terça-feira, 7 de junho de 2005

a leitoinha - IV

Ah, recebi uma receita espanhola de uma leitora, a Nora... dizia também que a leitoinha tinha que ser cortada "a lo largo"... vixe!
Ela está aqui em casa há uma semana e meia. Aos poucos nos acostumamos. O medo inicial, o susto, a invasão e a idéia de um ser tão distante estar morando conosco está sendo assimilada. Os meninos já tomam o sorvete que fica guardado no meio das pernas dela, já comem os pães de queijo que servem de travesseirinho e nós já usamos o gelo da geladeira nas nossas bebidas.
Eu mesma já levei visitas para conhecê-la.
- Venha ver a minha leitoinha, Jú – eu disse para a Julinha, a amiga do Chico – Venha conhecê-la pessoalmente – falei, abrindo o freezer e apresentando, orgulhosa, a minha porquinha cor-de-rosa.
Outro dia notei que seu focinho está exatamente na altura da minha boca. Tive ímpetos de dar uma bitoquinha nela. Em seguida, recuei, assustada com aqueles pensamentos absurdos. Brijar uma porca morta! Nojo! Ora, mas a Clarice Lispector não mudou a vida por causa de uma barata? Será que estou vivendo “A Paixão segundo L. C."?
- A Rita levou meu sorriso o sorriso dela meu assunto. Levou junto com ela o que me é de direito arrancou-me do peito e tem mais. Levou meu retrato meu trato meu papel. Uma imagem de São Francisco e um bom disco de Noel.
- Tá alegre, hein, lúcia? - perguntou a Maria ao me ver cantarolando diante da geladeira.
Tudo culpa de uma confusão de posts – eu intercalei uma crônica sobre uma amiga chamada Rita com dois posts da leitoinha – e, depois disso, toda vez que eu olho para a cara congelada da leitoinha eu me lembro da musiquinha que alguém cantou num comentário.
Ô minha santa Rita.
- Lucinha! Uma leitoinha! – exclamou minha sogra, eufórica, sábado - Mas o que é que deu em você? Você nem entrava na cozinha quando eu trazia as minhas leitoinhas da fazenda!
- É... ganhamos de um amigo....
- Ai, que maravilha! Agora você vai entender como é bom comer leitoa! Olha, leva para um açougue pede para eles cortarem ao meio, em duas bandas – ela avaliou, puxando a leitoa para fora do freezer e avaliando suas dimensões.
- Duas bandas?
- É, leitoa grande assim tem que cortar no meio – ela explicou, riscando o meio do rosto dela mesma com a mão, como se ela resolvesse se cortar em duas bandas – assim, no sentido longitudinal. Você divide em duas e faz duas leitoinhas. Ou, melhor...
Interrompi.
- Dona Helena, a senhora tá doida?
Ela nem me ouviu.
- ... parte em quatro, imagina, uma beleza dessas dá para fazer muuuitos almoços... – explicou, animada – Um dia você faz a parte da frente e depois...
Eu falei mais alto, brava.
- Dona Helena, pára com isso. A senhora me conhece. Já é difícil pra mim fazer uma leitoinha e a senhora quer que eu esquarteje e faça... quatro? Tá maluca?
Foi quando ouvimos o Zé murmurar baixinho alguma coisa.
- Mercado de Pinheiros.
- Hã?
- Vou levar no mercado de Pinheiros. Lá eles têm instrumentos para cortar esse bicho no meio - ele ficou parada um tempão - Isso. Vou cortar essa leitoa ao meio.
- Zé! Não!
- É melhor - ele me olhou sério – É melhor.
- Olha, Zé, tudo bem a gente até comer a leitoa, mas acho que ela deve ser assada com uma certa... dignidade – defendi, gaguejando – e.. e.. e não toda decomposta na mesa e...
Ele interrompeu, definitivo.
- Vamos cortar em duas.
Olha, eu não sei. O Zé estava com um olhar estranho, esquisito. Tive arrepios. Nunca achei que ele seria capaz de uma crueldade dessas, cortar a nossa leitoa em duas, fatiá-la como se ela fosse uma reles... maçã. Mas ele foi definitivo. Por um instante eu não reconheci o meu marido. Aquele era um homem frívolo, que não titubeou em partir em dois um animal do tamanho da nossa cadela.
Avemaria.
É. Como eu disse acima, ter um animal inteiro e morto em casa muda o comportamento da gente. Há algum tempo a vida selvagem não nos acenava tão de perto. Isso talvez seja bom para repensarmos nossa vida. Veja, no asséptico mundo virtual não há sangue, não há trabalho sujo - mas na vida real há. O Zé tem razão. Temos que enfrentar os desafios com valentia, como ele fez naquele instante. Pensei em perguntar novamente para ele se ele realmente teria coragem, mas tive medo da resposta. E, desde então, estamos em silêncio sobre o futuro da nossa leitoa.
Eu sei, é apenas uma leitoa.
E é também uma... leitoa.

A Rita levou meu sorriso o sorriso dela meu assunto.

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