse mundo, prestem atenção. Darei aqui uma dica infalível a vocês. E de graça.
Frankamente...
Um aparte: acho que a Franka, um dia desses, podia montar um consultório sentimental masculino na net, que acham? Podia se chamar “fale frankamente”. Tem muito homem que paga anos de análise para perceber coisas que podem ser resolvidas em minutos por aqui. Apesar da horrível aparência de lagartixa preta (eu te mato, Pecus...), Franka tem sensibilidade com homens, entende os desejos femininos, não mente muito e confessa coisas inconfessáveis sobre o (aspas) universo feminino (aspas).
Ma vamos lá. Uma das coisas mais irritantes do mundo, meninos, é a água mineral sem gás.
Aquela aparente aparência neutra e imparcial da garrafinha de água, na ocasião errada, é capaz de fulminar, em segundos, casamentos, namoros ou casos. Quer coisa mais irritante que homem que pede "água mineral sem gás"?
Água mineral sem gás tem em qualquer canto do mundo. É a coisa mais carne de vaca do universo. Qualquer boteco vagabundo tem uma torneira, um filtro ou um copinho de água Poá. Se você não pode beber, ao menos complique. Peça um daqueles breguetes de suco de tomate que vem até com pimenta, ou uma coca cola sofisticada: light lemon com gelo e limão no copo alto. Nunca, em hipótese alguma, peça uma água sem gás na frente da mulher amada.
A questão não é a água em si, mas a situação. Imagine que você sai com seu marido, namorado, amante, lagartão, sei lá. Sentam-se os dois num restaurante, você toda arrumada, bacanona.
- Vão beber o quê? – pergunta o garçom.
- Querida, escolheu?
- Hummm... Um cálice de vinho – você decide, pronta para se embriagar com ele.
- E o senhor?
Ele hesita. Pensa em beber, mas lembra-se da maratona que vai correr no sábado. O personal aconselhou a evitar o álcool.
- Uma água. Sem gás, por favor.
Brochou? Eu brochei. Para mim, acabou a noite.
Dá licença, ô lagartão.
Um homem que pede, na tua frente, uma água mineral sem gás é o fim. Isso acaba com qualquer mulher. É como se você fosse a mulher mais comum e ordinária desse mundo. Pior que isso só se a água for sem gás e... sem gelo.
Aí, danou-se.
Água “sem gás” e “sem gelo” é dez vezes pior.Quer dizer que nem às bolinhas de gás você tem direito, que nem o barulhinho dos cubos te homenageiam. Um homem que faz isso deveria ser impedido de ter qualquer mulher.
- Garçon, para o meu lagartão traga uma água sem gás, sem gelo, sem gim e sem graça ne-nhu-ma. E para mim um copo de vinho com veneno, por favor. Prefiro a morte a brindar com ele.
Olha, a bebida que o seu homem pede deve ser compartilhada com você. Teu homem deve beber em tua homenagem. É como se ele brindasse tua existência, tua presença. Isso é tão importante, tão essencial. É quase inexplicável. Que mulher que não quer ser cortejada, embriagada, entorpecida, narcotizada, embebedada por amor? O fato de a bebida relaxar os ânimos e os músculos é apenas um disfarce para a real embriaguez de estar com alguém que a gente ama. É a cena. A fantasia. O sonho. O filme. A cafonice necessária. A pieguice inevitável.
Ô coisa boa beber um pouco apenas para dar a desculpa da bebida. Isso é essencial, estimulante e básico. Pedir uma água sem gás ao lado da mulher amada é a prova maior de desprezo do mundo. É a gota d´água.
Saibam: esse não é um homem, é um monstro; isso não é encontro, é pesadelo; e esse não é um namoro, um casamento ou um caso.
Era, rapazes.
Eeera...
Fui clara?

quarta-feira, 22 de junho de 2005

um certo tesão




Tenho uma amiga muito reticente. Bem, se não existisse e-mail e ela nunca tivesse me escrito, eu não notaria as suas infinitas reticências. Mas ela não consegue escrever sem colocar um monte de pontinhos. Como se falasse... suspirasse... aiai...
Me intrigam as pontuações. Os pontos finais, as vírgulas, os parênteses, as aspas. As chaves, travessões. As exclamações, interrogações.
Obviamente tenho algumas teorias, então vamos lá.
As reticências são interessantes. É a pontuação do futuro incerto. Acho que minha amiga, quando usa reticências, não tem certeza do que diz. Ela chuta uma bola sem saber onde vai dar. É a pontuação do pensamento, das possibilidades, dos sonhos. Por isso nos torna tão vulneráveis, essas malditas reticências apaixonadas...
Já os pontos não. São certezas. É tudo que a gente já viveu e já incorporou. Os pontos finais, então, nem se fala. Tem gente que nunca consegue colocá-los. É o adeus, o tchau, é o não me enche, não perturba, é o dane-se. Pouca gente coloca bem um ponto final. É preciso ser muito valente, muito macho, para lascar um ponto “daqueles”. Hehehe.
Mas é importante saber onde pôr. Eu detesto pessoas que assinam e colocam ponto final, por exemplo.
Atenciosamente, Fábio. Ponto.
Beijo, Michel. Ponto.
Saudações, Andréa. Ponto.
É como se a pessoa se encerrasse dentro do nome, não te dando chance de outra conversa. Um ponto depois do nome é uma porta fechada, é uma chave trancando uma conversa futura. É um ponto final no relacionamento. É um murro na boca do interlocutor.
Nome, ponto.
Horrível.
Com exclamações e interrogações temos que tomar cuidado. Elas mudam completamente tudo que foi escrito. São diabólicas. Muitas vezes não estamos assim “tão” felizes, nem “tão” na dúvida, entende? Tenho até medo delas. Sempre penso bem antes o que sinto para colocar.
Já as vírgulas eu adoro. São pequenas pausas, suspirinhos, risadinhas, respiros da conversa. Delícia as vírgulas. São como goles de bebida que a gente toma quando tá falando com os amigos. A garganta arranha, a gente molha e retoma. Impossível viver sem vírgulas.
Mas meus preferidos são as aspas. Primeiro por causa do formato. Parecem mãos na cabeça da letra, parecem cafuné, não acha? Olha que legal, um cafuné antes de falar e outro depois. É uma ato de amor usar aspas. Eu sinto que tem alguém te agradando quando me mandam umas.
Coisa completamente diferente dos parênteses, que são pontuações profissionais, meio sem paciência. Quando não dá para explicar tudo, quando temos que ser rápido, pimba, parênteses. Resolve na hora, mas dá uma sensação de pressa. Os parênteses são de uma objetividade ímpar no mundo profissional.
Seríssimos.
Os travessões são esquisitões. Parecem uns obstáculos. Você tropeça, cai e levanta. E as chaves, alguém usa chaves? Coitadas... ficam anos e anos encostadas num canto, sem portas. Para falar a verdade, nem sei bem quando usar. Um dia preciso consultar minha irmã Ângela, que é professora de português. Uma professora ótima, se alguém precisar.
Mudando um pouco de assunto, lembrei de uma coisa que não entendo no meu computador. Ele tem uma mania de colocar um “T” maiúsculo quando eu escrevo a palavra Ter. Olhaí! Não fui eu, foi ele, juro que foi ele. Meu computador não escreve Ter com tesinho, só com tesão.
Tesão? Opa.
Deixa. É bom alguém Ter tesão pela gente, não é? Mesmo que seja um computador, com esse corpo esquisito, com esse pescocinho fininho e esse único olhão me observando... aiai...

terça-feira, 21 de junho de 2005

Mr. e Mrs. Doubfire


Existem filmes ótimos, filmes bons e filmes bobos extremamente simpáticos. Gosto dos três tipos, principalmente do terceiro tipo.
Um dos filmes bobos extremamente simpáticos que eu mais gosto é “Uma babá quase perfeita”, com o Robin Willians. É um filme sobre um pai que, após se separar da mulher, morre de saudade dos filhos. Então se traveste de babá, muda de nome e é contratado pela ex-mulher para tomar conta dos filhos. Assim, o personagem, o senhor Daniel Hillard se transforma numa simpática senhora gorducha e completamente maluca chamada “Mrs. Doubfire”.
Olha, vocês vão me achar doida de pedra, mas toda vez que eu leio que a Dilma Rousseff entrou no lugar do José Dirceu na Casa Civil eu me lembro desse filme. E não adianta, a cada dia eu tenho mais certeza que ela é o Zé Dirceu disfarçado.
Óbvio.
- Olha, gente! – eu me canso de falar aqui em casa, desde a semana passada – o corpo é o mesmo, o tamanho do rosto é o mesmo, as feições são parecidíssimas, o tamanho é igualzinho! É tudo truque de cabelo e maquiagem, essa Dilma é o Dirceu, ele não me engana!
- Mãe, você está louca – falou o João.
- Menos, mãe, menos... – suspirou a Nana - Você está confundindo as histórias. Outro dia você chamou o Roberto Jefferson de Roberto Jackson. E depois foi corrigir e falou Michael Jefferson.
Tudo bem, aqui em casa podem me achar maluca, mas aqui no “frankamente...” eu posso falar a vontade. Está na cara que ele é ela e que o Dirceu deu um jeitinho de continuar lá dentro do lado do Lula.
Háhá!
As evidências são muitas. Me disseram que o José Dirceu já fez uma plástica no passado e mudou totalmente de feição para fugir da ditadura militar. Disseram ainda que ele voltou para o Brasil com outro nome e com outro rosto, que ele foi para uma outra cidade e casou de novo com uma nova mulher e que um dia essa mulher descobriu que ele não era ele. Ora, um cara que já mudou de personalidade uma vez, porque não mudaria de novo, de novo e de novo? As cirurgias de hoje são capazes de milagres, gente.
Desconfio também de outra coisa. Me contaram também que a Dilma, assim como ele, também era ativista política na juventude. Ei. Será que desde aquela época os dois não eram um?
Ou mais. Será que ela não foi ele o tempo todo e agora voltou a ser ela? Ou ele era ele, virou ela, virou outro ele, virou ele de agora e agora é ela? Ou ele era ela o tempo todo, mas ela resolveu virar ele para ficar no cargo, mas agora desistiu e voltou a ser ela?
Se que é difícil aceitar, gente, mas a verdade está embaixo dos nossos narizes: Dirceu e Dilma são a mesma pessoa.
Assim, apresento-lhes: Mr. e Mrs. Doubfire.

segunda-feira, 20 de junho de 2005

a empregada e as batatas


as batatas

Pedi um chá para a empregada nova, que veio cobrir as férias da minha. É uma senhora, boazinha, mas completamente insegura.
Ela entrou com a bandejinha. Como minha mesa está abalroada de papéis e eu escrevo um relatório, ela não sabe o que fazer.
Tentou colocar a bandejinha aqui, ali, acolá, mas não decidiu onde apoiar. Encostou numa pilha de papéis, colocou na ponta da mesa, virou de lado, rodou, rodou. Me olhou, desesperada, até eu salvá-la daquele pesadelo.
Como descrevê-la? Lerda? Confusa? Tantã? Atrapalhada? Nervosa? Zonza? Uma hora descobri: hesitante.
Puxa vida. Sua hesitação me incomoda profundamente. Ela se atrapalha o tempo todo, gagueja, não sabe onde está, não tem idéia do que deve fazer e gira ao meu redor o dia todo. Empregadas devem servir, não deixar a gente com tontura. E, se só de lembrar tenho náuseas, imagina na hora do almoço.
Céus.
No final de semana falei que ela devia servir o almoço, ou seja, colocar as travessas com a comida sobre a mesa onde estávamos todos sentados. Bom, em qualquer mesa de refeição existe um projeto básico de distribuição das travessas. Nunca tinha pensado nisso, mas percebi que para ela o espaço da mesa era indominável, um verdadeiro Saara, um deserto, sem referência alguma, e que ela entrava em pânico quando chegava perto da mesa.
Explico. Todo mundo sentado quando ela veio com a travessa de arroz. Hesitou, mas colocou, tremendo, a travessa sobre um dos aparadores. Saiu da sala e voltou com travessa da carne, segurando pelas pontinhas. Ela murmurava “carne, carne... táqui a carne”, como se a carne ouvisse sua voz e pudesse ir sozinha para algum lugar. Ainda tremendo, pousou a travessa bem grudadinha no arroz. Encostadinha. Achei estranho, mas acho que foi porque o arroz era a única referência que ela tinha naquele momento.
Ela saiu da sala e um dos meninos começou a rir baixinho, de puro nervoso. Em seguida voltou com a salada, gemendo: “salada... salada táqui...”.
E pict.
Encostou nas outras duas travessas.
Aquilo começou a me dar medo. Todos estávamos em silêncio total. Depois de uma eternidade ela voltou com a batata, sussurrando o mantra,“batata, a batata aqui...”.
Eu não aguentei. Peguei a travessa da batata das mãos dela e coloquei bem longe, a quilômetros dali, do outro lado da mesa, só para provocá-la. Ela ficou apavorada, deu um passo para trás. Como eu pude colocar a travessa da batata, daquele modo, sem encostar em nada? Foi como se eu a jogasse num abismo e ela caísse falando “batata, batata...”. Senti que ela teve uma vontade irresistível de salvar a batata, colocando-a perto das outras comidas, mas hesitante daquele modo ela nada fez. Se dependesse do salvamento dela, babau para a batata.
Olhei ao redor. O clima do almoço de sábado estava tão pesado, tão mortífero, que carinhosamente pedi que ela voltasse para a cozinha, que o resto seria por minha conta. Eu servia, eu trazia, eu tirava, não precisa mais nada.
Passei o dia pensando na mulher. De onde vem tanta hesitação?
Provavelmente porque ela, como muitas de nós, nunca teve uma vida só dela. Ela nunca deve ter aprendido a se virar sozinha, deve ter passado a vida apoiada nos outros, encostada em outras travessas. As suas mãos trêmulas são a síntese da alma feminina.
A linha entre a segurança e a insegurança nas mulheres são muito, muito tênues. Podemos a qualquer momento achar mais fácil nos apoiarmos do que achar um lugar seguro no meio dos desertos. Os pontos de referência muitas vezes não existem. Precisamos criá-los, a começar, colocando com toda a força das mãos a travessa da batata num canto isolado. E muitas travessas numa mesa desértica formam um almoço. E um almoço não é só um monte de travessas, é também uma celebração, uma enorme festa.
Bom, a mulher vai embora logo, talvez não consiga entender tudo isso. Mas espero conseguir, ao menos, que ela consiga desgrudar as travessas e que esqueça de salvar as batatas. Ao menos isso, e ela poderá se salvar.

sábado, 18 de junho de 2005

só uma balinha, pai?



Além do teatro, tenho paixão por cinema. Adoro a hora que as luzes se apagam, que fica tudo escuro e que a enorme tela passa a contar uma história. É justamente essa a mágica do cinema: naquela hora só existe você e a tela, a tua realidade e aquela ficção.
Quando assistimos tv, tudo interfere: o telefone, a campainha, o filho, a chuva, a mãe que chama para jantar. Já no cinema não: é proibidíssimo fazer qualquer outra coisa enquanto se vê o filme. Temos que ser fiéis a ele: não podemos conversar, falar alto, acender luz. Acho que deve ter gente que respeita mais uma projeção do que o marido ou a mulher.
É coisa séria, cinema.
Já que estamos falando de “assistir”, queria fazer um pequeno aparte. Já viram que mágica de assistir shows foi destruída? Sim, porque assim como os cinemas e teatros, os shows eram respeitados: todo mundo ficava calado para assistir quem ia se apresentar. E a gente tinha que ficar até o fim, custasse o que custasse, pois show é ao vivo e pega super mal levantar na frente de quem está se apresentando. Fui a um show do Hermeto Pascoal quando era menina que demorou mais de 5 horas para acabar. Todos dormimos ali, firmes. Agora, sem mais nem menos, virou uma bandalheira. Alguém resolveu que show tem que ser assistido em mesas mínimas, de lado ou de costas, com estranhos colados em você e garçons passando na frente o tempo todo. Alguém pode explicar?
Ainda prefiro o cinema, com suas cadeiras e seu silêncio.
Bom, feliz com minha teoria, fui ao cinema com os meninos. O local estava lotado, claro, isso é normal nos fins de semana. E estava silencioso também, como deve ser. Era uma ótima sala, com som maravilhoso e poltronas confortabilíssimas. Sentamos, a família toda.
- Ô mãe. A gente não vai comer nada?
Era o maior.
- Comer? Aqui? – estranhei – A gente janta depois do filme, filho.
- Putz. Tou com fome, pô.
O Zé resolveu o impasse.
- Tá. Vou te comprar uma balinha. Já volto.
- Uma balinha? – reclamou meu filho – Só uma balinha, pai?
- Mas filho... – eu insisti – é falta de educação comer muito no cinema!
- Hahaha! – eles todos começaram a rir de mim – Mãe, mas como você é velha! Você é do tempo que era “falta de educação” comer no cinema? Hoje em dia a gente come muito no cinema, mãe! Montanhas de comida!
Foi ai que eu percebi. Gente, que horror... é impressionante como se come e bebe no escuro de uma sala de projeção... Potes imensos de pipoca, refrigerantes, balas, chocolates. Não estou falando do barulho ou sujeira, pois a maioria das pessoas é educada, come silenciosamente e joga o lixo no lixo. O que intrigou foi o fato de ver tanta gente precisando comer para ver o filme.
De onde vem tanta fome e sede? O que aconteceu com nossa sociedade? Só assistir a um bom filme não basta, não alimenta o suficiente? Temos fome do quê no cinema? Olha, temos que passar a acreditar em outros tipos de alimentação, não só essa que engorda, não só essa que satisfaz o corpo.
É o seguinte: é preciso proibir comida no cinema. Isso. Pensa o contrário: ninguém fica desesperado para ver um filme num restaurante, não é? E além disso, não é preciso comer em todos o lugares que a gente vai. As pessoas comem nas aulas? Nas reuniões? Nas lojas? No caixa eletrônico?
É preciso um mínimo de cerimônia para comer e, claro, para ir ao cinema.
Tem hora para tudo na vida, até para ser velha.

sexta-feira, 17 de junho de 2005

regimando

uma verdadeira banana split
Ontem eu falei de regime, de fome, de operação de redução de estômago, tró, ló, ló e tal. Fiquei com fome o dia inteirinho, comi um monte de bobagens e estou me sentindo a maior culpada.
Droga.
Olha, tenho uma teoria que a coisa que mais engorda é regime. Pense comigo: as pessoas que fazem regime só pensam em comida o dia todinho, portanto tem muito mais fome que as outras. Essas pessoas, embora emagreçam, uma hora ou outra vão precisar comer. E engordarão. Então regime engorda.
Certo?
Essa coisa de regimes é o assunto da nossa era. Talvez seja o assunto mais falado dos últimos tempos.
- Nove quilos no máximo, hein? – me falou o médico ginecologista quando descobri que estava grávida do Chico, meu primeiro filho, há dezesseis anos atrás.
Fazemos dieta antes de nascer, dieta ainda bebês, dieta quando crianças, dieta quando adolescentes, dieta depois de adultos. É uma dietaiada sem fim.
Bom, embora todo o mundo faça dieta, ninguém ainda inventou um verbo para essa ação tão corriqueira que é “fazer regime”. Como expressar a ação gerúndica de fazer uma dieta, um regime? Fazer regime é uma das únicas ações do mundo que precisa ser expressada realmente no gerúndio. Ninguém emagrece sem gerúndio. E bem esse verbo não existe, olha que contradição que é essa língua portuguesa.
Estou... estou o que?
Regimando?
Dietando?
Antes de ontem o Pecus colocou no blog dele uma maravilhosa imagem de um bauru do Ponto Chic, um sanduíche de uma lanchonete tradicional daqui do centro de São Paulo. Ele postou a imagem do baurú e ficou todo mundo babando e dizendo hum, hum, hum, delícia, hum, hum.
Eu olhei pro baurú do Pecus e senti uma tristeza profunda. Quase uma depressão pós-visão do baurú. Gente, eu, lúcia, apesar de morar em São Paulo desde que nasci, nunca comi um baurú do Ponto Chic. Nunquinha. Eu até já fui diversas vezes no Ponto Chic. Mas nunca comi nenhum baurú, só bebi uma droga de suco de laranja.
Ah, que raiva que eu tenho de suco de laranja. Um dia eu coloco veneno.
A nossa geração é uma geração de pessoas que já nascem fazendo regime. Vivemos uma dieta ancestral, e as pessoas que, como eu, fazem dieta há trezentos mil anos nunca comeram algumas comidas.
Verdade.
Eu também nunca, nunquinha na minha vida toda, comi uma banana split.
Não porque eu não goste, não porque não seja delicioso, não porque eu não tenha vontade, não porque eu não tenha dinheiro.
Simplesmente porque as bananas splits, assim como os baurus, engordam muito.
Olha que tristeza.
Banana split, bauru, milk shake do bob´s, chesse salada bacon, sundaes, mousses de chocolate, feijoadas, batatas fritas com hot-dog duplo. Nunca. Sou uma pessoa virgem em comidas engordativas. Nem pensar, imagina a culpa que eu vou sentir depois?
Bem, eu não acho que sou gooorda, embora tenha engordado um tantinho depois que parei de fumar. E vai ver que é justamente por que estou eternamente regimando e dietando e nunca comi a banana split nem o baurú que não sou uma gorda baleia.
Será que valeu a pena?
Bom, melhor não reclamar e nem concluir por enquanto.
Tou com fome demais.

quinta-feira, 16 de junho de 2005

o estômago do roberto jefferson



Eu tenho uma mania de me interessar pelos detalhes. Muitas vezes entender o detalhe é um modo de entender o todo. Os detalhes são atalhos de interesse que transformam uns assuntos chatos em super interessantes.
Verdade, juro.
Bom, não sou só eu que tenho essa preferência por detalhes e atalhos de interesse. Todas as revistas idiotas de fofoca do mundo também têm, infelizmente.
Tudo começou quando estávamos assistindo a performance do Roberto Jefferson na CPI. Todo mundo calado e mudo diante daquela maravilha de interpretação. Um show de ironias, gracinhas, provocações, sarcasmos e zombarias. Uma aula de deboche: como vencer só com palavras. Eu que não queria ser casada com esse Roberto Jefferson, Deusmelivre. Deve ser um pesadelo ter uma briga de casal com ele no meio da madrugada. Já pensou?
Bom, o Zé pediu silêncio total na sala. Queria ouvir tudo, cada frase, cada comentário.
Olha. O Zé sempre faz comentários políticos imensos, cheios de explicações, um enorme blá, blá, blá, que eu nunca consigo prestar atenção. Isso vem de lááá do Movimento Estudantil. Mas dessa vez ele me surpreendeu.
- Puxa – ele balançou a cabeça - o Roberto Jefferson é a prova viva que operação de estômago funciona mesmo.
Todo mundo olhou para ele. Como era?
- Olha que elegância. Ele era uma pipa.
- Zé, você está falando do estômago do Roberto Jefferson?
Pronto. Para mim foi a deixa. Naquele instante, na minha cabeça, acabou a CPI, acabaram-se as denúncias, os mensalões, o Dirceu, tudo. Eu só consegui, dali em diante, pensar no estômago do Roberto Jefferson.
Pra quem não sabe, o Roberto Jefferson fez uma operação de redução de estômago e perdeu 100 quilos.
De todas as formas de emagrecer, essa é a mais estranha. Dá para inventar um monte de exemplos absurdos e parecidos. É o mesmo que costurar as mãos para não pegar num copo e beber. É o mesmo que colar todos os dedos para não fumar. Costurar o nariz para não cheirar pó. E para os viciados em sexo? Também se reduz o tamanho, como no caso do estômago?
Mas voltando ao nosso homem, eu comecei a pensar numa coisa. Acho que as pessoas se alimentam de vários modos. O Roberto Jefferson deve ser um homem muito faminto, que sempre comeu muito. Ele deve ter fome a toda hora, deve mandar ver na comida. Uma fome ancestral. Maluca. Fora de controle. Um dia resolveu operar o estômago, e, a partir daí ele não consegue mais comer. Tem a maior fome, mas não pode comer, não cabe. Isso deve ser desesperador. A fome está na cabeça, está na alma da pessoa, não no estômago.
O que fazer com a fome? Com o vazio?
Acho que ele passou a comer de outros modos. Imagine que desespero você ter fome e ser pressionado daquele modo com todas aquelas denúncias. Assim, ele começou a comer. Comer a si mesmo, comer sua vida, comer seus colegas, comer os deputados, a assembléia, tudo. Começou a comer, dissecar, estraçalhar, devorar. Comeu feito um bicho num banquete macabro, arrancando pedaços, estripando, virando a vida do avesso, colocar as vísceras para fora.
Olha, gente, aquilo é apenas fome.
O Roberto Jefferson costurou o estômago. Deveria agora costurar era o tamanho da boca.

o borrão verde


(como se trata de uma história é verdadeira, os nomes são todos fictícios, hehehe - qualquer semelhança é apenas semelhança)

Fernanda sempre quis ser atriz de cinema. Fez cursos quando era moça, procurou trabalhos, mas nunca conseguiu nada. O tempo e as oportunidades passaram, Fernanda casou com um dentista, o Nelsinho, e começou a trabalhar com administração.
Certo dia, vinte anos mais tarde, saiu do trabalho e foi ao shopping comprar um presente. Ao descer de uma escada rolante, Fernanda tropeçou, caiu e enfiou a cara num vaso de plantas. Estatelada no chão, ouviu uma voz.
- Machucou?
As folhagens entraram no seu olho, ela não enxergava nada. Percebeu que alguém lhe estendia a mão. Era um homem? Devia ser, mas naquele momento era apenas um borrão. Uma enorme mancha com uma blusa verde.
- Tudo bem com você?
- Sim – ela respondeu, levantando-se - Mas entrou uma coisa no meu olho, não vejo nada.
- Venha aqui – disse o borrão, puxando Fernanda pelo braço.
O borrão verde tinha uma voz bonita, grossa e sorria para ela.
- Eu estava numa correria danada – ela explicou, sem graça – ... viu no que dá?
- Quer um café?
Antes que protestasse, o borrão colocou-a na de frente um balcão e pediu dois. Puros. Fernanda sorriu, agradecida. Aos poucos o borrão começou a se desfazer e ela pode ver sua fisionomia.
Ficou sem ar. Vixemaria. Aquele não era um borrão qualquer. Aquele era o borrão de Álvaro Juan, um dos maiores cineastas do Brasil. Aiaiai. Não era um sonho. Aquele era o Álvaro Juan em carne e osso. Percebeu que tremia.
Olha do que era capaz o destino, pensou. Vivera longe do mundo do cinema por mais de vinte anos, e um dia, sem mais nem menos, tromba em Álvaro Juan. Olha que coisa.
- Como se chama?
- Eu? - quase não conseguia responder, de emoção - Fernanda.
- Não bateu a cabeça não, Fernanda?
Ela percebeu que ele a olhava de cima a baixo e rabiscava um papel.
- Desculpe, mas tenho que ir – ele disse, olhando fundo e empurrando um papel em direção a ela – Mas... fique com isso. Quem sabe?
Fernanda percebeu que sob a sua xícara havia um cartão. Olhou boquiaberta para o homem.
Estava feito o estrago. Fernanda fora aniquilada e desmoronava lentamente. Não sabia mais onde e nem o quê estava fazendo, só tinha uma certeza. Depois de vinte anos o destino colocara Álvaro Juan na sua frente, feito um borrão verde, e assim o cinema finalmente abria as portas para ela. Segurou forte o cartão, respirou fundo e leu.
Álvaro Juan. Nome e telefone. O seu futuro, ali.
Teve vontade de pular. Berrar. Sua vida ia mudar, certeza absoluta. Imediatamente pegou o telefone e discou para sua melhor amiga, Mari.
Ocupado.
Bom, tem a a Bel.
Caixa postal. Onde andaria a Bel?
Ah. A Simone!
Ninguém atendeu.
Tentou mais outra amiga. Mais outra. Tentou a mãe. Nada. Droga, bem na hora que precisava não conseguia achar ninguém. Nem umazinha amiga. Tinha que contar, falar. Mas pra quem?
Foi para o estacionamento e entrou no carro. Olhou o cartão do Álvaro mais uma vez. Beijou.
Calma, pensou. Calminha, Fernanda.
Depois de dez minutos chegou em casa. Nelsinho estava na cozinha, sorriu.
- Oi Fê.
Fernanda sorriu para o marido. Sua alegria era incontrolável.
- Que foi? Tá rindo de quê?
Ela não agüentou. Vinte anos esperando uma chance daquelas. Ela tinha que contar para alguém! Vinte anos! A excitação foi tanta que Fernanda, subitamente burra, abraçou Nelsinho e mostrou o cartão.
- Olha, olha!
- Qué isso?
- Um cartão do Álvaro Juan, o cineasta, Nelsinho! – disse, saltitante.
- Hã?
- Eu estava no shopping, caí, machuquei o olho. Um homem me ajudou, me pagou um café, me deu esse cartão e...
- Fernanda, um homem que você não conhece te deu isso? – ele perguntou, desconfiado.
- Não é um homem que eu não conheço, Nelsinho. É o Al...
- Você aceitou o café desse cara? Ficaram conversando?
- Bem, eu...
- Fernanda, não viu que era uma cantada desse filho da mãe?
- Nelsinho, eu...
- Vou jogar essa droga no lixo já. Fernanda, você é uma mulher casada! Qué isso?
- Não, Nelsinho, espera, é... é o Álvaro Juan!
Nelsinho, furioso, pegou o cartão, amassou e jogou na lixeirinha do lavabo. Fernanda, cabisbaixa e sem graça, olhou para a lata prateada. Num relance, o marido percebeu o olhar furtivo de Fernanda para a lixeirinha. Aquele olhar tinha segundas intenções. Óbviamente.
Ele voltou batendo os pés na tábua corrida da sala, pegou novamente o cartão amassado lixo enquanto Fernanda dava um berro.
- Não! Na privada não, Nelsinho!
Tarde demais. Num ímpeto, Nelsinho rasgou e jogou os restos do cartão de Álvaro Juan no vaso sanitário e deu a descarga, olhando furiosamente para ela.
E assim Fernanda, arrasada, viu seu destino, sua carreira cinematográfica, o Álvaro Juan e o tão esperado borrão verde irem embora esgoto abaixo.
- Nããão...!

quarta-feira, 15 de junho de 2005

no colinho




Falando de teatro, lembrei de outra história engraçada. Tenho uma amiga que é atriz e trabalha com o José Celso.
- Uma pena a L. trabalhar bem com esse cara. A gente nunca vai poder vê-la... – disse o Zé.
- Porquê?
- Assistir o José Celso? Eu? Nem a pau. Se ela trabalhasse com outro diretor, menos “interativo”, vá lá. Mas com esse José Celso Martinez Correa, nem pensar.
Explico. Para quem não sabe, o José Celso é um diretor de teatro excelente, mas completamente maluco. Geralmente ele pega alguém da platéia pra Cristo, coloca no meio da peça e faz isso, aquilo e outras coisitas mais...
Aquele negócio de teatro interativo.
Hummm.
Eu entendo o cara. Ele é apaixonado por teatro, e, como todo cara apaixonado, é completamente cego. Tem certeza que os espectadores estão também apaixonados pela trama e loucos de vontade de mergulhar na encenação. Pela cabeça dele não passa a idéia que a pessoa escolhida possa ter vergonha. Imagina só.
Engraçado esse cara.
Bom, mas existe muita gente que topa ir lá na frente e participar. Acho que (de novo) o mundo se divide em duas partes: os que participam e os que preferem virar um reles tapete de banheiro molhado a fazer qualquer coisa em público.
Bom, o Zé é um desses. Ele abomina a idéia de ser escolhido sem querer. Para ele seria um pesadelo monstruoso.
Além disso ele tem certeza – é uma certeza intuitiva, mas até que consistente – que eles escolhem justamente aqueles espectadores com cara de pânico. Sabe aquele que mais se esconde? O que disfarça, com cara de medo?
- Eu tenho cara de quem vai ser escolhido. Se eu for assistir o José Celso eles vão me colocar pelado no palco, tenho certeza ab-so-lu-ta. Não vou de jeito nenhum. Lembra o que aconteceu com o Caetano Veloso?
- Zé, nós ganhamos o convite... – insisti.
- Não vou. E o que aconteceu com o marido da tua irmã? Hein?
É verdade. O meu cunhado foi assistir as Bacantes, e um dos atores, no embalo e seminu, sentou no colo dele. Bom, meu cunhado não gosta dessas coisas. Ele contou que pediu pra o cara sair dali. O cara não saiu. Ele pediu de novo, não achando graça nenhuma naquilo. Nada. Todo mundo ria dele, inclusive o ator pelado no colo dele. Uma hora ele se irritou, deu um belíssimo bofete na cara do ator, levantou-se e foi embora, batendo os pés no chão e puxando minha irmã pela mão. Foi vaiado, um horror. Minha irmã não gosta nem de lembrar.
- Ô Zé, não acontece duas vezes na mesma família – argumentei.
- Acontece em todos os espetáculos. Todo dia tem um peladão lá na frente. Não vou.
Depois que eu insisti muito, mas muito mesmo, ele topou. Mas com algumas condições. O teatro oficina tem 3 andares, é um teatro comprido que se parece com uma rua. Ele me disse que só iria se sentássemos no terceiro andar, na última fileira e pendurados no cantinho mais escuro e mais escondido do teatro.
Feito dois ratos invisíveis.
Pois foi assim mesmo. Assistimos à peça de lá de cima, de longíssimo. Foi a melhor encenação de crânios da minha vida. Parecia um jogo de pebolim.
- Gostou? – ele me perguntou no final.
- Não vi nada – reclamei - absolutamente nada.
- Viu o suficiente. O importante, veja... – e ele mostrou o corpo, vitorioso – ... é que eu não tive que carregar ninguém no colo e saí de roupa. Você deve dar graças a Deus, lú. De roupa. Há! Vitória!

terça-feira, 14 de junho de 2005

power... poing, zuing, toim, buzzz



- E ai, Zé? Foi boa a reunião com a construtora?
- Ichi. Horrível. Tinha até PowerPoint.
- Ah. Com som?
- É... - ele me explicou, desiludido - Um tal de zuimmm, roarrr, poing. Um cafonalha danana. Não dá para contratar essa construtora. Era meta que subia, objetivo que descia, desafio que crescia, tópico que corria. Um horror - ele desabafou.
Concordo com ele. Tenho vontade de esganar a pessoa que inventou esse negócio de apresentação em formato de PowerPoint. Ô coisa que atrapalha a vida da gente.
Antigamente as pessoas vinham fazer reunião ou apresentar um trabalho e simplesmente falavam. Ah, que saudade do bom e velho blá-blá-blá. No máximo traziam um projeto ou umas fotos pra ilustrar. Agora não. Tudo virou desculpa para usar PowerPoint. Basta marcar uma reunião que lá vem alguém com um laptop e pimba!
Lasca um PowerPoint todo cheio de gráfico, tópico, organograma, barulho de carro e foguete, e, no final, um presente: uma cópia em CD daquela maravilha da tecnologia moderna pra você.
As pessoas que trabalham em empresas são, todas, no fundo, muito bobas. Só porque a coisa é feita num computador todo mundo acha que é barbaro e que impressiona. Está certo que e muito bom poder usar imagens para ilustrar um bom discurso de venda ou de apresentação de projeto, mas daí para oficializar a coisa é demais. PowerPoint ajuda, mas também enche a paciência. Para assistir um PowerPoint temos que parar o que estamos falando, mudar todo mundo de cadeira, diminuir a luz e ficar parado em frente ao micro, olhando aquele filme repetido. Organograma, cronograma, metas, desafio, fotos, objetivos.
Argh, eu detesto PowerPoint.
De uns anos para cá, a coisa chegou até dentro da escola dos meus filhos. O que antes era uma reunião de pais e mestres com a professora explicando o que aconteceria durante o ano virou uma enorme apresentação de organogramas, cronogramas, metas, desafios e objetivos num enorme telão. Nem se vê mais a cara da professora na escuridão, apenas ouvimos uma vozinha tímida que explica os organogramas, as metas, os desafios e os objetivos... O que é muito maluco é que a maioria dos pais fica feliz, afinal, a escola do filho fala uma linguagem moderna, empresarial, comtemporânea, cheia de organogramas, metas, desafios, objetivos, blá, blá, blá...
Já tentei agregar alguns pais e conhecidos na minha campanha contra o PowerPoint (CCPP), sem sucesso. Aliás, as pessoas nem entendem o que eu critico. Me olham como se eu fosse louca.
Olha. Para mim isso é a maior caipirice. Boas idéias não precisam de apresentações prontas e nem de formatos pseudo tecnológicos. Geralmente por trás disso tudo está um enorme vazio profissional, pedagógico ou empresarial. Temos que tomar muito cuidado com esses atalhos. Como eu já disse uma vez, eu desconfio de tudo que não entendo para que serve.
Depois de muito falar mal do PowerPoint aqui em casa, o João, meu filho menor, me chamou, rindo.
- Maiê, vem ver uma coisa.
- Fala, Juca.
- Hehehe. Fiz um PowerPoint da minha vida de presente para você. Senta aqui. Chama-se “A vida de João”.
E assim, no meio dos zuimmms, dos bangs, dos roarrrs e dos poings, a vida do meu filho do seu nascimento até os 11 anos virou um hilário e maravilhoso... PowerPoint.

segunda-feira, 13 de junho de 2005

o cabeça de jarra



Sou apaixonada por teatro. Além de escrever, adoro assistir. Nunca me programo pra sair, mas quando se trata de teatro eu fico no maior assanhamento: compro ingresso antes, escolho o dia, me arrumo toda.
Sexta feira foi um desses dias. Resolvi assistir Antígona, do Antunes Filho. O Zé comprou os ingressos e eu passei o dia saltitante. Acho simplesmente o máximo assistir um espetáculo ao vivo.
Chegamos uma hora antes, tamanha a minha excitação. Deu tempo de comer pipoca, tomar água, café, conversar com o Zé, olhar todo mundo que chegava e ler o prospecto inteirinho. O teatro estava lotado, não tinha um único lugar vago, mas o nosso lugar era excelente.
Tudo ia super bem, até que ele chegou.
O cabeção.
Juro, não dava para acreditar. Bem na minha frente sentou um homem com a maior cabeça do mundo. Era uma cabeça enorme, alta, comprida, com um formato de jarra de suco. Larga. Firme. Gigantona. Eu não acreditei, era muito azar. Só dava para ver uns ¾ do palco.
- Troca comigo, lu – sugeriu o Zé, percebendo o tamanho do estrago.
Tentei. Dava na mesma. No lugar dele eu continuava vendo os outros ¾, só que do lado oposto.
- Vamos esperar um pouco, quem sabe ele abaixa assim que começar... – conjeturou o Zé – ... as pessoas muito altas sabem que atrapalham. Além de tudo, ele está com a namorada e ela é baixinha. Daqui a pouco ele afunda pra beijar.
A peça começou, mas a cabeça não abaixou nem um centímetro. A jarra de suco continuava lá, firme, tapando todo o palco. Inacreditável.
Comecei a fazer uma ginástica para conseguir seguir a trama. É uma peça complicada, uma tragédia grega, com um coro, com as bacantes, uma multidão no palco. Tudo se mexia, mas a jarra permanecia imóvel. Quando os atores iam pra um lado, eu ia pro lado oposto da cabeça para enxergar. Quando os atores iam para o outro lado, lá ia eu para o lado contrário. Tipo uma papagaia de pirata bêbada, de ombro em ombro, espionando.
O problema é que a personagem principal, a Antígona, cismava em parar e declamar exatamente atrás da cabeça dele, num local onde era impossível vê-la. Devia existir uma marcação no palco bem ali. Para enxergá-la, eu tinha que subir lá no alto, esticando o pescoço.
Continuei com a dança. Pra cá, pra lá, pra cima. Pra cá, pra lá, pra cima. Cruza descruza as pernas, sobe, desce, vira. Eu estava atrapalhando as pessoas ao redor, mas que fazer?
Numa das idas e vindas, bati com a perna na cadeira dele. O homem, bravo, se virou.
- Shiu.
Quando ouvi aquilo, fiquei furiosa. Shiu? O cabeçudo me mandou calar a boca? Ah não, aquilo era demais.
Respirei fundo e cutuquei o homem, toda valente.
- Moço. Por favor.
Ele nem se mexeu. Cutuquei de novo.
- Escuta, dá para você abaixar a cabeça um pouco? Eu não vejo nada.
Parecia que não era com ele.
- Ei. Moçooo.
O Zé cochichou, baixinho.
- Deixa, lu. Acho que ele não vai abaixar. Tem gente que é assim. Paciência.
Olha, eu estava muito irritada.
- Droga. É o maior cabeção que eu já vi na vida – desabafei.
Ele ouviu. Ficou furioso, possesso. Virou-se para mim e falou bem alto uma frase que eu jamais colocaria aqui. E finalizou com o maior palavrão. Vixe.
Frankamente...
Bem, ele resolveu que era direito dele não se abaixar nem um milímetro. Talvez fosse mesmo, nunca ouvi falar de nenhuma lei que favorece as pessoas atrás das cabeçonas. Nos teatros e cinemas, temos que contar com o fator sorte. Não há leis que obriguem os cabeçudos a sentarem-se lá no fundo. Isso também é democracia, os cabeções e os cabecinhas devem saber conviver juntos.
Bom, resumindo, eu não vi nada da peça. Disseram que a atuação da Antígona foi excelente, mas não sei dizer se achei a peça boa ou ruim. Depois que ele me xingou, eu me encolhi na cadeira e passei o resto da peça chateada, borocoxô, olhando a cabeça e pensando no destino. Pensei em ir embora, mas isso seria admitir que ele venceu.
Olha, gente, a vida é assim. O que manda, no final das contas, é o acaso. Não adianta programar, não adianta espernear. Destino é destino. Quando a gente menos espera, lá vem uma cabeçona dura de roer.
Bom, posso não ter visto a peça, mas ao menos ganhei uma história...

o cachorrinho


Foi aniversário do filho de uma amiga. O menino fazia três anos.
Como ela não mora em São Paulo, a festa seria na casa da mãe. Venha, ela me disse, vou fazer só um bolinho pra não passar em branco.
A mãe morava num apartamento, não era longe. Mas festa em apartamento é sempre apertada. Em primeiro lugar, sempre tem um monte de crianças correndo, e criança correndo ocupa o dobro do espaço. Depois nunca tem cadeira para todo mundo, e as pessoas adoram de ficar em pé na frente das portas. A porta da cozinha, a porta da entrada e a porta do corredor ficam lotadas, o resto da sala, vazio. Vai entender.
A mãe da minha amiga, a dona do apartamento, foi logo avisando:
- Gente. Cuidado com o cachorrinho, hein?
- Cachorro?
Estranhei. Cabia um cachorro ali? A mulher explicou, rindo.
- Ah, o meu neto ganhou um cachorrinho. Um cachorrinho lindo!
Olhei para o chão. Lá estava ele, todo pirilampo, o cachorrinho - presente. Pretinho, saltitante e mínimo. Parecia um pom pom.
Bom, tente se lembrar como fica o chão das festas infantis. Tem de tudo: papel de embrulho, balão estourado, presente largado, brigadeiro, pratinho, brinquedo de montar, laço de fita, copinho, uma zona total. E no meio disto tudo, entre a correria das crianças e entre as tias se equilibrando para ir embora: ele.
O cachorrinho preto.
Cheguei perto de outra amiga. Ela tinha filhos da mesma idade dos meus, grandões, e já passou por milhões de festas. Olhamos para o cachorrinho e pressentimos um problema.
- Ichi. Isso não vai dar certo - ela suspirou.
Concordei. Aquilo não ia dar certo. Infelizmente.
Vagou um sofá e sentamos as duas. Ao nosso lado sentou uma amiga muito chique da dona da festa, bem vestida, elegante, salto altíssimo. Falou um pouco conosco, mostrou o filho com dedo fininho e olhou no relógio. Nossa. Tinha que ir embora. Levantou-se apressada demais, quando ouvimos o ganido:
- Unhiii!
Deusdocéu. Óbvio, ela pisou no cachorrinho com o salto do sapato chique. Fez uma cara de pânico.
Calma, dissemos, rindo. Abaixamos as três ao lado do cãozinho. Sussurrávamos, para a dona da festa não perceber o que aconteceu. A moça chique tremia, dizendo aimeuDeus, aimeuDeus. Minha amiga foi rígida.
- Shiu! Quer que todo mundo perceba essa encrenca que vocâ causou?
Ela apertou a boca, obedecendo. O cachorrinho, deitado na nossa frente, continuava imóvel.
- Morreu?
- Não sei.
- Tá respirando?
- Como que vê?
- Põe a tua orelha nele. Vê se bate o coração.
- Parece.
- Coloca em pé.
Ele ficou em pé, mas não andava.
- Não morreu. Senão tombava.
- Mas não anda.
- Quando morre não fica duro? Vai ver que morreu. AimeuDeus.
- Fica duro, mas demora. Primeiro fica mole.
- Empurra um pouquinho.
- Ei, assim ele cai . Devagar.
Estávamos as três em volta do micro cão, agachadas e fechadas em círculo, uma dando cobertura para a outra. Minha amiga dava uns tapinhas na bunda dele.
- Vamos. Vamos luluzinho. Lu-lu-ú.
O cachorrinho saiu meio zonzo, cambaleando. E ainda bem. Vivo.
Levantamos. A moça chique sorriu, aliviada e se despediu de todos. Comemos mais uns doces, conversamos mais um pouco, até que achei que era hora de ir embora também. Foi quando a dona da festa apareceu esbaforida, cara de desespero:
- Ele sumiu, fugiu, foi embora!
- Quem? O seu filho?
- Não! O cachorrinho!
Como ela falava alto, todo mundo se levantou. Será que alguém tinha sentado em cima? Começou um procura que procura. Ela declarou, chorando, que ele devia ter ido embora no elevador com a amiga chique.
Aquela moça é um perigo, comentei.
Começou a maior correria, no apartamento. A dona da festa pegou o interfone. O porteiro tinha visto um cãozinho preto?
- A senhora tem cachorro?
- Eu tenho, minha mãe não.
- Mas quem é a senhora?
- A filha! E o cachorrinho?
- Cachorro? Não tem cachorro aqui dona, tem só eu, o porteiro.
As crianças, as tias, a mãe, todo mundo atrás do cachorrinho. Uns no apartamento, outros lá embaixo, berrando. Escada, elevador, portas, cantos, estantes, bolsos, lixo. Nada. Ninguém se atrevia a sair. Como largar a dona da festa naquela situação? Nem sentar ficava bem.
- Falei que não ia dar certo.
A dona da festa, choramingava.
- Ahhh, gente, judiação...
Até que alguém gritou:
- Táqui!
Foi uma correria para o quarto do menino. Lá estava ele, o cachorrinho, dormindo sobre a cama, no meio dos presentes. A dona da festa colocou a mão no coração. Alívio! Mas quem colocou na cama? Ele não consegue subir, é tão pequenino!
- Mãe, fui eu.
Era o menininho aniversariante, até então completamente esquecido.
Ele continuou, calmamente.
- Você não falou para eu guardar os presentes espalhados em cima da cama? Eu pus.

sábado, 11 de junho de 2005

a sacolinha

(os fatos relatados abaixo são totalmente verdadeiros)
Me pediram para analisar um projeto de uma casa de praia. O dono queria fazer uma reforma. Estávamos no escritório da empresa dele, e eu resolvi levar o projeto para o meu escritório para estudar com calma.
-Devolvo amanhã – expliquei ao dono da casa – Pode ser?
Peguei minha bolsa e aquele volume enorme de plantas e desenhos nos braços para ir embora. O escritório ficava num prédio chique, bacana, daqueles neoclássicos da Faria Lima.
Quando eu estava saindo, uma das secretárias me chamou.
- Você vai com tudo isso na mão, lúcia? Não está pesado?
- Um pouco.
- Peraí, vou te arrumar uma sacolinha.
A moça entrou numa sala e voltou com uma sacolinha.
Da Daslu.
- Ana, você tá maluca?
- Que foi?
- Ana, uma sacola da... da... da Daslu?
- É ótima essa sacola. Firme. Grossa. Coloca as plantas aqui. Vamos.
- Ana, não posso – eu disse, dando um passo para trás – ... é uma questão de princípios. Eu nunca fui na Daslu, nunca pisei na calçada da Daslu e você quer que eu carregue uma sacola da Daslu, ainda por cima usada?
- Que é que tem? Que frescura.
- Tem que é ridículo. Ora, tem que parece que eu sou uma daquelas empregadas que saem no sábado perfumadas e com uma sacola da loja chique que a patroa compra. Coisa mais cafona, Ana!
- Hahaha, que exagero, Lúcia. É só uma sacolinha, é só até teu escritório. Você coloca essas coisas aqui... – ela ia falando e enfiando as plantas dentro da sacola preta – ... desce, pega o seu carro ai no estacionamento, chega em casa em 10 minutos e joga a sacola fora – ela me entregou o volume - Pronto. Tá apertado, mas coube.
Olhei para a sacolinha da Daslu. Estava quase explodindo.
Sai para o hall do elevador com aquilo na mão. A sacolinha estava toda amassarocada e meio velha. Uma vergonha que me deu. Tomara que não apareça ninguém, pensei.
Bom, chegou o elevador e eu entrei. Lá dentro havia apenas um homem e uma mulher. Eu juro por tudo que é mais sagrado, não estou inventando o que eu vou contar agora. O homem eu nunca vi mais gordo, mas a mulher que estava na minha frente eu sabia muito bem quem era. Já tinha visto aquele rosto em muitas revistas e jornais. Gente, eu juro, mas juro mesmo que aquela ali era a dona da Daslu, a Eliana Tranchesi. Ali, em carne e osso, bem nesse dia, bem nessa hora e naquele elevador. E eu ali com aquela horrenda sacolinha estufada, capenga, reutilizada, vexaminosa e cheia de papel velho. Ô droga. A mulher, que estava no celular, me olhou de cima a baixo duas vezes. Tentei esconder a sacolinha no meio das pernas, apertando com os joelhos para ela não ver a marca, mas acho que não deu certo. Que remédio... Fiquei firme até o térreo, tentando pensar “e daí?”, mas sentindo uma enorme vergonha. A viagem de elevador foi interminável.
Minha maior aproximação com a Daslu foi esse mico.
Bom, chegamos no subsolo. Claro que o carro dela era um bilhão de vezes melhor que o meu e claro que ela e seus seguranças passaram na minha frente sem me dar a menor pelota.
E eu fiquei ali, feito a empregada no ponto de ônibus, olhando aquele escândalo chiquérrimo de decolagem e praguejando sozinha com minha sacolinha...

sexta-feira, 10 de junho de 2005

daslandirú, o filme



Já repararam como a nova Daslu tem um prédio parecidíssimo com o velho Carandiru? São enormes as semelhanças. Não consigo entender como duas coisas podem ser tão diferentes e tão parecidas. As duas construções são castelos-fortalezas, as duas são dificílimas de entrar, as duas são prisões, as duas são da mesma altura e tem o mesmo volume.
Falta apenas o filme e a implosão da Daslu, o que não seria má idéia. Mas imagina o sucesso de um filme de uma rebelião na Daslu? Ei, Dráuzio, ei, Babenco, se alguém quiser bancar eu me candidato a fazer o roteiro do "Daslandirú". Aquelas peruas se degladiando pelas roupas de grife, a Eliana Tranchesi desesperada, as dasluzettes sendo pisoteadas pelas peruas de botox...
Engraçado.
Aliás, quer assunto mais em moda que a Daslu? Acabou-se esse negócio de ir em shopping, shopping agora é coisa mixa, demodée pra burro. O assunto do momento é a Daslu. Bom, pra quem ainda não sabe, a Daslu é uma loja carésima daqui de São Paulo onde você paga de estacionamento um preço de uma blusa.
Se antigamente o homem cultuava os deuses gregos, hoje em dia cultuamos os Guccis, Fendis, Pradas, Louis Vuittons, Diors, Yves Saint Laurents, Dolce Gabbanas e mais um monte de marcas. E todos esses deuses ganharam um espaço enorme só pra eles dentro do nosso templo da moda, a Daslu. Imagine daqui a uns 500 anos as ruínas da Daslu, que cômicas que serão, com aqueles manequins despedaçados, umas roupas podres e umas peruas embalsamadas pelo botox e silicone.
Mas o que me deixou encafifada na nova Daslu é a aparência de prisão que tem aquele prédio cheio de janelinhas mínimas. É muito parecido com o Carandiru. Não estou tirando sarro não, estou apenas constatando.
Além disso, é um prédio sem porta: ou você tem um carro daqueles bacanérrimos e blindados que abre qualquer guarita ou terá que ficar rodando a castelo durante dias sem achar uma única vaga por perto. O prédio pousou no nada. Juro. Chegar a pé? Impossível.
- Zé, acho essa Daslu uma idiotice. Só uma pessoa muito burra paga 30 reais pra estacionar o carro e 200 reais numa fivela.
- Também acho. Fico pensando nas coisas que tem na cabeça dessa dona da Daslu. Ao invés dela ter referências de arquitetura bacanas, inteligentes, na hora de construir ela se lembrou da caixa forte do Tio Patinhas e da casa do Riquinho Rico. Lembra do Riquinho? O personagem do gibi? O imaginário dessa mulher é a casa do Riquinho...
- Que pobreza.
- Mas lú, eu estou com medo do futuro. Tenho certeza que... que...
- Que o quê...?
O Zé olhou fundo nos meus olhos, resignado.
- Tenho certeza que um dia desses a gente vai nessa Daslu, eu e você. A gente não consegue ficar de fora dessas coisas da moda – ele suspirou, conformado.
- Nunca! Zé, eu não vou na Daslu nem morta! Eu nunca nem pisei na calçada dessa loja e me orgulho disso, você sabe.
- É. Mas nunca diga dessa água não beberei.
- Zé, não joga praga.
- Você vai ver. A gente já teve que ir em inauguração de Casa Cor, em evento de decoração com um monte de decoradora de preto, no shoppping D&D, naquele forró horrível, naquele hotel brega com monitoria, no show do Lulu Santos...
- Olha a implicância. O show do Lulu fui eu que quis ir.
- Pra mim foi mico.
- Mico é Daslu.
Ele continuou.
- Fomos até em festa do PT e dançamos! E eu sou PSDB roxo, você sabe!
- Mas Daslu, Zé? Eu não tenho nem roupa pra ir na Daslu.
- Você pede emprestado pra alguma prima. Olha, ouve o que eu estou falando, vai por mim, lú. Trate de se conformar que em breve a gente vai ter que colocar os pés lá dentro... ô meu Deus... ô coisa...

quinta-feira, 9 de junho de 2005

o cabelo vivo da cris

Já que o Pecus implica tanto com conversas de cabelereiro, aqui vai uma engraçada, em homenagem a ele...
Ela é minha manicura. Senta num banquinho baixinho com uma gavetinha cheias de alicates e esmaltes e faz minhas unhas toda semana.
- Tá diferente, ô Cris. Cortou o cabelo?
Ela sempre teve o cabelo cheio de trancinhas, mas naquele dia estava de cabelo preso, sem as tranças.
- Notou?
- Tá mais liso. E as trancinhas todas, você desfez?
- Não, eu tirei.
- Como assim?
- Aquelas tranças não eram minhas, lúcia. Eram falsas. Mas vou juntar dinheiro e colocar de novo. É que meu couro cabeludo precisa descansar, é perigoso ficar com aquilo muito tempo.
- Como é?
- Nunca reparou? Aquelas tranças não eram minhas, eram trançadas junto com o meu cabelo, aqui, perto da raiz, olha. O meu cabelo é bem curtinho – ela explicou, soltando o rabo de cavalo.
- Ave, Cris. Achei que você tinha um cabelão.
- Tenho não. E as tranças nem eram de cabelo natural. Eram de cabelo falso, sintético.
- Hã? Cabelo falso?
- É, comprei numa loja lá no centro – e ela começou a me explicar como se fosse a coisa mais normal do mundo – É quase perfeito. Cabelo de verdade custa muito caro. Olha, nas minhas tranças eu paguei 70 reais. Se fossem de cabelo de verdade eu teria que pagar uns... deixa ver... uns 450 reais, mais ou menos.
- Tudo isso?
- Cabelo é caríssimo. Vende por quilo. Um dia veio um rapaz aqui no salão e cortou o rabo de cavalo dele. Eu pedi para a dona do salão, ela me deu e eu guardei. Quem sabe um dia eu vendo. Um rabo lindo, loirinho, loirinho... um cabelo fininho...
- Ô Cris. Mas você não acha estranho usar um cabelo de outra pessoa?
- Ah. Isso eu acho.
- A gente não sabe de onde veio, né?
Ela olhou para os lados e passou a falar bem baixinho.
- Olha. Eu desconfio de uma coisa.
- Que é? – eu perguntei, cochichando também.
- Esses cabelos que eles vendem, esses cabelos humanos. Será que são de gente viva? Hein?
- Como é?
- E se for cabelo de morto?
- Avemaria, Cris.
Ela suspirou.
- Pois é. Pode ser de cabelo de defunto, de cadáver. Você acha que alguém reclama de cabelo quando a pessoa morre? Naquele desespero ninguém vê se a pessoa tá com o cabelo inteiro ou não, enfeita com flor, com véu. E se alguém vê, duvido que fale. Além disso, quando as pessoas morrem os outros só choram, não vêem nada com aqueles olhos embaçados. É a melhor hora para roubar cabelo – e ela cochicou mais baixo ainda - Eu desconfio que esses cabelos que eles vendem são tuuudo cabelo de morto. Olha, Não coloco na minha cabeça nem morta.
Ela deu um pulo, rindo.
- lúcia! Viu o que eu falei? “Não coloco nem morta”! Hahaha!

quarta-feira, 8 de junho de 2005

franka, a ET



Era almoço de aniversário na casa de uns amigos. Uma feijoada, um dia lindo de sol. Eu e o Zé nos servimos no buffet e fomos procurar um lugar para sentar.
- Oi. Tem alguém sentado aqui? – o Zé perguntou para um casal que estava sozinho numa mesa.
A moça, que estava de costas, se virou.
- Olha só! Oi, Lúcia, oi Zé!
Era uma conhecida nossa. Estava com o atual marido, que não conhecíamos ainda, e que ela prontamente apresentou.
Nos sentamos. O Zé rapidamente engatou numa conversa de “homens” com o novo marido e eu e ela começamos a falar daqueles assuntos fáceis e idiotas de mulher doismilianas: “os seus meninos estão bem?”, “você está morando aonde?”, “ah, reformou a casa?”...
Foi quando ela começou a me contar novo casamento.
- É maravilhoso recomeçar tudo do zero, não acha? Casa nova, marido novo...
- Deve ser, eu não sei. Eu nunca me separei – expliquei para ela - Casei com o Zé e estou com ele até hoje.
- Nooossa - ela arregalou um olhão - Quanto tempo de casada?
- Hum. Dezoito anos, acho. Deixa eu fazer a conta certa...
A mulher deu um berro. Era daquele tipo de mulher que falava encompridando as vogais.
- Uau! Incrííível! Faz muito tempo que eu não vejo isso!
- Hã?
- É fantástico, lúcia! Dezoito anos? Vocês devem ser suuuper analisados. Porque olha, minha filha, dezoito anos de casado não é naaada fácil... precisa de muita, muuuita análise, né?
- Errr... – eu fiquei meio embaraçada – Bem, nem eu nem o Zé nunca fizemos análise.
A moça deu outro berro, mais escandaloso ainda. Ai que vergonha.
- O quêêê? Nunca fizeram análise? Nunca mês-mo? Uau, que maluquiiiice – e ela começou a rir de nervoso, pasma – Hahaha, agora só falta você me falar que vocês nunca tomaram um antidepressivo, hahaha!
Saco, alguém já sentiu vergonha de ser normal?
- Bem, olha... errr... Eu nunca tomei não.
Ela largou o garfo e colocou as mãos na cintura, numa pose de açucareiro.
- Ô lúcia. Peraí. Primeiro casamento. Dezoito anos. Nunca fizeram análise. Nunca tomaram um anti depressivo. Escuta uma coisa.
- O quê?
Ela ficou pensativa, me olhando de cima a baixo, feito uma extraterrestre. Eu me senti envergonhada, desenturmada e completamente deslocada. Aquela mulher tão analisada, tão casada, tão depressiva e com vogais tão compridas parecia ser muito mais interessante que eu.
- Não é possííível! Acho que nem sei como falar com você. Em que mundo você vive?
Olhei o Zé meio de lado. Ele estava numa conversa animada com o novo marido dela. Nunca me senti tão confusa e tão sem graça com minha normalidade.
Sei lá. Em que mundo nós vivemos, hein, Zé?

terça-feira, 7 de junho de 2005

a leitoinha - IV

Ah, recebi uma receita espanhola de uma leitora, a Nora... dizia também que a leitoinha tinha que ser cortada "a lo largo"... vixe!
Ela está aqui em casa há uma semana e meia. Aos poucos nos acostumamos. O medo inicial, o susto, a invasão e a idéia de um ser tão distante estar morando conosco está sendo assimilada. Os meninos já tomam o sorvete que fica guardado no meio das pernas dela, já comem os pães de queijo que servem de travesseirinho e nós já usamos o gelo da geladeira nas nossas bebidas.
Eu mesma já levei visitas para conhecê-la.
- Venha ver a minha leitoinha, Jú – eu disse para a Julinha, a amiga do Chico – Venha conhecê-la pessoalmente – falei, abrindo o freezer e apresentando, orgulhosa, a minha porquinha cor-de-rosa.
Outro dia notei que seu focinho está exatamente na altura da minha boca. Tive ímpetos de dar uma bitoquinha nela. Em seguida, recuei, assustada com aqueles pensamentos absurdos. Brijar uma porca morta! Nojo! Ora, mas a Clarice Lispector não mudou a vida por causa de uma barata? Será que estou vivendo “A Paixão segundo L. C."?
- A Rita levou meu sorriso o sorriso dela meu assunto. Levou junto com ela o que me é de direito arrancou-me do peito e tem mais. Levou meu retrato meu trato meu papel. Uma imagem de São Francisco e um bom disco de Noel.
- Tá alegre, hein, lúcia? - perguntou a Maria ao me ver cantarolando diante da geladeira.
Tudo culpa de uma confusão de posts – eu intercalei uma crônica sobre uma amiga chamada Rita com dois posts da leitoinha – e, depois disso, toda vez que eu olho para a cara congelada da leitoinha eu me lembro da musiquinha que alguém cantou num comentário.
Ô minha santa Rita.
- Lucinha! Uma leitoinha! – exclamou minha sogra, eufórica, sábado - Mas o que é que deu em você? Você nem entrava na cozinha quando eu trazia as minhas leitoinhas da fazenda!
- É... ganhamos de um amigo....
- Ai, que maravilha! Agora você vai entender como é bom comer leitoa! Olha, leva para um açougue pede para eles cortarem ao meio, em duas bandas – ela avaliou, puxando a leitoa para fora do freezer e avaliando suas dimensões.
- Duas bandas?
- É, leitoa grande assim tem que cortar no meio – ela explicou, riscando o meio do rosto dela mesma com a mão, como se ela resolvesse se cortar em duas bandas – assim, no sentido longitudinal. Você divide em duas e faz duas leitoinhas. Ou, melhor...
Interrompi.
- Dona Helena, a senhora tá doida?
Ela nem me ouviu.
- ... parte em quatro, imagina, uma beleza dessas dá para fazer muuuitos almoços... – explicou, animada – Um dia você faz a parte da frente e depois...
Eu falei mais alto, brava.
- Dona Helena, pára com isso. A senhora me conhece. Já é difícil pra mim fazer uma leitoinha e a senhora quer que eu esquarteje e faça... quatro? Tá maluca?
Foi quando ouvimos o Zé murmurar baixinho alguma coisa.
- Mercado de Pinheiros.
- Hã?
- Vou levar no mercado de Pinheiros. Lá eles têm instrumentos para cortar esse bicho no meio - ele ficou parada um tempão - Isso. Vou cortar essa leitoa ao meio.
- Zé! Não!
- É melhor - ele me olhou sério – É melhor.
- Olha, Zé, tudo bem a gente até comer a leitoa, mas acho que ela deve ser assada com uma certa... dignidade – defendi, gaguejando – e.. e.. e não toda decomposta na mesa e...
Ele interrompeu, definitivo.
- Vamos cortar em duas.
Olha, eu não sei. O Zé estava com um olhar estranho, esquisito. Tive arrepios. Nunca achei que ele seria capaz de uma crueldade dessas, cortar a nossa leitoa em duas, fatiá-la como se ela fosse uma reles... maçã. Mas ele foi definitivo. Por um instante eu não reconheci o meu marido. Aquele era um homem frívolo, que não titubeou em partir em dois um animal do tamanho da nossa cadela.
Avemaria.
É. Como eu disse acima, ter um animal inteiro e morto em casa muda o comportamento da gente. Há algum tempo a vida selvagem não nos acenava tão de perto. Isso talvez seja bom para repensarmos nossa vida. Veja, no asséptico mundo virtual não há sangue, não há trabalho sujo - mas na vida real há. O Zé tem razão. Temos que enfrentar os desafios com valentia, como ele fez naquele instante. Pensei em perguntar novamente para ele se ele realmente teria coragem, mas tive medo da resposta. E, desde então, estamos em silêncio sobre o futuro da nossa leitoa.
Eu sei, é apenas uma leitoa.
E é também uma... leitoa.

A Rita levou meu sorriso o sorriso dela meu assunto.

segunda-feira, 6 de junho de 2005

... de ladinho


clint eastwood - imagem do arquivo pessoal da franka

Olhaqui.
Nunca entendi porque temos que dirigir o carro do lado esquerdo. Somos animais simétricos, com dois olhos, duas pernas, dois braços, duas orelhas. Tudo que fazemos tem a ver com essa simetria: andar, correr, nadar, sentar. É um equilíbrio natural: o lado de cá equilibra o lado de lá.
É muito bom isso. A nossa harmonia corporal me encanta.
Nos transportes antigos, seja montado nos dinossauros, nos cavalos, camelos ou elefantes, o homem sempre se locomoveu em simetria, num equilíbrio perfeito. Depois nas carruagens, carroças e diligências, o condutor permanece no meio, atrás do cavalo ou no meio dos dois cavalos. Nas bicicletas e motos, idem: simetria total no ato de se conduzir.
Mas e nos carros, nosso principal meio de transporte desse mundo contemporâneo? Porque temos que sentar do lado esquerdo e não no meio, com dois bancos de passageiros, um de cada lado? Quem foi que inventou essa esquisitice?
Fico cismadérrima. Acho que o inventor do carro devia ser um cara muito inseguro. Alguém que não acreditava no invento, provavelmente um medroso, um cagão (desculpa pela palavra feia), que precisava de um amiguinho ali do ladinho pra dar apoio moral. Um fulano sem confiança nenhuma, ora. Que diabos é esse homem que, ao invés de se sentar no melhor lugar, fica do “ladinho”?
Hummm. Do ladinho, hein...?
Ah, vá. Tem alguma coisa esquisita aí. E depois, sentadinho. Ora bolas, até essa época, homem que é homem montava, de pernas abertas. Montar sempre foi um sinônimo de masculinidade total. Lembra dos files de cowboy? Mesmo desmontados os homens arqueavam as pernas, para não esquecer que eram machos.
Mas o homem do carro não. Começou a dirigir sentadinho e de lado, hesitante, inseguro, provavelmente indeciso, fraco. Devia reclamar o tempo todo.
- Ai-ai. E agora? E se o carro morrer? E se eu não conseguir parar, o que eu faço? Ai... – e olhando para o lado – ... não sai daí, por favor. Ai. Não sai daí.
Tá na cara que o inventor do carro era um homem medroso. No primeiro probleminha largava o carro nas mãos do outro. Gente, fala a verdade. Homem que é homem senta no meio, na anca do cavalo, na sela do camelo, no banco da moto, ora.
Será que ninguém vai inventar um carro onde se dirige no meio, e montado?
Já faz tempo que eu encano com isso. Nunca gostei de carregar aquele vazio do meu lado, me parece das coisas mais estúpidas do tempo moderno. A gente faz tanto estudo ergonométrico para tudo, e no lugar onde a gente passa quase um terço do nosso dia a gente fica de ladinho, no cantinho, perpetuando a insegurança, a indecisão. Talvez seja por isso que tem tanta gente com baixa auto estima no mundo. Talvez seja essa a causa do aumento da depressão no homem moderno. Alguém deveria fazer uma pesquisa: tenho certeza que motoqueiro tem menos depressão que motorista de carro.
Tou doida? Isso não deveria mudar?