segunda-feira, 13 de junho de 2005

o cabeça de jarra



Sou apaixonada por teatro. Além de escrever, adoro assistir. Nunca me programo pra sair, mas quando se trata de teatro eu fico no maior assanhamento: compro ingresso antes, escolho o dia, me arrumo toda.
Sexta feira foi um desses dias. Resolvi assistir Antígona, do Antunes Filho. O Zé comprou os ingressos e eu passei o dia saltitante. Acho simplesmente o máximo assistir um espetáculo ao vivo.
Chegamos uma hora antes, tamanha a minha excitação. Deu tempo de comer pipoca, tomar água, café, conversar com o Zé, olhar todo mundo que chegava e ler o prospecto inteirinho. O teatro estava lotado, não tinha um único lugar vago, mas o nosso lugar era excelente.
Tudo ia super bem, até que ele chegou.
O cabeção.
Juro, não dava para acreditar. Bem na minha frente sentou um homem com a maior cabeça do mundo. Era uma cabeça enorme, alta, comprida, com um formato de jarra de suco. Larga. Firme. Gigantona. Eu não acreditei, era muito azar. Só dava para ver uns ¾ do palco.
- Troca comigo, lu – sugeriu o Zé, percebendo o tamanho do estrago.
Tentei. Dava na mesma. No lugar dele eu continuava vendo os outros ¾, só que do lado oposto.
- Vamos esperar um pouco, quem sabe ele abaixa assim que começar... – conjeturou o Zé – ... as pessoas muito altas sabem que atrapalham. Além de tudo, ele está com a namorada e ela é baixinha. Daqui a pouco ele afunda pra beijar.
A peça começou, mas a cabeça não abaixou nem um centímetro. A jarra de suco continuava lá, firme, tapando todo o palco. Inacreditável.
Comecei a fazer uma ginástica para conseguir seguir a trama. É uma peça complicada, uma tragédia grega, com um coro, com as bacantes, uma multidão no palco. Tudo se mexia, mas a jarra permanecia imóvel. Quando os atores iam pra um lado, eu ia pro lado oposto da cabeça para enxergar. Quando os atores iam para o outro lado, lá ia eu para o lado contrário. Tipo uma papagaia de pirata bêbada, de ombro em ombro, espionando.
O problema é que a personagem principal, a Antígona, cismava em parar e declamar exatamente atrás da cabeça dele, num local onde era impossível vê-la. Devia existir uma marcação no palco bem ali. Para enxergá-la, eu tinha que subir lá no alto, esticando o pescoço.
Continuei com a dança. Pra cá, pra lá, pra cima. Pra cá, pra lá, pra cima. Cruza descruza as pernas, sobe, desce, vira. Eu estava atrapalhando as pessoas ao redor, mas que fazer?
Numa das idas e vindas, bati com a perna na cadeira dele. O homem, bravo, se virou.
- Shiu.
Quando ouvi aquilo, fiquei furiosa. Shiu? O cabeçudo me mandou calar a boca? Ah não, aquilo era demais.
Respirei fundo e cutuquei o homem, toda valente.
- Moço. Por favor.
Ele nem se mexeu. Cutuquei de novo.
- Escuta, dá para você abaixar a cabeça um pouco? Eu não vejo nada.
Parecia que não era com ele.
- Ei. Moçooo.
O Zé cochichou, baixinho.
- Deixa, lu. Acho que ele não vai abaixar. Tem gente que é assim. Paciência.
Olha, eu estava muito irritada.
- Droga. É o maior cabeção que eu já vi na vida – desabafei.
Ele ouviu. Ficou furioso, possesso. Virou-se para mim e falou bem alto uma frase que eu jamais colocaria aqui. E finalizou com o maior palavrão. Vixe.
Frankamente...
Bem, ele resolveu que era direito dele não se abaixar nem um milímetro. Talvez fosse mesmo, nunca ouvi falar de nenhuma lei que favorece as pessoas atrás das cabeçonas. Nos teatros e cinemas, temos que contar com o fator sorte. Não há leis que obriguem os cabeçudos a sentarem-se lá no fundo. Isso também é democracia, os cabeções e os cabecinhas devem saber conviver juntos.
Bom, resumindo, eu não vi nada da peça. Disseram que a atuação da Antígona foi excelente, mas não sei dizer se achei a peça boa ou ruim. Depois que ele me xingou, eu me encolhi na cadeira e passei o resto da peça chateada, borocoxô, olhando a cabeça e pensando no destino. Pensei em ir embora, mas isso seria admitir que ele venceu.
Olha, gente, a vida é assim. O que manda, no final das contas, é o acaso. Não adianta programar, não adianta espernear. Destino é destino. Quando a gente menos espera, lá vem uma cabeçona dura de roer.
Bom, posso não ter visto a peça, mas ao menos ganhei uma história...

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