as batatas
Pedi um chá para a empregada nova, que veio cobrir as férias da minha. É uma senhora, boazinha, mas completamente insegura.
Ela entrou com a bandejinha. Como minha mesa está abalroada de papéis e eu escrevo um relatório, ela não sabe o que fazer.
Tentou colocar a bandejinha aqui, ali, acolá, mas não decidiu onde apoiar. Encostou numa pilha de papéis, colocou na ponta da mesa, virou de lado, rodou, rodou. Me olhou, desesperada, até eu salvá-la daquele pesadelo.
Como descrevê-la? Lerda? Confusa? Tantã? Atrapalhada? Nervosa? Zonza? Uma hora descobri: hesitante.
Puxa vida. Sua hesitação me incomoda profundamente. Ela se atrapalha o tempo todo, gagueja, não sabe onde está, não tem idéia do que deve fazer e gira ao meu redor o dia todo. Empregadas devem servir, não deixar a gente com tontura. E, se só de lembrar tenho náuseas, imagina na hora do almoço.
Céus.
No final de semana falei que ela devia servir o almoço, ou seja, colocar as travessas com a comida sobre a mesa onde estávamos todos sentados. Bom, em qualquer mesa de refeição existe um projeto básico de distribuição das travessas. Nunca tinha pensado nisso, mas percebi que para ela o espaço da mesa era indominável, um verdadeiro Saara, um deserto, sem referência alguma, e que ela entrava em pânico quando chegava perto da mesa.
Explico. Todo mundo sentado quando ela veio com a travessa de arroz. Hesitou, mas colocou, tremendo, a travessa sobre um dos aparadores. Saiu da sala e voltou com travessa da carne, segurando pelas pontinhas. Ela murmurava “carne, carne... táqui a carne”, como se a carne ouvisse sua voz e pudesse ir sozinha para algum lugar. Ainda tremendo, pousou a travessa bem grudadinha no arroz. Encostadinha. Achei estranho, mas acho que foi porque o arroz era a única referência que ela tinha naquele momento.
Ela saiu da sala e um dos meninos começou a rir baixinho, de puro nervoso. Em seguida voltou com a salada, gemendo: “salada... salada táqui...”.
E pict.
Encostou nas outras duas travessas.
Aquilo começou a me dar medo. Todos estávamos em silêncio total. Depois de uma eternidade ela voltou com a batata, sussurrando o mantra,“batata, a batata aqui...”.
Eu não aguentei. Peguei a travessa da batata das mãos dela e coloquei bem longe, a quilômetros dali, do outro lado da mesa, só para provocá-la. Ela ficou apavorada, deu um passo para trás. Como eu pude colocar a travessa da batata, daquele modo, sem encostar em nada? Foi como se eu a jogasse num abismo e ela caísse falando “batata, batata...”. Senti que ela teve uma vontade irresistível de salvar a batata, colocando-a perto das outras comidas, mas hesitante daquele modo ela nada fez. Se dependesse do salvamento dela, babau para a batata.
Olhei ao redor. O clima do almoço de sábado estava tão pesado, tão mortífero, que carinhosamente pedi que ela voltasse para a cozinha, que o resto seria por minha conta. Eu servia, eu trazia, eu tirava, não precisa mais nada.
Passei o dia pensando na mulher. De onde vem tanta hesitação?
Provavelmente porque ela, como muitas de nós, nunca teve uma vida só dela. Ela nunca deve ter aprendido a se virar sozinha, deve ter passado a vida apoiada nos outros, encostada em outras travessas. As suas mãos trêmulas são a síntese da alma feminina.
A linha entre a segurança e a insegurança nas mulheres são muito, muito tênues. Podemos a qualquer momento achar mais fácil nos apoiarmos do que achar um lugar seguro no meio dos desertos. Os pontos de referência muitas vezes não existem. Precisamos criá-los, a começar, colocando com toda a força das mãos a travessa da batata num canto isolado. E muitas travessas numa mesa desértica formam um almoço. E um almoço não é só um monte de travessas, é também uma celebração, uma enorme festa.
Bom, a mulher vai embora logo, talvez não consiga entender tudo isso. Mas espero conseguir, ao menos, que ela consiga desgrudar as travessas e que esqueça de salvar as batatas. Ao menos isso, e ela poderá se salvar.
Ela entrou com a bandejinha. Como minha mesa está abalroada de papéis e eu escrevo um relatório, ela não sabe o que fazer.
Tentou colocar a bandejinha aqui, ali, acolá, mas não decidiu onde apoiar. Encostou numa pilha de papéis, colocou na ponta da mesa, virou de lado, rodou, rodou. Me olhou, desesperada, até eu salvá-la daquele pesadelo.
Como descrevê-la? Lerda? Confusa? Tantã? Atrapalhada? Nervosa? Zonza? Uma hora descobri: hesitante.
Puxa vida. Sua hesitação me incomoda profundamente. Ela se atrapalha o tempo todo, gagueja, não sabe onde está, não tem idéia do que deve fazer e gira ao meu redor o dia todo. Empregadas devem servir, não deixar a gente com tontura. E, se só de lembrar tenho náuseas, imagina na hora do almoço.
Céus.
No final de semana falei que ela devia servir o almoço, ou seja, colocar as travessas com a comida sobre a mesa onde estávamos todos sentados. Bom, em qualquer mesa de refeição existe um projeto básico de distribuição das travessas. Nunca tinha pensado nisso, mas percebi que para ela o espaço da mesa era indominável, um verdadeiro Saara, um deserto, sem referência alguma, e que ela entrava em pânico quando chegava perto da mesa.
Explico. Todo mundo sentado quando ela veio com a travessa de arroz. Hesitou, mas colocou, tremendo, a travessa sobre um dos aparadores. Saiu da sala e voltou com travessa da carne, segurando pelas pontinhas. Ela murmurava “carne, carne... táqui a carne”, como se a carne ouvisse sua voz e pudesse ir sozinha para algum lugar. Ainda tremendo, pousou a travessa bem grudadinha no arroz. Encostadinha. Achei estranho, mas acho que foi porque o arroz era a única referência que ela tinha naquele momento.
Ela saiu da sala e um dos meninos começou a rir baixinho, de puro nervoso. Em seguida voltou com a salada, gemendo: “salada... salada táqui...”.
E pict.
Encostou nas outras duas travessas.
Aquilo começou a me dar medo. Todos estávamos em silêncio total. Depois de uma eternidade ela voltou com a batata, sussurrando o mantra,“batata, a batata aqui...”.
Eu não aguentei. Peguei a travessa da batata das mãos dela e coloquei bem longe, a quilômetros dali, do outro lado da mesa, só para provocá-la. Ela ficou apavorada, deu um passo para trás. Como eu pude colocar a travessa da batata, daquele modo, sem encostar em nada? Foi como se eu a jogasse num abismo e ela caísse falando “batata, batata...”. Senti que ela teve uma vontade irresistível de salvar a batata, colocando-a perto das outras comidas, mas hesitante daquele modo ela nada fez. Se dependesse do salvamento dela, babau para a batata.
Olhei ao redor. O clima do almoço de sábado estava tão pesado, tão mortífero, que carinhosamente pedi que ela voltasse para a cozinha, que o resto seria por minha conta. Eu servia, eu trazia, eu tirava, não precisa mais nada.
Passei o dia pensando na mulher. De onde vem tanta hesitação?
Provavelmente porque ela, como muitas de nós, nunca teve uma vida só dela. Ela nunca deve ter aprendido a se virar sozinha, deve ter passado a vida apoiada nos outros, encostada em outras travessas. As suas mãos trêmulas são a síntese da alma feminina.
A linha entre a segurança e a insegurança nas mulheres são muito, muito tênues. Podemos a qualquer momento achar mais fácil nos apoiarmos do que achar um lugar seguro no meio dos desertos. Os pontos de referência muitas vezes não existem. Precisamos criá-los, a começar, colocando com toda a força das mãos a travessa da batata num canto isolado. E muitas travessas numa mesa desértica formam um almoço. E um almoço não é só um monte de travessas, é também uma celebração, uma enorme festa.
Bom, a mulher vai embora logo, talvez não consiga entender tudo isso. Mas espero conseguir, ao menos, que ela consiga desgrudar as travessas e que esqueça de salvar as batatas. Ao menos isso, e ela poderá se salvar.
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