terça-feira, 31 de maio de 2005

a leitoinha - II

A leitoinha está me assustando. Não tenho mais coragem de abrir o freezer.
- Coube – falou o Zé, apertando a leitoa no vão entre as gavetas e as bandejas de gelo – Mas ela está com a cara bem na porta, olhando para quem abre. Olhaí.
É assustador. Ter um animal no freezer é um fato ligeiramente macabro para uma pessoa civilizada e urbana como eu, que passa o dia olhando para uma tela de computador e que não mata nem uma galinha.
Hoje, na hora do café da manhã, tive arrepios. Lembrei daquele animal congelado e dormindo para sempre a menos de um metro de mim, com cabeça, orelha, rabo, pernas e focinho. Ah, e patas. A leitoinha veio até com patas.
Tive pesadelos essa noite. E se a polícia aparecer? É permitido ter um porquinho morto na geladeira?
- É leitão ou leitoa, lúcia? – perguntou a Silvia, minha amiga.
- Como assim?
- Ora, faz a maior diferença, se a gente pensar bem. É uma questão interessante. Se for leitão tudo bem, mas e se for uma mulher? Já imaginou uma mulher na sua geladeira? Uma fêmea, como você?
- Ai. Como a gente descobre?
- Abre as pernas e olha – ela sugeriu.
Liguei para a M.
- M., me diz uma coisa. É homem ou mulher?
- Quem?
- A leitoinha.
- Hum. Não sei – ela começou a rir - Aposto que isso é coisa da Silvia.
- É mesmo, mas agora encasquetei. Escuta, você acha que o animal veio com partes íntimas?
- Nossa, que pergunta, Lúcia.
- Como eu posso saber se é homem ou mulher? A Silvia mandou eu abrir as pernas do bicho.
- Hahaha, tipo um exame ginecológico? Não, não. Acho que eles tiram toda a genitália. Para não ter sexo.
Pior ainda, pensei. Um animal sem sexo, abatido e congelado. Nove quilos. Tadinho. Isso é coisa que se faça? Eu não devia ter aceito.
- Já sei. Se não tiver sexo, a gente olha para a cara e descobre – eu sugeri.
- Olha a cara?
- Fêmea tem cara de fêmea. Macho tem cara de macho. É só ter um pouco de sensibilidade que dá para saber.
A M. deu risada.
- É. E dependendo do que for, Lúcia, você coloca uma coisa diferente na boca.
- Na boca? A Silvia falou para eu colocar uma maçã.
- Vamos fazer assim. Se for mulher, você coloca a maçã. Se for homem, coloca outra coisa.
- Que coisa?
- Hum, deixa ver... Já sei. Um cravo.
- Hã? Um cravo?
- É. Um cravo vermelho! Que tal?
- Tipo... um dançarino de tango, M.?
- Sim. Tipo um dançarino de tango!
- Isso é sério, M.?
- Hahaha! Claro! – ela me respondeu, gargalhando de rir.

Céus. Alguém sabe como eu descubro se minha leitoinha é homem ou mulher sem ter que fazer o exame ginecológico?

segunda-feira, 30 de maio de 2005

domingo, nove da noite


Domingo, nove da noite.
É exatamente nessa hora que eu tenho medo. É a hora que me sinto mais desatenta, mais sem graça e mais burra. É a hora que as coisas não tem a mínima graça. É a hora que minha cabeça se desarruma toda, fora de ordem, descombinada.
É a hora da vertigem. Vou despencar na segunda feira.
É assim desde que sou pequena. Quando tinha uns doze anos, minha mãe me mandava comprar pão na padaria para o lanche do domingo à noite. Era o único dia que comíamos lanches, e por isso o pão francês com queijo e presunto era um verdadeiro banquete. Até hoje me lembro do gosto do sanduíche que comíamos com guaraná. Como era bom aquele sanduíche de presunto com guaraná. Mas junto com essa lembrança existe a memória do caminho da padaria. Eu percorria aquelas cinco quadras sozinha ou com a Ângela, minha irmã: a rua Augusta completamente vazia, o comércio fechado, um silêncio entrecortado por alguns berros. Alguma coisa naquele caminho me dava a impressão de abandono, de desamparo diante do tempo. Era a segunda feira, era o futuro, era um buraco, era aquele singelo pão quente. As minhas esquinas do domingo eram sujas, os meus becos eram escuros, o silêncio gargalhava da minha inocência. Naquele caminho eu era mais orfã, mais criança e mais adulta no aprendizado do que é a melancolia. E foi naquela hora que eu aprendi a ter medo dos outros dias da semana, que acenavam na penumbra do final de tarde. A padaria ficava numa esquina decadente, cercada de casas antigas e demolições, e volta e meia o local estava cheio de bêbados. Não tínhamos receio de andar ali, vivíamos no interior, conviver com bêbados era normal. Ignorávamos os lamentos dos homens embriagados cruzando os braços e apertando os passos, como mandava a nossa mãe. Mas não era possível ignorar a tristeza e a angústia do caminho, com o pão quente, o guaraná e os frios dentro do saco de papel.
Hoje, trinta anos depois, ainda comemos lanches e guaraná no final da tarde do domingo.
E eu, mesmo estando longe daquela rua, ainda sinto a mesma aflição.

domingo, 29 de maio de 2005

a leitoinha - I



- Lú. Acorda.
- Fala, Zé.
- Bom dia.
- Oi. Bom dia.
- Tua amiga M. ligou agora.
- Você falou que eu estava dormindo?
- Falei. Mas ela conversou comigo.
- Conversou o quê?
- Ela falou que eles foram pra o interior e trouxeram um presente pra gente.
- Um presente?
- É. Uma leitoinha.
- Quê? Uma leitoa?
- É.
- Ai, ai... Viva?
- Não. Morta.
- Ufa.
- Nove quilos.
- Nove quilos?
- Congelada. Está lá no freezer deles. A gente tem que ir buscar hoje a noite, depois da parada gay.
- E vamos colocar onde?
- Aqui. No nosso freezer.
- Ichi. Tá meio lotado nosso freezer. Fiz compras ontem.
- Temos que dar um jeito. É um presente.
- Está limpa?
- Acho que sim.
- Tem cabeça?
- Tem.
- Vem com pele? Com pêlo?
- Acho que vem com pele. Sem pelo. Eu espero.
- E perna?
- Num sei. Deve ter coxa.
- Ai. Que medo.
- Medo, lú?
- Não é bem medo. É estranho, entende? Parece que a gente é índio canibal, Zé. Pensa. Um bicho enorme e morto aqui em casa, e a gente se preparando para comer. Tenho vontade de assar no quintal, numa fogueira, uma coisa mais rural, mais selvagem. Nada de fogão, de eletrodomésticos. Como se fosse um ritual.
- Legal, né?
- Você gostou, Zé?
- Nunca ganhei uma leitoa antes. Primeira vez.
- Nem eu.
- Tou adorando. Nossa primeira leitoinha, lú. Olha que legal. Vamos fazer em breve. Quantas pessoas será que dá pra chamar? Preciso procurar umas receitas...
Ele fez uma cara animada e saiu falando sozinho pela casa. Bom. Lá vamos nós fazer logo logo uma leitoa assada aqui em casa.
Quem tiver alguma dica para o meu primeiro ritual de iniciação à leitoa assada, agradeço.
(E obrigada, M.!)

sábado, 28 de maio de 2005

Sérgio, que é isso?


Minha filha Luciana ia nascer. Eu estava na maternidade, em trabalho de parto. Sentia aquelas dores que vão e vem, suspirava aquela sensação de pânico e paz, e não tirava os olhos daquela barriga gigantesca. Olha, uma barriga de grávida de nove meses, vista da cabeça da mãe, é dez vezes mais impressionante do que a mesma barriga vista de fora do corpo, acreditem. É uma visão inesquecível. Eu devia ter fotografado.
Bom, no meio das dores tive uma contração esquisita. A minha barriga se apertou, apertou, apertou, e, o que antes era uma enorme protuberância para frente, virou uma enorme saliência redonda para o lado. Vixe. Levei um susto. Pra onde ia aquele bebê? Assustada, chamei a obstetriz. Ela examinou, fez um toque e declarou: o bebê não está mais encaixado.
Isso queria dizer: cesárea.
Suspirei.
Nesse instante, a porta se abriu e surgiu uma enfermeira para fazer uma “raspagem”. Eu expliquei.
- Moça, pra quê raspar? Vai ser cesárea.
- Precisa raspar, seja para qualquer parto.
- Mas vai ser cesárea, a moça acabou de falar. Olha, vamos fazer uma coisa. Não me raspe inteira, por favor.
Eu já tinha passado por isso no nascimento do meu primeiro filho. Elas usam gilete, depois é horrível, aquele monte de pelos nascendo, dá aflição, coceira.
A mulher entendeu.
- Quer que tire só os de cima, senhora?
- É. Só os do lugar da cesárea. Pode ser?
Ela achou estranho, balançou a cabeça. Eu tinha certeza que queria aquilo?
- Tenho – respondi, decidida, com minha gigantesca e contraída barriga lateral – Tira só no lugar do corte. O resto deixa como está.
Ela me raspou e eu fui para a sala de parto. Bom, quando estamos bem grávidas, não enxergamos nada daquele pedaço do corpo, pois a barriga tapa tudo. Imagina se eu ia pensar em estética naquela hora crítica e com aquela barriga torta daquele jeito. Não vi e não imaginei como estava. Cheguei na sala e tomei a anestesia, mas o meu médico ainda não tinha chegado. Estavam somente os dois assistentes. Eu estava meio zonza, confusa e emocionada.
Olhei para a cara dos dois rapazes. Uau. Eram dois mocinhos muito bonitões. Que sorte a minha, pensei. Fechei meus olhos e deixei eles me arrumarem na maca, enquanto pensava comigo. “Nossa, fui cair logo na mão destes dois galãs”.
Foi quando comecei a ouvir de longe a conversa.
Voz nº 1 - Falaí, Sérgio. Mais uma cesárea hoje?
Voz nº 2 - Cadê o doutor?
Voz nº 1 - Tá vindo. Vamos preparar.
Voz nº 2 - ...
Voz nº 1 – (voz assustada) Sérgio, que é isso?
Voz nº 2 – (cochichando) Nossa...
Voz nº 1 - (cochichando também) O que fizeram com ela?
Voz nº 2 - Sei lá.
Voz nº 1 - Raspagem esquisita!
Voz nº 2 - (risadinhas) Um horror! Parece...
Voz nº 1 - (mais risadinhas) O quê?
Voz nº 2 – (segurando a risada) Sei lá! Parece um corte moicano, não? Meio punk, olha daqui desse lado, Sérgio!
E os dois, tentando segurar o riso, não agüentaram e caíram na risada, o Sérgio e o outro. Que vergonha. Passar por uma dessas com os dois médicos mais bonitões do hospital era demais. Nem abri os olhos, fingi que estava morta. Não era hora de explicar nada.
Mas foi por pouco tempo. Dali a pouco esqueci completamente do corte moicano (realmente horrível, percebi no dia seguinte) da minha virilha, pois me colocaram nos braços uma menina linda e sem nenhum pêlo pelo corpo, só uma deliciosa penugem macia e brilhante.
E os dois médicos lindos-de-morrer? Nunca mais vi nem quero ver, que pesadelo. E eu devo ter virado a piada do dia do hospital...

sexta-feira, 27 de maio de 2005

a touca


Hoje, como é aniversário do meu querido filho Chico, vou escrever sobre futebol!
Anteontem assisti um jogo de futebol na TV. Coisa rara, raríssima, eu não gosto muito de futebol, nem time eu tenho até hoje.
Era um jogo do Palmeiras contra o São Paulo, um jogo importante, bacana. O João me chamou para ver com ele.
- Só que você vai torcer pro Palmeiras, viu mãe?
- Torço, prometo.
Estranhei. Nunca ninguém me convida para ver nada aqui em casa. O Chico inventou que eu dou azar e até me tira da sala nos jogos do Santos.
Topei. O jogo começou, e eu tentei ficar o mais quieta possível para não dar nenhum fora.
É muito maluco ver um jogo de futebol. Claro que você sabe quem é de qual time, pois os jogadores tem camisas de cores diferentes. Mas como o locutor consegue saber quem é quem? Não é possível, ele deve errar a metade do que ele fala. Eu não consigo nem acertar o nome dos filhos na hora do jantar, imagina você falar sem parar uma hora e meia os nomes de pessoas iguaizinhas, com a mesma roupa e ainda por cima correndo em círculos?
No meio de todos aqueles jogadores idênticos, notei um diferente. Era um jogador do Palmeiras, baixinho, que tinha uma cabeça grandona com um cabelo meio black power.
Aquele era fácil de saber quem era. Só dava a cabeleira dele em campo, correndo daqui pra lá.
- Olha João, aquele ali. Se todo jogador tivesse um cabelo diferente ia ser mais fácil da gente entender o jogo – comentei – Um com cabelo longo, outro de rabo, outro com um coque...
- Shiu, mãe. Pára de falar.
- Ou com cores diferentes. Cada um com uma cor no cabelo. Um amarelo, outro ruivo, outro mesclado.
- Shiiiu!
Foi quando eu tive a idéia.
Toucas!
Sim, gente, os jogadores de futebol deveriam usar toucas. Imaginem todos com toucas de tecido, tipo aquelas toucas de banho, que não incomodam porque são largas, com um número em cima, bem grande. Afinal de contas, a gente só vê o jogo de cima mesmo, até as propagandas são feitas para olhar de cima. Imagine cada um dos rapazes com uma touquinha da cor do time com um numerão, que maravilha? Ora, se os nadadores usam, porque os jogadores de futebol não podem usar?
Tive a maior vontade de contar essa idéia sensacional para os meninos. Mas fiquei calada. Ichi. O Palmeiras tinha acabado de perder. E... be, o João me olhou feio.
- É, mãe... Da próxima vez eu vou ver o jogo sozinho. Você me desculpa, mas o Chico tem toda razão. Você dá o maior azar.

quinta-feira, 26 de maio de 2005

aúúúúúúúúúúúúúúúúúú


shiuuu, Belinha.

A minha cadela, a Bela, tá no cio. Ô fêmea escandalosa. Juro, tenho a maior vergonha. Ainda bem que ela é cachorra, se fosse gente o vexame era absurdamente maior. Com cachorros temos mais tolerância no convívio civilizatório. Mas mesmo assim acho que todos os vizinhos acordam por causa dos uivos. É cada aúúú que não acaba mais. Essa carência sexual de uma animal que é nosso é muito embaraçoso. Morro de medo de encontrar um vizinho pela manhã, é como se eu mesma tivesse gemido a noite toda.
Depois de uivar a noite toda, hoje de manhã ela deu uma cochiladinha. Mas logo depois recomeçou.
- Auuu. Auuuuuuu. Auuuuuuuuuuuuuuuuu.
Gente, é de tapar os ouvidos o sofrimento da cadela. Nossa, se nós, mulheres humanas fôssemos assim, acho que nenhum homem aguentaria. O que, para algumas, seria muito bom.
O João e a Luciana estavam do meu lado na hora do café da manhã.
- Qué isso, mãe? É a Bela? – perguntou a Nana.
- É, filha. Ela tá no cio.
- Nossa, que voz que ela tem! – riu o Joãozinho, imitando – Aúúúúú... auúúúúúúúú...
- Quieta, Bela! – eu ordenei, berrando e olhando pela janela da copa.
- Auuu. Auuuuuuu. Auuuuuuuuuuuuuuuuu...
- Nossa. Impressionante, mãe – falou o João.
- Auuu. Auuuuuuuuu. Auuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu...
No terceiro uivo o menino se levantou da cadeira, irritado.
– Ô mãe. Peraí, pô. Tem certeza que isso é cio? A Bela tá no cio ou tá bêbada?

quarta-feira, 25 de maio de 2005

a mulher da panela



Sabe aquele "homem do piano"? Aquele que surgiu do nada, todo amarrotado e sujo, que não fala uma palavra e que descobriram que toca piano sem parar?
Ando com a maior raiva dessa história do "homem do piano". Fica todo mundo falando desse homem como se ele fosse o máximo dos máximos. Ele nem toca piano assim tão bem. Li que ele toca alguns clássicos, Beatles e músicas populares, mas que é um pianista normal e não um gênio da música. Pra que tanto escândalo da mídia?
O que ele fez de mais para ficar tão famoso?
Nada. Aliás, fez de menos. Não falou uma palavra desde o dia que apareceu até hoje. Ora, é muito fácil ficar famoso assim.
- Hã? Esse pianista ficou famoso porque não falou nada? – perguntou a Maria, minha empregada, enquanto fazia o almoço - Ah, se for assim, lúcia, eu também posso ficar famosa um dia.
- Pode sim, Maria.
Eu tive vontade de rir. A Maria adora participar de concursos, gincanas e rifas. E, claro, adoraria participar do Big Brother, No Limite e ficar famosa.
- Vamos fazer assim, Maria: eu te levo bem longe daqui e você fica em total silêncio. Não fala nada com ninguém, fica assim... bem muda. Rasga suas roupas e faz uma cara de lelé da cuca. Ai a polícia te acha e você pede um lápis.
- Como eu peço o lápis se eu estou muda?
- Você faz gestos – e eu imitei o gesto de escrever – Daí você pega o lápis e desenha uma panela. Você sabe desenhar uma panela? Se você não souber eu ensino, é fácil.
- Não sei desenhar nada, nem um bonequinho.
- Não importa. Bom, daí eles vão ver a panela e vão te levar para uma cozinha. Você chega lá e começa a cozinhar sem parar, umas comidas ótimas, todas as comidas mais maravilhosas que você sabe fazer. Os croquetes de carne, os risolis, aquele galetinho assado igual ao da semana passada, aquela feijoada, o lombo que você faz no sábado, aquele filé com molho, a tortas de frango, o bobó de camarão, as panquecas, os bolos de chocolate, os biscoitinhos, tudo. Não pára mais de cozinhar. Eles trazem os ingredientes e você cozinha sem parar.
Ela morria de rir, toda sonhadora.
- As pessoas todas vão se espantar. “Nossa, quem é essa mulher misteriosa que cozinha tão bem?”. Vão começar a te chamar de “cozinheira misteriosa”. As pessoas passam a provar a sua comida, e, deslumbradas, querem te levar para ser cozinheira dos melhores restaurantes do mundo. A notícia se espalha aqui e ali, os jornais ficam sabendo de você e vem aquele bando de repórter te entrevistar e te fotografar. Você vai ser “a mulher da panela”. “Quem é essa, quem é essa?”, todo mundo vai perguntar. “É a mulher da panela! A mulher da panela!”, as pessoas todas vão responder, eufóricas. A “mulher da panela” vai ser muito mais importante que o “homem do piano”, Maria. Afinal, você é muito mais simpática que ele e as pessoas adoram as suas comidas, você sabe.
- Acha que eu vou pro Fantástico?
- Ah, claro que vai. Mas não vai poder falar nada. A fama tem seu preço.
- Ah, é mesmo... – ela me olhou, triste – Mas não vou poder nem falar meu nome?
- Não. Não pode falar nada. Senão você descobrir que você é uma fraude.
- Não sei se eu agüento.
- Eu não agüentaria, Maria. Imagina. Ficar sem falar pro resto da vida. Impossível.
- É. Melhor ficar como está. Tem meus filhos. Eles iam ficar muito tristes.
Ela balançou a cabeça, e, conformada, se virou para o fogão para acabar o almoço.

terça-feira, 24 de maio de 2005

o turismo de cheiro


essa é franka fazendo turismo de cheiro em aparecida
- Vou estudar, mas também vou fazer muito turismo – declarou o Chico, com uma lista na mão.
- Turismo? – falou o Zé para o nosso filho mais velho, que vai viajar sozinho – Nem fala isso pra tua mãe.
- Fala o quê?
- Hoje pela manhã ela disse que detesta turismo.
- A mamãe detesta turismo? De onde ela tirou isso?
- Sei lá. Ela acordou, leu o jornal e decidiu que detesta turismo. Ficou lá na mesa, tomando chá e inventando uma teoria.
É a mais pura verdade. Eu acordei, li o jornal e resolvi que acho esse negócio de turismo uma... bobajada.
Dá licença, como diria uma grande amiga minha. Dá licença...
Tudo começou quando vi a foto. Era uma imagem de um forte, uma construção antiga e bonita, com uma vista deslumbrante para o mar, com muros grossos e canhões. Tudo aquilo seria o máximo se não fosse um único detalhe: na imagem havia um casal que, sentado nos canhões, tirava fotografia um do outro.
Ah, não.
Não sei se vocês podem entender o que eu senti naquele momento. Pela primeira vez na vida, vi uma coisa que nunca tinha visto. O que aquele casal estava fazendo ali?
Oras, estavam fazendo turismo pelo litoral do Brasil. Mas com aquela a ação eles estavam transformando a realidade em ficção, em imagem, em cenário. O maravilhoso forte não era mais um forte, não era mais legítimo, não servia mais às suas funções e poderia muito bem ser falsificado em qualquer lugar. Aquilo era tudo, menos um forte. Era apenas um dos pontos de parada de uma excursão, onde as pessoas tiram fotos para mostrar aos amigos.
Os locais de turismo são todos assim: lugares que perdem a identidade legítima para virar cenário de fotos. A história, a beleza e os fatos que ocorreram ali são souvenires. Nada é o que é, tudo é produto de consumo. Entender esse poder que tem o turismo me fez detestar o turismo, naquela minha manhã de domingo.
- Calma, lúcia – falou o Zé – ... senão a gente nunca mais pode viajar!
O pior é que a gente sempre viajou para tudo quanto é canto, mas naquele momento “viajar” me pareceu uma coisa extremamente boba e absurda. Acho que é justamente essa a maior diferença entre a civilização do nosso século e a civilização do século passado. O lazer. Meu avô nunca tirou férias na vida. Era médico no interior, e como tinha um trabalho necessário e importante, nem pensava no assunto. E não ficava cansado, estressado ou exausto. Nada que uma noite de sono não resolvesse. Mas nós não. “Precisamos” viajar. “Precisamos” descansar. “Precisamos” fazer turismo. Como se isso nos aliviasse do trabalho. Mais ridículo ainda. Trabalho não cansa. Alimenta.
Turismo?
Ora, acho que o turismo só serve pra uma coisa hoje em dia. Pra cheirar. O resto a gente pode conhecer sem ir ao lugar. É possível ver fotos até de 360 graus de tudo quanto é lugar do mundo, é possível ver filmagens, músicas; é possível até conversar com as pessoas de outros lugares sem sair de casa.
A única coisa que (ainda) não dá para saber é como é o cheiro do lugar. Se alguém me falasse que vai viajar para sentir o cheiro do lugar, ai eu não me importaria. Se é para sentir cheiro pode ir.
Assim, a partir de hoje, só concordo com isso: com o turismo de cheiro.
Ouviu, Chico? Vai estudar.
E, se sobrar tempo, pode sentir o cheiro de Paris...

segunda-feira, 23 de maio de 2005

... boiando nos títulos


... boiando nos títulos
Minha mãe foi ao teatro no sábado. Ela sempre vai com uma turma de amigas, umas senhoras que vão todas juntas, de van. Adoraria ir com elas, meu sonho é ir ao teatro toda semana e nunca vou.
- Ô mãe, como foi a peça?
- Ah, a peça... – ela estava tricotando, distraída - Era com o Nanini. Sabe o Nanini?
- Aquela peça do fígado e do estômago? Você gostou?
- Gostei. Mas que peça esquisiiita, filha...
- Esquisita porquê?
- Não sei, alguma coisa errada tinha. Ou era comigo ou era com a peça. De repente, sem mais nem menos, algumas pessoas morriam de rir. Gargalhavam. Mas não tinha graça nenhuma.
- Não era por causa de alguma piada?
- Se era piada eu não entendi.
- E suas amigas?
- Também não riram de nada. Vai ver que nós somos muito velhas para as piadas da peça. Só pode ser isso.
Ficamos em silêncio, eu e ela.
- Lúcia.
- Oi.
- Você sabe, minha filha, que eu vou ao teatro toda semana.
- Sei.
- E entendo todas as peças.
- Sim.
- E eu rio muito das piadas das outras peças. Morro de rir. Você sabe como eu sou.
- Eu sei, mãe.
- Mas nessa peça eu não achei graça de nada. Nadinha. Uma peça estranha demais.
- Você falou.
- Sabe o que eu acho? Que essa peça é uma porcaria. Se fosse boa eu entenderia, ria, me divertiria. Mas eu não entendi a que veio e não ri nada. Uma droga de peça. Olha ali – ela me apontou o catálogo da peça que estava na mesa de centro – Pega ali o papel e leia a resenha. Leia, filha, vamos! Nem a resenha a gente entende! - e ela retomou o tricô, decidida - Ah, vá, essa peça que é horrível, ora.
- Tem razão, mãe. Tem toda a razão.
Eu adoro essa sabedoria simples da minha mãe. Também desconfio de tudo que não entendo. Penso igualzinho a ela: ora, se sou formada, articulada e inserida no mundo, porque não entenderia uma peça de teatro? Se fosse um livro de alguma especialidade científica, vá lá, mas uma peça? Alguma coisa deve existir por trás de uma peça inentendível. Ou um diretor que quer se exibir, ou um texto mal escrito ou a necessidade de citar nomes e fatos para criar uma falsa aparência ao espetáculo.
Coisa boa não é.
Não sei se a peça do Nanini é boa ou ruim, eu não vi. E não é essa a intenção desse texto, falar mal da peça. Mas eu queria falar sobre essa coisa de não entender as coisas.
Ontem eu estava lendo o blog do Idelber e ele falava exatamente isso. Que ele tinha a maior implicância com o caderno Mais! da Folha de São Paulo, que ele chama de "bolorento" (adorei esse termo, Idelber!), e que a maioria das pessoas não entendia nada daquelas matérias. Eu também implico com o Suplemento de Cultura do Estadão e com toda a Revista Bravo!. Olha, sério, tem matéria que eu bóio no título! Pode uma pessoa boiar no título? É o mesmo que não saber o que está escrito numa porta. Você vai entrar num lugar onde você não entende o que está escrito na porta? Depois eu começo a tropeçar nas citações. Que saco. Tem texto que tem mais citação que matéria. Se é para ler nomes, melhor ler uma lista telefônica duma vez.
Tá, tá, existe uma tal escrita acadêmica, toda emproada, que mostra que você é estudado e inteligente. Tem gente que acha isso lindo. Eu acho a maior bobagem reproduzir esse tipo de texto fora da universidade. Aqui fora o que rege são as idéias, e o importante é alcançar o maior número de pessoas.
Eu gosto de textos claros, simples e inteligentes. Quem sabe o que quer escrever, falar ou dizer não precisa complicar nada. Escreve, fala ou diz.
E desconfio de tudo que eu não entendo.
Até dos títulos.

domingo, 22 de maio de 2005

as paredes


Foi na sexta feira. Ia para uma reunião, quando, perto da Faria Lima, parei o carro num farol. Olhei para o lado, estava diante de um vazio de uma casa que acabara de ser demolida. O que antes era uma residência com quartos, garagem, quintal e jardim transformou-se num espaço mínimo, apertado entre três muros, com as cicatrizes de todos os ambientes estampadas no piso e nos restos de parede. A tinta velha dos quartos, as marcas dos quadros nas paredes, a cerâmica do piso da garagem, os azulejos do banheiro da empregada lá no fundo, na edícula. Aquilo me deu um arrepio. Me senti uma invasora dentro da memória intima de um espaço que não era meu. Aquelas marcas não eram minhas.
Não tenho o direito de olhar, pensei. Espaços não podem ser violentados desse modo.
Porque não escondem isso?
Acho que não tem nada mais triste do que uma demolição. O abandono de um lugar que outrora fora habitado é mais violento que a morte. Na morte o corpo permanece cheio. Nas demolições presenciamos o vazio, o abandono total.
Além disso, demolições expõem publicamente a intimidade do passado, a memória de uma família. Demolições envergonham e entristecem. São espaços nus em público, gelados e trêmulos diante dos transeuntes que passeiam nas calçadas. Uma demolição, no meio da vivacidade de uma cidade, encolhe os espaços que anteriormente eram gigantescos. Olhar atentamente a uma demolição nos dá a exata dimensão da nossa pequeneza.
O Zé não gosta de mudanças. Toda vez que mudamos de casa ele organiza tudo, mas me pede para ficar na casa antiga enquanto a mudança é retirada. Ele fica na nova, recebendo as coisas.
Eu sempre fico no meio das caixas e móveis, isso não me incomoda. Acho que é porque ainda restam as paredes, e eu sei que ninguém as tirará dali. E também sei que, mesmo depois da mudança, mesmo com a casa vazia e oca, posso fechar as portas e me trancar, quietinha.
Mas não suportaria a ausência de paredes. Acho que preciso de um muro. Talvez para me esconder.
Anos atrás, morávamos num apartamento em Higienópolis. Prédio velho, antigo. Resolvemos trocar todas as janelas da sala, que estavam podres de tanta ferrugem. Compramos uma nova, de alumínio pintado de branco.
É um trabalho de um único dia, é rapidinho”, explicaram os rapazes da empresa.
Chegaram pela manhã e desmontaram toda a janela. Depois do almoço içariam a janela nova e colocariam no lugar.
Olha, eu sou acostumadíssima com obras. Vivo dentro delas o dia todo. Porém, quando entrei na sala da minha casa, engasguei. Aquela não era minha casa. A rua estava ali dentro, a copa das árvores também. Me senti numa vitrine, apavorada.
Não consegui ficar ali. Desci e olhei o apartamento da rua. Alguma coisa entalava na minha garganta. Fechei os olhos. Era como estar nua em público. Era indigno. Tudo que era meu estava exposto, cru, machucado. Aquilo dava uma aflição enorme. Fui direto para o trabalho, fugida, e só voltei à noite, com janela já colocada no lugar. Não sei porque aquilo me envergonhou tanto. Acho que eu sou uma boba, todas as casas são iguais a minha, não? O que as pessoas não podiam ver? Meus sofás, minha mesa de jantar, os quadro da parede?
Não sei. Foi violento. Vi minha vida fora subitamente demolida, e provavelmente meu pânico nada tinha a ver com a janela. Talvez eu ainda não saiba conviver com um mundo fora do meu, talvez seja essa a minha natureza, talvez as casas que eu construí para me abrigarem nunca poderão ser demolidas. Não que as cicatrizes me envergonhem. Mas eu preciso de paredes, pilares e vigas firmes para sustentar o meu passado.
Ou não.
Talvez seja somente porque eu ainda estou construindo minha vida.

sábado, 21 de maio de 2005

a colherinha


a colherinha?
Ando impressionada com as mães de hoje. Noto que a cada dia sabemos fazer menos coisas sozinhas. Precisamos de babás, de livros, de pediatras, de regras, de cursos. É como senão tivéssemos mais intuição materna, nem aptidão para sermos mães.
O mundo evolui e as mães desevoluem.
Quando nós nascemos, éramos bebês idênticos aos bebês que nascem hoje, não é? Um bebê não é igual a um carro, que muda de modelo todo ano, que sai de linha, que tem inovações tecnológicas no motor de arranque, essas coisas. Os bebês nunca mudaram o design, o motor, o tipo do capô. Sei que existem inovações na medicina que conseguem gerar bebês a partir de laboratório, mas os bebês que nascem hoje são iguaizinhos aos de antigamente. Sei também que a medicina de hoje promove melhorias consideráveis no nosso rendimento, mas o motor de um bebê zero é exatamente o mesmo de antes. E se antigamente as mães cuidavam dos seus filhos sozinhas, por que nós precisamos de tanto manual de instrução?
Eu acho que entendo. Um bebê é simples demais, e não é possível alguma coisa ser tão simples e não precisar de mais nada além de... você. Não nasce junto com ele um papel e um CD explicando como utilizar, como acontece com o computador, com o carro, com o celular. Achamos que nossos instintos não valem, e precisamos seguir um monte de regras: não interessa se seu peito está se esborrachando de leite, está escrito que você tem que dar de mamar de três em três horas. Não interessa se você morre de vontade de ficar acordada com ele até tarde da noite, não pode. E colo, então? Nem pensar.
E geralmente nas coisas mais simples você parece uma barata tonta inútil. A pediatra dos meus filhos me contou uma história engraçada, que pode exemplificar como somos bobonas. Me identifiquei totalmente com essa mãe. Eu era exatamente assim.
Buuuuuuuuurra...
Ela conta que a mãe ligou no meio da noite. O bebezinho estava com febre e moça chorava, em pânico.
- Calma, fulana – ela disse, tranqüila - Olha, faça o seguinte: dê um banho e depois cinco gotas de um remédio anti térmico. Entendeu?
A mãe, desesperada, achou aquilo muito complicado.
- Ai, doutora. Calma! Como que é? Cinco gotas?
- É. Cinco.
- Cinco, cinco, cinco... não posso esquecer. Mas como é que eu dou ?
- Ué, sei lá, com um conta gotas, com uma colherinha, com uma mamadeira...
- Como? Fala mais devagar, vou me confundir. Pode ser com uma colherinha? Ai que alívio. De que tamanho essa colherinha?
- Hã? De um tamanho que caiba na boca dele, óbvio.
- Espera, calma. Assim, uma... colher de chá?
- É!
- Mas... da gaveta?
- Que gaveta?
- Eu digo, assim, das minhas colheres de chá? Das que eu... uso? Que estão aqui na gaveta da cozinha?
- É, claro!
- Esperaí. Calma, por favor doutora, vai devagar. E... tem que ferver? Esterilizar?
- O quê?
- A colher?
- Olha, fulana, pega uma colher limpinha. Só isso. Se estiver muito suja, ferva. E dá o remédio que ele vai melhorar.
- Espera, não desliga, doutora. E... por onde que eu dou?
- Como, “por onde”?
- É... para dar pela boca?
- Sim! Pela boca, claro!
- E se não entrar? E se ele cuspir?
- Você pega e dá de novo. Senão, se ele vomitar, tem que colocar um supositório de...
- Não! AhmeuDeus, nem pensar! Espera. Quantas gotas eram mesmo?
- Cinco.
- Do que mesmo?
- Do remédio!
- E... como mesmo que dava? Explica, só mais uma vez, doutora. Mas devagar. PeloamordeDeus.
Vixe. Acho que não merecemos mais ser mães.
E, caramba, vendo isso eu entendo: eu era igualzinha à ela!

sexta-feira, 20 de maio de 2005

a árvore




O táxi chegou cinco e meia da manhã para me pegar. Era uma taxista mulher.
- Bom dia. Congonhas, por favor.
- Bom dia - a mulher olhou para trás - MinhanossaSenhora, o que aconteceu com a árvore da frente da sua casa?
Era cedo demais para conversar, pensei, cansada.
- Um caminhão – contei, bocejando– Um caminhão passou e levou a metade da árvore, há uns meses. Foi uma tristeza. Tivemos que podá-la e passar remédio. A arvore até ficou uns dias de muleta – expliquei – Colocamos um toco de madeira de um dos lados, até termos certeza que ela não ia cair. Pensamos até em retirar a árvore daí, mas não tive coragem. Imagina, matar minha árvore. Ela é como um filho – expliquei para a taxista – Ela perdeu um pedaço, mas ainda é a minha árvore.
A mulher ficou em silêncio um tempão.
- A senhora sabe que me dá até vontade de chorar de ver uma coisa dessas? Eu gosto muito de árvores. Acho um absurdo o modo que a prefeitura cuida das árvores da cidade.
Percebi que a minha taxista tinha uma teoria. Me entusiamei, apesar do sono.
- Cuida? – respondi, balançando a cabeça – A prefeitura da cidade de São Paulo não cuida de árvore nenhuma!
- Isso mesmo! – a mulher se animou toda – Tem toda razão! Sabe, minha senhora, as pessoas só pensam no verde. Verde, verde, verde. Tendo verde na cidade parece que está tudo ótimo. Mas uma árvore não é só o verde! Isso foi uma propaganda muito errada que se disseminou por aí. Uma arvore é um todo: uma copa bonita, um tronco, belas folhas, um bom caimento. Uma árvore é um conjunto. E é isso que deveria ser preservado. O conjunto da árvore.
Ela suspirou, satisfeita. Continuou. Olha que taxista legal, essa.
- As pessoas fazem podas horríveis, elas ficam deformadas, paralíticas, desfiguradas. As nossas árvores são todas entrevadas, olhe! – e ela apontava as árvores da marginal Pinheiros - Eu acho isso a maior vergonha. Um dia peguei uma passageira, uma agrônoma. Ela me disse que essas podas são “podas ginecológicas”. Gostei muito desse termo. Pensa, as árvores abrem as pernas pra tudo: para os fios, pra os caminhões, postes, prédios, túneis. Tudo é mais importante que elas. As nossas árvores, coitadas, são submissas, tem que sobreviver sem membros, sem ar, sem espaço. É muito triste. É como viver numa cidade de aleijados, todos assim por causa da prefeitura e da administração da cidade.
- Cidade de aleijados? – eu olhava ao redor, pasma – Nossa...
- Quando eu vi a árvore da senhora eu tive vontade de chorar, de chorar mesmo. Coitada. Tão bonita e assim, tão machucada... E veja que coisa, ela está tentando sobreviver, apesar de tudo. Aquela cicatriz enorme e as folhinhas nascendo, a senhora viu, não? É de emocionar, a natureza. De emocionar mesmo.
Bom, chegamos no aeroporto.
E foi com essa idéia na cabeça e emocionada com as árvores que eu fui viajar para a Bahia.

quarta-feira, 18 de maio de 2005

os ossos e os mares do ofício


Meninos e meninas, fiquem em paz e sem crônicas nessa quinta (ô tristeza) que lá vou eu a trabalho pra Bahia, mas volto rapidinho. Esbudegada, mas volto amanhã mesmo. E vê como é impossível a linha do mar ficar reta? Fui!

chico, julinha, toíííno!



Saí do limbo.
Explico.
Toda mãe passa por fases terríveis. Tem a fase de não dormir à noite, tem a fase das birras, a fase das amigdalites e otites, tem a fase da adaptação na escola.
E tem a fase da vergonha da mãe.
Essa é a pior de todas, eu acho. Você, de líder absoluta, musa incomparável e deusa do universo passa a ser a mulher mais ridícula do mundo, mais gorda, mais velha e mais sem-graça de todas as mulheres. Se depender do teu filho, tua auto estima despenca lááá embaixo. Não adianta argumentar, ele não vai nem ouvir o que você fala. Para ele, a mãe e uma mala tamanho gigante são a mesma coisa. Aliás, pra quê falar, se você só fala idiotice? E pra quê você tem que ficar atrás dele?
Menos, mãe, menos.
Tudo bem que é uma fase, mas é frustrante. A vergonha vem junto com uma total indiferença, uma transparência que você nunca teve. Além do som do silêncio, a palavra que você mais ouve nessa fase é “toíno”. Isso mesmo. Meninos e meninas de 10 a 15 anos ignoram as mães e falam só “toíno” o tempo todo. Esse estranho verbo, “toinar”, define exatamente tudo nessa fase da adolescência. Significa que eles te ouviram muito bem, mas que, como te desprezam, não vão sair do lugar nem mortos para fazer o que você está pedindo.
- Filho, vem aqui.
- Toíno - a entonação do "toíno" deve ser a mais sem graça possìvel.
- Comprei aqui uma camiseta pra você. Depois você experimenta, tá?
Silêncio.
- Ouviu?
- Toíno, mãe.
- Filho. Está na hora do jantar.
- Toíno.
- Filho, sua avó tá aqui. Vem dar um oi pra ela.
- Toíno.
- Filho.
- Toíííno.
Mas gente, isso acaba. E comigo, pelo menos com o filho mais velho, acabou de acabar. Nesse domingo, tive a prova: fui redescoberta. Saí do limbo. Da obscuridade. Há luz no fim do túnel. Alegria!
O Chico tinha um encontro de jovens na escola. Não é coisa de religião e sim de filosofia, pelo que entendi. Como é obvio, ele não me explica muita coisa. O grupo de alunos passou um final de semana junto, houve palestras, debates, conversas. Quando tudo acabou, na tarde do domingo, ele me ligou.
- Mãe.
- Oi Chico. Ô saudade, meu filho. Três dias sem te ver.
- Vem me buscar? Mas tem que ser você.
- Eu?
- É, mãe, você. É que você está toda famosa aqui.
- Eu? Famosa?
- Sim, mãe. Todo mundo quer te conhecer.
- Eu? Os teus amigos querem me ver?
- Sim. A Júlia, minha amiga que entrou na faculdade de direito, aquela que tem blog e que escreve no teu blog, falou um montão de você ontem. Contou sobre as coisas que você escreve no blog, contou sobre tuas idéias, teus textos, contou que você ficou amiga dela assim, sem mais nem menos. Foi bárbaro. E eu falei um montão de você também. Daí ficou todo mundo querendo conhecer você ao vivo. Mega Deusa, você.
- Eeeeu...?
- Vem você me pegar. E sozinha. E rápido.
- Toíno, filho! Toíííno!
Bom, eu fui. Sério, até me arrumei antes de sair, atrapalhada. Que diabo de roupa a gente coloca para ser mostrada por um filho? Cheguei na escola, o Chico me abraçou. Me senti mínima, emocionada e confusa ao me ver abraçada à aquele meu rapaz já tão adulto, e sendo mostrada como uma preciosidade à uma turma de adolescentes e jovens. Obrigada, Chico. E muito, muito obrigada, Julinha. Acho que tudo tem a ver com esse democrático espaço, onde eu posso falar sobre tudo que me vem à cabeça.
E também tem a ver com o tempo, ah, esse bendito tempo, que passa como se fosse uma ventania, nos dando arrepios de emoção.
Beijos aos dois.

terça-feira, 17 de maio de 2005

as pernas vibratórias



Vou falar de um assunto bem delicado. E olha, gente, tomei o maior cuidado com essa crônica para não entrar em muitos pormenores.
Nos próximos parágrafos estarei praticamente na beira de um abismo entre a literatura digna e séria e a pornografia pura. Mas como é um assunto moderno e contemporâneo, tenho que abordá-lo. Espero que vocês peguem leve nos comentários
É um hábito. Entro no carro, coloco o cinto de segurança. Tiro o celular da bolsa e coloco entre as pernas. Escondo a bolsa.
E vrummm. Lá vou eu.
Outro dia descobri que não sou a única que faz isso. Quase todas minhas amigas carregam o celular no colo ou entre as pernas, principalmente se estão no carro e sozinhas, para não serem roubadas.
Já fui assaltada algumas vezes, tive amigas que tiveram o vidro quebrado e a bolsa arrancada. Uma amiga minha teve o celular puxado da mão enquanto falava. Ficou literalmente falando sozinha. Todo cuidado é pouco.
Assim, há anos que decidi que não há melhor lugar para colocar o celular enquanto você dirige do que entre as pernas. Aquele é um "porta celular" excelente. Se alguém suspeito se aproximar, basta você fechar as pernas. Se o aparelho tocar, você ouve na hora. Se surgir algum perigo, ele está ali, ao seu alcance.
Praticamente dentro de você.
Ichi. Essa foi meio feia. Perdões.
Esse hábito de carregar um celular no meio das pernas é muito esquisito. Primeiro que a gente, mulher, nunca teve nada no meio das pernas. Acostumar-se com “aquilo” ali é bem estranho, confesso. Dirigir de “celular duro” não é bonito nem agradável, mas eu não vejo outra saída. Vê o que gera a violência urbana: uma masculinização das motoristas.
Mas o pior é quando o aparelho toca. Eu não quero entrar em detalhes, mas aquilo é o maior susto. Nas horas que você menos espera, lá vem aquele absurdo turururururururu vindo bem dali. Gente do céu. Que sensação estranha. E o pior é que você acaba dando uma abridinha nas pernas para olhar o visor e saber quem é. “Ah, é o fulano!”. Eu sempre começo a rir, tem algumas pessoas que nem imaginam onde elas estão tocando. E quando você está na marginal, que não pode atender de modo algum? Você dá aquela abridinha básica, olha rapidinho quem é e deixa o coitado lá, naquele lugar tão... íntimo, berrando feito um condenado.
Mais dramático ainda é o caso de alguns celulares, como o meu, que, além de tocar, vibram no primeiro toque. Eu gosto e prefiro que seja assim, sabe bolsa de mulher como é, tem tanta coisa que adquire uma proteção acústica própria. A vibração resolve isso. Eu fico atenta aos tremeliques da minha bolsa, pois já sei que é o telefone. Mas quando estou no trânsito aquele primeiro toque é perigoso. Imagine o pulo que dou, um dia ainda bato o carro por causa desse assanhamento do telefone.
Sério. É uma coisa muito estranha esses hábitos da vida contemporânea.
Achava que era só eu que guardava o celular ali. Mas outro dia descobri que somos muitas, as mulheres das pernas vibratórias. Já achei mais de dez amigas que fazem a mesma coisa. Devemos ser muitas, eu sinto. Todas rindo sozinhas a cada toque.
Meus filhos não gostam. Reclamam.
- É nojento esse seu celular, mãe – eles me falam – Olha onde você leva, que vergonha. Eu não falo nele.
Mas o que eu posso fazer? Onde colocar? Já tentei levar no console, ele escorrega; na caixa do câmbio, ele atrapalha; no porta luvas eu não ouço; no banco do carona, tenho medo que roubem. E lá vai o celular no meio das pernas.
Li no Inagaki que existem 8,5 milhões de celulares no Brasil. Mais celulares que carros. Suponho que deva existir um número gigantesco de mulheres com celulares entre as pernas nos carros. Será que somos muitas? E será que as fotocélulas dos celulares darão, no futuro, alguma interferência nos nossos órgãos internos? Será que isso vale uma pesquisa científica?
A moda pega. Semana passada eu me vi assistindo tv na sala.
Com o controle remoto... no meio das pernas.

segunda-feira, 16 de maio de 2005

os potes da salvação



Minha irmã tem um filho pequeno. Eu estava na casa dela, visitando. O meu sobrinho zanzava daqui para ali. Sabe como é casa com criança pequena: um campo minado de brinquedos espalhados pela sala.
Minha irmã falava comigo, agachava, levantava e catava coisas. Foi quando ela pegou um balde de lego, daqueles grandes. Olhou lá dentro e deu um berro:
- Ah, não!
- O que foi? Uma barata?
- Olha só aqui dentro!
Ela me mostrou o interior do balde. Olhei. Estava, claro, cheio de lego. Mas, no meio das peças coloridas existiam alguns animais de plástico, uns carrinhos e uns brinquedinhos de kinder- ovo, feito salada mista, misturados com o lego. Ela olhava aquilo, furiosa.
- Que ódio!
- Ódio do lego?
- Não. De gente que mistura as coisas. Essa empregada guarda tudo quanto é brinquedo em qualquer pote que ela vê pela frente. Eu falo para ela, tem um pote para cada coisa nessa casa. Mas ela nunca arruma certo!
E ela despejou o pote no chão e foi selecionando as peças para cá e para lá, balançando a cabeça e reorganizando, irritada.
Olha, parece um fato mínimo, não é? Ma só parece. Por detrás de um pote de brinquedos existe um enorme universo e uma mãe organizadíssima. E podemos, a partir desta pequena observação da minha irmã, ir muito mais longe e estudar como funcionam as mães.
Não sei se dá para compreender. Trabalhar a gente trabalha, mesmo com filho pequeno, mas é sempre tudo um pouco esculhambado, pois a tua capacidade de concentração é mínima. A nossa casa, que antes era arrumadinha, tem cheiro de leite e vômito, manchas no carpete, mão na parede, brinquedo em tudo quanto é canto. Empregada e babá conversando o dia inteiro, você tendo que tomar um monte de providência, sempre atrás da sua própria existência. Tudo fica mais ou menos para você: você é mais ou menos boa dona de casa. Mais ou menos boa mãe. Mais ou menos boa profissional. Mais ou menos boa patroa. Mais ou menos tudo. E, pensa. Nada depende só de você. Nessa época da tua vida você não tem como colocar nada em ordem.
Não? Tem sim.
Eles.
Os brinquedos.
Háhá. É a nossa vingança contra a bagunça.
Hoje em dia toda criança tem muito brinquedo. E um monte de brinquedos são “educativos”, ou seja, peças de montar, milhões delas. Depois de um tempo você não tem mais onde guardar. Assim, você descobre um lugar onde vendem uns potes bárbaros, coloridos e grandes. Olha, nessa época a vida da gente é tão bagunçada, que pensar que ao menos os brinquedos do teu filho estarão selecionados e catalogados dá um alívio tremendo.
O problema é que aquilo vira uma obsessão. Você tem vontade de colocar em ordem a tua vida e transfere todas suas ansiedades para as peças coloridas. Eu, na minha época de poteira, me sentava toda noite diante daquele mar de brinquedos.
Feliz da vida.
Bom. Lego era lego. Eu usava dois potes, um para cada tamanho. Carrinhos e caminhões eu colocava em mais outro. Bonecas iam para um outro, super heróis em mais um outro. Continuando, os animais de plástico iam para outro departamento. E os insetos? Podem ser considerados animais? E os animais de fazenda? E os da selva? E os dinossauros? Os dinossauros ganhavam um pote só deles, afinal, são animais extintos. Já os bonecos Disney mereciam um pote especial. Não dá para colocar um cara tão importante como o Mickey misturado com outros ratos, que nem nome tem.
No fim da noite, com os joelhos ralados de tanto engatinhar e completamente vesga, sobravam umas coisas que não eram catalogáveis em nenhum dos potes. Então eu montava um pote só com as sobras. Olha, quando eu tapava aquele último e colocava na prateleira, olhava ao redor e suspirava aliviada.
Que organização que estava a minha vida!
Claro que a gente não bate bem. Quem tem filho perde um pouco dos miolos, sem dúvida alguma. Mas às vezes potes bem organizados são a única saída para a satisfação duma mãe. Potes organizados merecem todo o respeito. Aquilo é terapia, é alegria, é a salvação. Nunca, nunca menospreze um pote de brinquedos.
Agora, voltemos para a história da minha irmã, que achou animais e carrinhos dentro do pote de lego: não é o fim da picada?
Saibam de uma coisa: nessa época da tua vida a casa pode cair, o chão pode afundar, mas lego não é carrinho, super herói não é animal selvagem e o que não é nada vai para o lixão. Só isso que importa.
E quem disse mesmo que os dinossauros estão extintos?

domingo, 15 de maio de 2005

os dois "tins"


franka, sílvia b. e o brinde

Na semana passada, minha amiga Silvia B. fez um encontro no atelier dela para mostrar os desenhos e pinturas para os amigos. Como estava tudo ótimo naquela noite, propus que eu e ela fizéssemos diversos brindes para selar, sei lá, a nossa amizade, a felicidade, os desenhos dela, qualquer coisa boa. E com nossos copos cheios, desenhamos um monte de tipos de brindes.
No brinde de costas parecemos uma escultura humana de um vaso, não acham? Essa é uma maravilha de brinde, mas que só pode ser feito com as pessoas ainda sóbrias. Para arrematar, a Silvia B. ainda fez essa montagem com as fotos, que adorei. Uma ode aos brindes. Um brinde ao brinde.
Tim, tim, tim, tim, tim, Sílvia!

Brindes me lembram minha irmã Ângela. Outro dia ela me contou que, quando éramos crianças, ela adorava a idéia de brindar, mas que sempre ficava frustradérrima com aquilo.
- Frustrada? – estranhei.
- Muito frustrada, lúcia – ela explicou - Eu achava que ninguém brindava direito comigo. Como na hora do brinde as pessoas falam “tim-tim”, eu achava que a gente deveria fazer “tim" e "tim” no copo da outra pessoa, entende? Achava que o certo era bater duas vezes no copo do outro. "Tim", uma vez e depois "tim", de novo. Bom. Eu batia a primeira vez, e quando ia bater a segunda, a pessoa não estava mais ali. Ninguém nunca me explicou que o "tim-tim" era apenas um "tim". Por isso essa coisa de brinde, para mim, sempre foi frustrante. Eu sempre acho que tem um "tim" a menos.
Póde? E sempre que eu brindo com a minha irmã, eu faço dois tins. Ao menos comigo ela não vai se frustrar.
Hoje em dia o ritual de brindes dos meus conhecidos está cada vez mais confuso. Tudo começou quando o PVP, um amigo meu, inventou que para brindar de verdade era preciso olhar nos olhos da pessoa. Isso virou mania, chegamos às vezes a brindar umas cinco, seis, vezes porque alguém não olhou direto. Depois alguém inventou que não bastava olhar nos olhos – na hora agá, na horinha do “tim”, tínhamos que sorrir e manter os dois pés no chão. E agora alguém inventou também que temos que brindar todos com a mesma mão, direita ou esquerda, para não quebrar uma corrente da sorte. Gastamos assim um tempão nas idas e vindas dos copos.
E toda vez eu penso na minha irmã – é tanta complicação para brindar, imagine se além disso tivéssemos que fazer dois tins?

sábado, 14 de maio de 2005

o general





Tudo começou com um simples alô.
- Alô.
- Quem fala? – perguntou rapidamente uma voz de homem ao telefone.
Levei um susto, era domingo à tarde, eu estava descansando.
- Vamos. Quem é que está falando aí? – insistiu a voz, ligeiramente agressiva.
- É... é a lúcia... – respondi, meio hesitante – E... quem fala aí?
- Como assim, “lúcia”? Que “lúcia”? – a voz me interrompeu, brava.
O que será que eu tinha feito de errado?
- Sou eu, a lu- lu -lúcia – eu gaguejei, confusa – Escuta, quem é que está falando aí?
- Eu que pergunto! – falou a voz, irritada – Escutaqui moça, foi você que me ligou agora há pouco?
- Eu te liguei?
- Ligou. Faz uns 5 minutos. O que você quer comigo? - insistiu o homem.
- Mas quem é você?
- Diga antes quem é você e o que você quer.
Lembrei. Há cinco minutos atrás eu tinha telefonado para o celular da minha irmã. Devo ter discado algum número errado. Era isso.
- Olha meu senhor, acho que eu liguei para o senhor sim, mas devo ter discado algum número errado. Foi engano.
O homem me interrompeu, estúpido.
- Como assim “engano”? Tem certeza que foi engano? O meu celular tocou, eu olhei o número e vi que ligaram daí. Queria saber o porquê – ele ordenou, quase berrando.
Estremeci. Acho que eu liguei sem querer para algum general do exército. Nossa. Como celular é perigoso.
Respondi, cautelosa.
- Mas como eu vou saber alguma coisa se eu não sei quem é que está falando? - Respirei fundo e tomei coragem - Meu senhor. Como é o seu nome?
- Meu nome? Você quer saber meu nome porquê, hein? – insistiu o general – Eu que pergunto! Qual o seu nome completo?
- Olha, meu senhor – comecei a perder a paciência – Quer saber duma coisa? Foi engano mêêêsmo. Eu jamais ligaria para uma pessoa tão esquisita como o senhor.
E pimba, desliguei.
Detesto essa idéia de ser detectada em tudo quanto é lugar. Depois que começou essa moda, a gente não pode nem ligar errado pros outros que logo em seguida vem uma ligação de alguém perguntando porquê que a gente ligou, fazendo o maior inventário, querendo saber quem é a gente e o caramba a quatro. Discar um telefone hoje em dia é um perigo. Saudade do tempo do trote, que hoje em dia não existe mais.
- E se você disca, sem querer, para uma casa onde alguém foi seqüestrado? – imaginou um amigo – Você pode até ir preso! Eu tomo o maior cuidado na hora de discar, para não errar. O melhor – ele me explicou – é guardar os números na memória do telefone, para não haver erro nunca.
Que maluquice. Mas é melhor a gente se acostumar com essas espionagens, pois atualmente somos detectados em todos os lugares, e pior, com câmeras. Sorria, você está sendo filmada. No banco, no mercado, no shopping e nas lojas, sempre tem alguém te vendo, escondido numa salinha.
Pelo sim, pelo não, eu sempre sorrio. Filmagem é sempre chique, ainda mais para de uma moça de família do interior, como eu.
Daqui a pouco existirá a mesma coisa para sites e tudo o mais que existe na internet, e será impossível você pesquisar, fuxicar e se divertir anonimamente. Internet está ficando cada dia mais igual a vida real - não demora muito para a página da gente ter imagem real, via webcam, conectada direto, com voz e tudo. E bina, claro.
Eu adoro ir aumentando uma idéia para ver onde vai dar. Nesse caso ainda não sei, não consigo imaginar as conseqüências do fim da clandestinidade total. Depois ainda inventaram esse celular com GPS. Já pensou? Vamos saber quem ligou e onde está a pessoa!
Mas por enquanto eu apenas sigo o conselho do meu amigo. Gravei todos os números que podia na memória do telefone, e os outros eu disco bem devagar, pra não errar nenhum número.
Eu, hein?
Dá que eu caio de novo no colo daquele General...

sexta-feira, 13 de maio de 2005

o colarzinho



- Lucia, você precisa um dia escrever sobre esse nosso esquecimento – disse uma amiga minha, mãe e profissional – eu ando me esquecendo de tudo, que horror! Alzheimer puro, nunca vi! E nem sou velha!
Eu já notei, isso acontece comigo também. Principalmente com nomes de pessoas. Acho que a gente tem informação demais na cabeça.
Bom, tocou a campainha. Era a mãe de um amiguinho do meu filho que veio buscar o menino.
O garoto está sempre aqui em casa, mas o nome da mãe eu não lembrei de jeito nenhum. Fiquei olhando para a cara dela, matutando, puxando uma lembrança. Essa daí é a... é a... a...
Marina? Débora? Silvana? Beatriz? Nina?
Ichi. "Alzheimer, Lúcia", pensei.
Se fosse só uma vez ou outra, vá lá. Mas isso tem acontecido a toda hora, em todos os lugares e com todas as mães dos amigos dos meus filhos. E como crianças crescem e tem mais amigos, a cada dia aumenta a quantidade de mães... sem nome.
Depois que você conhece uma pessoa há algum tempo, depois que já perguntou o nome dela umas três ou quatro vezes, acho feio perguntar de novo. E o pior é quando elas, as mães sem nome, nunca esquecem do “teu” nome.
Devíamos estipular um nome especial para chamar as mães de amigos dos filhos. Por exemplo, as “tias” da nossa família. É ótimo esse termo, “tia”. Tudo quanto é tia ou parenta que você encontra e não sabe o nome, você chama de “tia”.
- Tia! Quanto tempo!
Não é maravilhoso? Resolvido qualquer constrangimento. Mas com as mães dos amigos dos filhos, danou-se. O truque é evitar de colocar sujeito nas frases, ou balbuciar um ininteligível “vãrh”, quando você precisar se referir à pessoa.
Outro dia estava no clube quando apareceu uma mãe toda animada. Abanava as mãos, sorria e me olhava.
Seria comigo?
Era.
Eu não via aquela mãe há quatro anos, e jamais me recordaria do nome dela. Dei um tchauzinho de longe, mas ela chegou ao meu lado.
- Oi Lúcia! A Nani está boa? E o Chico, o Juca?
Se ela reparasse, perceberia a minha cara-de-tacho. Além dela se lembrar do meu nome, ela ainda sabia os nomes dos meus filhos, um por um! Conversamos, eu repetindo baixinho o meu tradicional “vãrh”.
Foi quando eu olhei para o pescoço dela. Lá estava. Um colarzinho de ouro, com um nome: “Alessandra”. Ufa, estava salva, e essa mãe merecia um prêmio. Na primeira chance, lasquei o nome no meio duma frase:
- Pois é, Alessandra, eu...
Ela me interrompeu, rindo.
- Lúcia! Alessandra é a minha filha. Estou com colar dela por causa da aula de natação!
E continuou a conversa, apesar do meu desapontamento. E, pior: sem me falar o nome verdadeiro, que não sei até hoje.
Ainda bem que não sou só eu que tenho esse problema aqui em casa. Era domingo e veio aqui um amigo do João, o Joaquim, que é filho de um senhor, português, simpaticíssimo. Depois do jantar, chegou o pai do Joaquim.
O Zé foi atender a porta.
- Lúcia. Como chama mesmo o pai do Joaquim?
- E eu vou saber, Zé?
Ele deveria ter perguntado ao menino, o Joaquim. Mas, ao invés disso, olhou para Francisco, meu filho maior.
- Chico. Rápido. Você sabe o nome do pai do Joaquim?
Bom. O Francisco é o maior gozador da paróquia. Sem tirar o olho do livro, respondeu:
- O pai do Joaquim é o Manuel, ora – pois!
O Zé desceu a escada, abriu a porta todo animado e falou em alto e bom tom:
- Opa! Falaí, ô Manuel!
O homem arregalou o olho, sem graça.
- Manuel? Ô José. Mas meu nome é Fernando.
Bom.
Para ajudar as amigas, vou providenciar meu colarzinho já... quem sabe a moda pega?

quinta-feira, 12 de maio de 2005

fique apanhadinho você também!


venha para o lado de cá!

Olha, gente, não é por nada não, mas eu não passo corrente. Essa foi uma decisão que tomei há alguns anos, quando comecei a me comunicar por computador.
É uma decisão que me dá um tremendo alívio. Eu recebo um monte de correntes, como todo mundo, piadinhas, novenas, promessas, questões políticas. Mas leio e descarto. Nunca engordei 10 quilos, nunca tive azar, numa caiu um piano na minha cabeça. Vocês podem confiar. Nada disso é verdade.
Aliás, não é por nada, mas esse negócio de santo de internet não me convence muito.
Porém essa corrente bloguística portuguesa que está no auge e corre por todos os blogs pega a gente de surpresa, por um monte de motivos. Primeiro porque é portuguesa e a gente tem vontade de rir das perguntas (ai, mil perdões, amigos portugueses, mas ficar "apanhadinho" é demais!...). Depois porque tem perguntas muito legais, onde você pode exibir toda a sua sabedoria. O ego dos blogueiros vai lá pro espaço, nós podemos, ali, mostrar quem nós somos de verdade. É a maior chance da gente se exibir. Imagina se alguém vai confessar que leu Código da Vinci ou Paulo Coellho (ichi, entre outros livros melhorzinhos eu confesso que já li esses sim...). Descobri, inclusive, que a maioria dos blogueiros lêem livros que eu nunca nem ouvi falar. Estou impressionada, devo ser a maior burra. E a corrente ainda deu certo porque virou um "post da moda", todos os blogs legais tem sua corrente publicada. Toda-toda.
Mas aqui no frankamente vocês não vão ver a "corrente literária", infelizmente.
Eu não passo corrente, gente.
É meio como se o mundo se dividisse, de novo, em duas partes: os que passam corrente e os que não passam corrente. Eu pertenço à segunda parte: não passo corrente. Olha. É mais que uma escolha, é uma natureza. Um estilo de vida. Somos poucos, eu sei, mas somos corajosos e andamos de cabeça erguida.
Não passamos corrente, dizemos de peito inflado.
Assim, fiz até um selo para a ocasião. Está ali em cima e ali ao lado também, no meu patchwork de coisas que eu apoio/ adoro/ dou força/ concordo/ ganhei de presente. Quem quiser pode pegar e usar que é absolutamente grátis. Nós, os do lado de cá que não passamos correntes, aceitamos adesões de qualquer pessoa, inclusive de ex-correnteiros. Não temos preconceito.
Decidam-se em que lado vocês estão, gente.
Fique apanhadinho você também! E venha para o lado de cá!

quarta-feira, 11 de maio de 2005

o erro, o sapo e o grau de exigência baixo



Gente, preciso confessar uma coisa.
Meu grau de exigência é baixíssimo nas coisas que eu faço.
Pode ser que seja coisa de signo, pode ser que seja por causa da minha impaciência, pode ser porque eu seja ansiosa. Mas percebi uma coisa curiosa: quanto mais eu abaixo meu grau de exigência, mais eu fico mais feliz e mais coisas eu produzo.
Daí vem mais felicidade.
Daí eu produzo mais.
É uma coisa que roda, entende? Um... círculo de exigência baixíssimo. Olha, dava até para desenhar, mas agora não vem ao caso o desenho. Eu queria explicar a coisa.
Tomemos, por exemplo, o meu já famoso tricô. Ontem, por exemplo, eu me sentei em frente à TV e comecei a tricotar, distraída. Tenho um fraco por programas humorísticos de quinta categoria, tipo a “Praça é nossa”, “Casseta”, “Zorra Total”, “Chaves”, essas coisas. Cada um com seu defeito, que fazer? (o Zé, por exemplo, tem fraco por programas de compras, precisa ver as coisas que ele já adquiriu nas suas madrugadas insones). Bom, lá estava eu tricotando diante do Casseta e Planeta, toda feliz da vida. Num dos acessos de riso, pimpa, errei um ponto. Só fui descobrir na carreira seguinte. “Droga”, pensei, quando vi aquele pontinho mínimo no lugar errado.
Imediatamente minha mente olhou ao redor, olhou a tv, olhou o tricô e avaliou: “Ah. Um errinho de nada, lúcia. Se você desmancha? Claro que não, ninguém vai ver...”. E assim suspirei toquei para frente. Tava engraçadíssimo o programa.
É muito esquisito pensar sobre isso. Imaginar que o erro está lá, que foi culpa nossa e que não vamos arrumar é uma decisão e tanto. A gente, mulher, tem culpa de tudo. A culpa feminina é como uma segunda pele, grudada na gente para sempre. Pode parecer desleixo, pode parecer mentira, pode parecer desmazelo. Ainda mais para mim, que sou mãe, que tenho que dar exemplo, fazer as coisas certinhas, trololó. Daí pra vida virar um inferno é um pulo, sei disso. E nessa hora eu penso que um pontinho errado é uma coisinha tão à toa...
O incrível não é o erro não incomodar, mas conseguir conviver com ele ao longo da vida. Fazer desaparecer um erro que está nítido diante dos seus olhos é, talvez, o oposto da paixão. A gente se apaixona, e, cegos, achamos o feio um verdadeiro príncipe. Depois, com o tempo, aparece o sapo. Nesse caso é o contrário. É como olhar o sapo, nem dar bola para a feiúra e achar que ele é um príncipe fantástico e deslumbrante.
É uma decisão complicadérrima, essa de não desfazer o tricô. É pura filosofia. Decisão de vida. Acho que, de novo, vou ter que dividir o mundo em duas partes, (além dos com bidê e sem bidê): as pessoas que desfazem o tricô e as que não desfazem o tricô.
Isso é ainda mais terrível se pensarmos que eu sou filha da minha mãe, uma mulher que faz tricô tão bem. Mas talvez os tricôs da minha mãe sejam diferentes dos meus. Os tricôs dela são tricôs poéticos, e os meus são apenas desestressantes, como a “Zorra Total”.
É. Talvez na poesia eu não aja assim. Na poesia, nos textos, na literatura, eu sou exigente e nem percebo. No resto, deixa para lá.
Assim, faço tudo mais ou menos e fico toda feliz. Cheia de erros, cheia de sapos, cheia de programas humorísticos de quinta categoria. Meus bolos nunca ficam deslumbrantes, minhas festas sempre dão meio errado, minha casa nunca está impecável.
Pensando bem, acho que isso não é um problema. É uma dádiva divina.
E viva o grau de exigência baixo!

segunda-feira, 9 de maio de 2005

iii... entupiu!


... para não dizer que eu não falei de banheiros (o assunto predileito dos meus leitores) essa semana ...

Poucas coisas deixam a gente tão em pânico como um entupimento de vaso sanitário. A princípio a gente não acredita que possa ter causado aquele estrago. Depois, vem aquela certeza vergonhosa, quando a gente pensa: " morro mas não saio desse banheiro!".
Olha, deve ter gente trancada há anos em banheiros por causa de entupimentos.
Bem, minha família tem diversos casos de entupimento na história familiar. Volta e meia eles acontecem, temos até um esquema de emergência próprio para resolvê-los, que jamais revelarei aqui.
Essa coisa de entupir privada deve acontecer com a família de todo mundo, claro, mas acho que ninguém conta. E por causa deles, dos pactos de silêncio familiares sobre entupimentos, as empresas de material hidráulico não aumentam as bitolas dos canos, o que resolveria a questão das obstruções.
Óbvio.
Algumas vezes o entupimento se dá também fora da nossa casa, em viagens. Eu até poderia desenvolver uma teoria sobre isso, mas não sou fã de assuntos escatológicos. Na verdade, nem sei como estou tendo coragem de escrever sobre isso. Estou quebrando o pacto de silêncio da minha família, eles vão me condenar, com toda a certeza.
Bom, entupimento em hotel é uma desgraça. Você é obrigado a envolver terceiros no problema e expor uma questão íntima, familiar à estranhos. Tivemos um problema desse tipo num hotel em Petrópolis. A coisa ficou bem grave, e eu e o Zé tivemos que descer até a portaria para pedir ajuda. Quando olhamos o rosto do porteiro, percebemos que o rapaz tinha a maior cara de privada–entupida. Tivemos um acesso de riso gigantesco, completamente descontrolado e infantil, e não conseguimos pedir nada.
Que vergonha.
A privada continuou entupida até de noite, quando mudou o porteiro e tivemos coragem de pedir de novo.
Bem, uma das piores vezes aconteceu fora do Brasil, em um hotel americano. Chegamos exaustos no quarto, depois de zanzar o dia todo. O João, meu filho menor, dormiu, mas ninguém tinha jantado. Sugeri que o Zé saísse e fosse comprar alguma coisa para comermos no quarto mesmo. Um lanche, um sanduíche.
Ele chegou cheio de sacolas.
- Lú. Eu trouxe sanduíches para eles e uma sopinha para nós dois. Quentinha. Delícia.
- Sopinha, Zé?
Bom, não era uma “sopinha” e sim um enorme sopão, que vinha num balde. Um verdadeiro sopão americano, com um caldo grosso, pedaçudo. E com uma quantidade que dava para alimentar um batalhão de uns 20 homens, mais ou menos. Tomamos até não agüentar mais, mas mesmo assim sobrou muito. Muito.
- Onde a gente joga fora isso? Não vou deixar aqui, tem um cheiro muito forte – falou o Zé.
Ele foi procurar uma lixeira no corredor do hotel. Não tinha. Eu sugeri que ele fosse até lá embaixo e jogasse num lixo da rua, mas ele ficou zanzando para cá a para lá, sem saber o que fazer, pois estava muito frio lá fora. Um tempo depois, voltou e sentou ao meu lado.
Sem a sopa.
- Zé. Que você fez com a sopa?
- Eu... joguei na privada, mas já foi tudo embora. Fica fria.
Fiquei brava. Que nojenta essa coisa de jogar comida na privada! Onde é que já se viu? Enquanto eu implicava com ele, ouvimos um berro.
- Éééca! Maiê!
Era a minha filha que corria para fora do banheiro. Claro, a sopa voltou. Demos a descarga de novo, nada. Acho que não havia descarga nesse mundo que empurrasse aquela sopa cano abaixo. E a cada vez que aquilo voltava, o cheiro insuportável no quarto aumentava.
Que pesadelo.
Não tinha mais jeito, em poucos minutos a situação do banheiro ficou insustentável. Ligamos para recepção. O Zé, discreto, queria saber se eles podiam “emprestar” um desentupidor.
Veio um funcionário. Chegou, viu a privada, cheirou o recinto e olhou estranho para nós dois. O Zé me cutucou para eu não falar nada da sopa. Aliás, naquele instante desgraça já era tanta que não tinha explicação nenhuma.
O homem justificou que o problema era grande demais e chamou um ajudante. Os dois tentaram resolver a questão com sucessivas descargas e desentupidores comuns, mas inundaram o banheiro, o quarto e o corredor e só pioraram o problema, pois ele pisavam naquele lodo e espalharam a sopa por todo o carpete. Eu tentava salvar as malas e as nossas coisas. Nossos filhos tinham acessos de riso de vergonha, acocorados sobre as camas.
Os homens desistiram. Abanaram a cabeça negativamente, saíram e voltaram com um desentupidor imenso e outros apetrechos.
Minutos.
Horas.
E nada.
Bom, o resultado é que o hotel teve que chamar uma equipe de encanadores de emergência, que vieram numa van especial e nem assim a coisa deu certo. A sopa continuou voltando, e depois de uma reunião técnica, foi resolvido que seria necessário retirar o vaso. Olha o tamanho do desastre. Tivemos assim, que mudar de quarto, bem no meio da madrugada.
Quem não entendeu nada foi o Joãozinho, de manhã. Que quarto estranho era aquele? Porque estávamos ali?
- Foi só mais um entupimento, filho. Só isso.
Ele fez cara de quem entendeu tudo.
- Ah bom. Normal, mãe.

domingo, 8 de maio de 2005

para a minha mãe



Não sei como agir. Há horas que meu cérebro precisa sonhar a todo custo e eu não quero que ele pare. Tudo manda que não. Consegui passar minha infância dizendo não. A adolescência dizendo não. Mas é a pura poesia, é doença, é vício.
Hoje, adulta, sucumbo. Sou fraca. Dane-se.
Tem dias que tenho ânsia de poesia. Ânsia de poesia é uma droga de coisa, é vício, igual à bebida e cigarro. É preciso parar tudo que você está fazendo para se entregar a ela, às letras, ao amarrado das palavras. No começo dói, é como entrar nua num enorme vazio, é frio, é assustador. É angustiante olhar ao redor e se ver tão só. Mas não há remédio, quem precisa se alimentar disso sabe que é esse o destino, que é essa a natureza.
Sei como acontece. A poesia age como heroína no corpo. O vazio branco da escrita vai sendo preenchido devagar e amortece os músculos, como uma droga no sangue, como o entorpecimento do álcool. Logo após, voamos. Podem gritar conosco, podem nos sacudir. Vôo é vôo, é transpor a mediocridade dos probleminhas da vida cotidiana, é sorrir sem abrir a boca e nem os olhos e nem os braços. É o gozo, não há como evitar, não há como desistir e não há como ter fim. Não sei se é bom. Não sei se é doença ou se é preciso cura. Toda obsessão é contrária a paz e a serenidade.
E é absolutamente inevitável.
Ter ânsia de poesia é como gostar de tricotar. Minha mãe, antes de ter um problema nos braços, tricotava sem parar. Ela tinha ânsia de qualquer coisa que pudesse fazer com as mãos, exatamente como eu, e fazia tricô sem parar. Cada um se vira como pode com suas ânsias de criação ou descriação, eu acho. E será que existe alguma diferença no tricô compulsivo dela e nas minhas letras agrupadas num jorro violento, muitas vezes podre, quase sempre tão inútil?
Sempre, numa certa altura do tricô ela parava, levantava os óculos e olhava para aquilo, deslumbrada com a perfeição das tranças e dos listados, como se lesse um belo texto, como se visse uma cena emocionante. Não falava nenhuma palavra, apenas suspirava e sorria para a sua alma. Orgulhosa.
Acho apenas que fazer as coisas com as próprias mãos é muito bom. Talvez seja só isso, e a alucinação da ânsia de poesia esteja embaçando meus miolos. É apenas bom produzir, assim como é bom plantar, cozinhar, tecer, tricotar. Escrever um texto não é mais poético que fazer um bolo. É apenas tão bom quanto. Não posso dizer que é tão bom como fazer um filho, mas é bom. Aliás, é bem diferente de fazer um filho: filhos crescem dentro da gente alheios á nossa vontade, são muito mais fortes que nós, as mães. Já a poesia e o tricô precisam de esforço, precisam de suspiros fortes, precisam de dores nas costas de cansaço, precisam derrotar a ânsia. Agonizam na sua criação.
Acho apenas que a poesia e tricô fazem parte da vida. É como respirar, gozar, comer. Eu preciso trançar as palavras dentro da lógica dos meus fios, com minhas agulhas e com as minhas mãos. Preciso me tricotar, antes que as linhas e palavras sejam esquecidas e adormecidas no cesto de palha.
Junto comigo.

sábado, 7 de maio de 2005

o meu tricô


olha a "beleza" do meu tricô...
Resolvi fazer tricô. Na semana passada, senti falta de fazer alguma coisa com as mãos. Descobri que quando mantemos as mãos ocupadas, a mente pensa mais tranqüila. É como se os pensamentos, que normalmente voam rápido demais, passassem a andar na velocidade do corpo, mais lenta, com os pés no chão.
Não sei se a idéia fica clara. Com a pintura e com a cozinha também acontece isso. Enquanto você cozinha, pinta ou faz tricô, você desacelera a mente. E, enquanto você cozinha, pinta ou faz tricô, você também pode conversar com os outros.
Isso é muito bom.
Já escrever é maravilhoso, eu adoro, mas é uma atividade que aumenta demais a velocidade da minha mente, além de me isolar do mundo. Quando eu escrevo, pode cair uma bomba ao meu lado que eu não percebo. Fico muito alheia ao mundo, quando eu volto parece que voltei de viagem. Com o tricô não. Com o tricô eu interajo com o mundo.
Tricoto lãs e palavras.
Esse já é o meu segundo cachecol. O primeiro acabei hoje de manhã e dei para a minha filha. Mas isso é apenas o começo, é como se fosse um treino, afinal cachecóis são facílimos de fazer. Não faço tricô há mais de quinze anos, tive que começar do zero. A minha meta é confeccionar malhas com golas, com tranças, com desenhos e cores. Meias. Gorros. Luvas. Bolsas. Pulôvers.
Hahaha.
A gente nunca deve pensar pequeno.
Mas, observações a parte, queria apenas notar que depois que comecei esse tricot, estou mais calma, mais equilibrada, mais atenta, mais tagarela e mais satisfeita. Os meus filhos me falam que tricô é coisa de velha. Balançam a cabeça e suspiram quando me vêem toda animadona com minhas agulhas, como se eu tivesse chegado na velhice mêêêsmo. Claro, eu entendo o que eles querem dizer. Todo o mundo com computadores, home teathers e Ipods e eu aqui, com agulhas e lãs, contando pontos e dando laçadas? Mais pré histórico impossível.
Mamãe dinossaura.
Mas faz um bem danado voltar um pouco no tempo e na tecnologia, gente, eu recomendo. E prometo postar aqui o andamento das minhas “peças”.
Alguém quer tricotar também?
E lembro da frase que está ali ao lado, que me escreveu o Prata.
Tricotar não é jogar conversa fora. É jogar conversa pra fora.

sexta-feira, 6 de maio de 2005

A engenharia das frases




Eu e o engenheiro da obra, ontem, na estrada que liga Ilhéus a Itacaré.
- Sabe, Lúcia, eu descobri uma coisa muito importante outro dia – me disse o engenheiro, com um ar pensador.
- Que foi?
- As coisas que a gente fala são mais importantes do que a gente imagina. As frases, eu digo. Eu nunca liguei para as frases, olha que absurdo. Como pude viver quarenta anos sem pensar nas frases que eu falo?
- Como assim? – eu perguntei.
Achei estranho o assunto. Esse engenheiro só fala de obras e construções.
- Veja bem. Se você, diante de um problema da obra, faz uma cara feia e diz uma frase como “puxa, mas isso é muito complicado de resolver”, todo mundo na obra passa a achar a coisa complicada, demora-se muito mais tempo para fazer e todos ficam de cara feia.
- Correto. Concordo.
- Mas se você olha a coisa, sorri e fala uma frase como: “iii, mas isso é bico gente, vamos resolver em dois tempos”, em dois tempos a coisa está resolvida. E quando você olha em volta, todas as pessoas estão até... felizes, digamos.
- É. Concordo.
- Eu nunca tinha pensado que uma frase pudesse mudar um trabalho. Nunca. É incrível – ele balançava a cabeça, empolgado - Uma única frase!
- Puxa, muda mesmo – respondi, dando mais trela.
Aquela conversa estava ficando engraçada.
- As frases que a gente pronuncia são capazes de mudar até a nossa vida, lúcia. Tudo depende da escolha da frase. Por exemplo, eu posso falar para um servente: “Fulano, se você deixar cair essa pedra de mármore, eu te mato!” ou então posso falar “Fulano, cuidado a pedra de mármore!”.
- Sim, pode – eu concordei, para ver aonde ele ia chegar - Mas e daí?
- Pensa uma coisa comigo. Se eu falar a primeira frase e fechar meus olhos, o que eu vejo? Um putz desastre antes de qualquer coisa acontecer. Só com uma única frase, eu vejo a pedra caindo e me vejo matando o pobre do servente. Olha que coisa mais horrorosa.
- Nossa! – me assustei. Aquele moço seria incapaz de matar uma mosca.
- Mas se eu fechar os olhos na segunda frase, eu me vejo apenas falando para ele tomar cuidado. Vejo o pedreiro passando com a pedra na minha frente, feliz da vida, sem queda, sem pedra quebrada e... sem nenhuma morte... Muito melhor pra mim também, não acha? Melhor ser um engenheiro feliz do que um destruidor de materiais e, pior. Um assassino.
- Concordo - respondi rindo - Assassinato dá cadeia.
- Afinal, eu sou pago para construir e não destruir, né?
- Mas agora pára de fechar os olhos - eu pedi a ele, apontando para a frente - E... e... bem, "cuidado com a estrada", por favor!

tum, tum... tum, tum... tum, tum...



Das imagens da viagem que fiz ontem para a Bahia, fico com essa. É uma singela exposição de "pedras coração" que o sr. Monteiro, o caseiro da casa, fez para mim de presente.
Para quem não sabe, eu coleciono pedras que tem formato de coração.
Cada um com a sua mania. Paciência.
- Dona lúicia*, vem aqui comigo na sala de manutenção, no subsolo – me pediu o caseiro – Eu tenho uma surpresa pra senhora.
- Você arrumou aquele pântano, Monteiro? É essa a surpresa? Aquilo estava uma maravalha dos diabos – eu falei, me lembrando da zona que estava aquela sala na viagem anterior.
- Arrumar a sala eu arrumei, mas a surpresa não é só essa, dona "lúicia". É bem melhor que isso - ele declarou, todo animado.
Sim, era bem melhor. Olhem o que ele fez, que máximo!
- Sabe - ele explicou - Existem corações de todos os tamanhos e tipos, a senhora pode reparar. Uns míninos, outros mais brilhantes, outros transparentes, outros pesados. Alguns parece que olham para a gente, como esse que fica em pé - ele concluiu, me mostrando o coração-líder, esse maior, que está meio torto na foto.
- Na vida também é assim, Monteiro - eu conclui.
Ele me contou que toda hora que está na praia, nas pedras ou no mato ele se lembra da minha coleção e cata pedras. "Estou ficando viciado, dona lúicia", ele me contou, sorrindo. Selecionou as melhores e arrumou-as, nessa divertida disposição, para que eu apreciasse melhor as maravilhas que ele achou.
Olha. Fiquei realmente emocionada com a singeleza da exposição e com a cortesia daquele senhor baiano. É estranho achar uma pessoa assim, cuidadosa e atenciosa, sem querer nada em troca. E até fotografei para remontar exatamente do mesmo modo aqui em casa.
* ah, e eu adoro quando me chamam de "lúicia" - tem uma sonoridade tão engraçada...

quarta-feira, 4 de maio de 2005

“Diferente”, né?


Meninos e meninas, lavem-se de lilás. Eu vou pra Bahia amanhã cedinho e volto no final da tarde. Fui!

Já imaginou chegar em casa depois de uma viagem de final de semana, abrir a porta e encontrar... uma casa completamente estranha, toda roxa e amarela?
É um pesadelo?
Não, é a última moda.
Falo daqueles programas de decoração que existem agora nas TVs pagas. São programas onde as pessoas saem das suas casas, geralmente enganadas por algum parente que tem um pacto com a direção do programa, e na volta encontram um lugar diferente, com outra decoração. É um tipo de “pegadinha”. Durante o tempo da viagem forçada, entra em ação uma equipe de decoradores que faz gato e sapato na casa do fulano. Não podemos dizer que o resultado final seja muito... caprichado. É tudo feito meio nas coxas, pois a graça do programa é um desafio: os decoradores não podem ultrapassar um valor e tem que acabar em dois dias. É como se fosse uma gincana, mas quem ganha o prêmio não é o dono da casa. Aliás, não sei quem ganha. Acho que é a emissora de tv, mais uma vez.
Esses programas me deixam embasbacada. Não consigo desligar até a hora do pobre coitado voltar e encontrar a sua casa, antes tão autêntica, toda lilás.
Bem, essa coisa do lilás é verdade. De todos os programas que eu vi, em quase todos o decorador resolveu pintar as paredes de lilás. Quer cor mais estranha que... lilás?
Alguém conhece alguma pessoa com uma casa lilás, gente?
Já acho essa coisa de “decoração” pronta esquisita quando acontece normalmente, imagina numa situação dessa. Para mim, decoração é montar a sua casa ao longo da vida. Acho que as nossas casas devem tomar forma diante dos nossos olhos ao mesmo tempo em que a nossa história é contada. São nossos olhos e a nossa vida que decoram as nossas casas, e não os olhos e a vida dos outros. Decorar é acumular, é adquirir, é precisar, é herdar. É preciso paciência para decorar.
Mas o consumo e a pressa do mundo não entendem essa paciência. Necessitamos resolver rápido, há uma urgência na procura pela perfeição. Assim, junto com esse tipo de programa surgiram infinidades de outros, todos de mudanças súbitas. Programas de cirurgias plásticas súbitas, programas de emagrecimento súbito, programas de banho de loja súbito.
É o circo dos nossos tempos, o divertimento da moda. Acabou a graça da magia infantil dos lenços, pombos e truques, passamos a fazer mágica com a realidade. Como num passe de mágica, vestirmos a máscara perfeita, a fantasia perfeita e entrarmos no cenário perfeito. E dá-lhe susto.
Acho que a moda agora é levar susto.
Na família do Zé, quando alguém pergunta para qualquer um deles o que eles acham de uma coisa e eles não gostam muito, eles sempre dizem:
- Gostou?
- Hummm. Diferente...
Depois de algum tempo de casada, descobri o que significava exatamente esse “diferente”: queria dizer que eles achavam a coisa absolutamente ridícula e que estavam gargalhando por dentro.
Lembrei disso quando vi um desses programas. Quando tiraram a venda dos olhos do pobre do casal, eu pude ver a expressão de desespero deles ao encarar a horrorosa sala de estar lilás.
- E aí? Gostaram? – perguntaram os decoradores-apresentadores, sorrindo.
- Hum. “Diferente”, né?

um pedaço de um conto que eu adoro, adoro...


Escrevi esse conto há um ano. Chama-se "o personagem", mas é muito comprido para colocar aqui. Adoro essa parte. Adoro mesmo, de paixão. Volta e meia eu pego só para reler a parte final. Eu leio e rio sozinha, feliz. Que eu posso fazer? Coisa minha, ora.

"... Aquela noite sequer existiu. Ela lembrava de pouquíssima coisa. Foi ao restaurante, encontrou os amigos, bebeu um pouco. Nem estava vestida para a ocasião. Falou, conversou, comeu.
E uma hora, lá longe, ela o viu.
Tinha um rosto grande, mas isso não significava que ele fosse gordo. Era apenas grande, como o rosto de alguém que desafia as regras da dimensão. Ana analisou as suas expressões. Talvez aquele fosse um homem sem medo. Não, era mais que isso. Aquele era o rosto de alguém mais arrogante que o normal. Arrogante e orgulhoso.
Mas embora essas impressões fossem más para qualquer outro homem, o fato dele ser soberbo, naquele momento, era para ela extremamente sedutor. Isso era tudo que ela queria naquele dia tão sem graça. Um tipo sórdido de sedução, algo que beirasse o vulgar, o barato, o simplório. Ou até, quem sabe? Um tipo cafajeste de homem.
Aliás, Ana queria mais a sedução do que todos os outros adjetivos, embora todos eles, quando piores, parecessem cada vez mais interessantes.
Porque escolhera justamente aquele homem?
Ele não notara a sua presença ali, pobrezinho. Não tinha a menor idéia de nada. Ana sorriu. Achou graça em ver um homem poderoso tão frágil na sua frente. Aquilo parecia aquelas histórias entre a caça e o caçador. Ela, que durante a toda sua vida ficara esperando que uma droga de caçador aparecesse e a levasse embora, resolveu mudar as coisas. Também, pensou, sempre foram tão poucos os caçadores e tão grande o desejo de ser abatida...
Percebeu que ele acendia um cigarro. Tudo acontecia justo naquele dia, quando ela estava sem nenhuma arma nas mãos. Nem no cabeleireiro ela foi. Nem as unhas ela fez, ela notou, olhando suas mãos.
Esse é o tipo do comentário que ela deveria fazer para a sua mãe. “Olha que coisa, mãe”, ela diria. A mãe sempre concordava com frases que começavam assim. E as duas balançariam a cabeça. “É mesmo, filha. Bem hoje, que você está toda mondonga, esse moço maravilhoso aparece na sua frente. Se você tivesse se arrumado ele provavelmente não apareceria. A vida é assim mesmo, Ana”.
Às vezes só a mãe da gente para entender a graça do destino.
Ela olhou para o homem uma outra vez. O rosto grande tinha um grande nariz. Aliás, ele todo parecia imenso.
Era simplesmente perfeito.
Amém.
Foi quando tudo aconteceu.
Ela queria entender qual foi o mecanismo que o fez olhar para o lado e perceber que ela estava ali. Também não sabe se foi ele que olhou, ou se foi ela que o forçou. Mas houve um olhar. Um longo e demorado olhar, que, claro, ela desviou. É preciso saber medir esse tempo. Um pouco a menos ou a mais atrapalharia. Ele olhou, ela olhou. Não há muito mais do que isso, não existe música para isso, não há como pintar esse quadro, nem como dançar essa dança. Ele olhou, ela olhou, e nesse momento meio segundo a mais se passou. Ah, se ela pudesse contar o que realmente significa esse meio segundo a mais. Se pudesse...
Meio segundo a mais acende uma luz. Um coisa de bicho, de ser como um animal no meio da floresta, de uma vontade instintiva, pré histórica. Ele olhou, ela olhou e foi assim que foi tecida a trama do começo da história. Para sempre existirá esse enlace, esse fio de linha, naquele instante ainda tênue e frágil, mas indestrutível como a memória. É claro que depois daquele houveram muitos outros olhares, que tentaram provar para a consciência deles que aquilo tudo não era um engano. Outros olhares, com sorrisos, com emproares de corpos, com respirações profundas, com lábios mordidos. Mas esse primeiro olhar, tão inexplicável, de duas pessoas que nunca se viram, sem passado, sem memória e, mesmo assim, completamente inevitável. Não há cálculo, nem precisão, só um brusco atropelamento diante dos corpos. Um fisgar violento, ela pode falar assim? Violento? Pode alguma coisa ser violenta e doce ao mesmo tempo?
Ele olhou e ela olhou, e o destino definiu esse olhar, casual, denso, insensato, diabólico, dissolvido, mágico. Era tudo o que ela podia fazer na vida, olhar e olhar de novo, dentro daquela área contida no meio do tempo. E Ana soube que alguma coisa germinava, era ainda uma coisa seca e pálida, mas podia sentir a força da semente.
Ana respirou fundo. Ela sabia como regar, como tornar férteis a noite e o dia e como transformar todo esse sonho numa outra verdade, ah, tão alimentícia.
E foi ai que ela entendeu.
Aquele era o seu personagem."