quarta-feira, 4 de maio de 2005

um pedaço de um conto que eu adoro, adoro...


Escrevi esse conto há um ano. Chama-se "o personagem", mas é muito comprido para colocar aqui. Adoro essa parte. Adoro mesmo, de paixão. Volta e meia eu pego só para reler a parte final. Eu leio e rio sozinha, feliz. Que eu posso fazer? Coisa minha, ora.

"... Aquela noite sequer existiu. Ela lembrava de pouquíssima coisa. Foi ao restaurante, encontrou os amigos, bebeu um pouco. Nem estava vestida para a ocasião. Falou, conversou, comeu.
E uma hora, lá longe, ela o viu.
Tinha um rosto grande, mas isso não significava que ele fosse gordo. Era apenas grande, como o rosto de alguém que desafia as regras da dimensão. Ana analisou as suas expressões. Talvez aquele fosse um homem sem medo. Não, era mais que isso. Aquele era o rosto de alguém mais arrogante que o normal. Arrogante e orgulhoso.
Mas embora essas impressões fossem más para qualquer outro homem, o fato dele ser soberbo, naquele momento, era para ela extremamente sedutor. Isso era tudo que ela queria naquele dia tão sem graça. Um tipo sórdido de sedução, algo que beirasse o vulgar, o barato, o simplório. Ou até, quem sabe? Um tipo cafajeste de homem.
Aliás, Ana queria mais a sedução do que todos os outros adjetivos, embora todos eles, quando piores, parecessem cada vez mais interessantes.
Porque escolhera justamente aquele homem?
Ele não notara a sua presença ali, pobrezinho. Não tinha a menor idéia de nada. Ana sorriu. Achou graça em ver um homem poderoso tão frágil na sua frente. Aquilo parecia aquelas histórias entre a caça e o caçador. Ela, que durante a toda sua vida ficara esperando que uma droga de caçador aparecesse e a levasse embora, resolveu mudar as coisas. Também, pensou, sempre foram tão poucos os caçadores e tão grande o desejo de ser abatida...
Percebeu que ele acendia um cigarro. Tudo acontecia justo naquele dia, quando ela estava sem nenhuma arma nas mãos. Nem no cabeleireiro ela foi. Nem as unhas ela fez, ela notou, olhando suas mãos.
Esse é o tipo do comentário que ela deveria fazer para a sua mãe. “Olha que coisa, mãe”, ela diria. A mãe sempre concordava com frases que começavam assim. E as duas balançariam a cabeça. “É mesmo, filha. Bem hoje, que você está toda mondonga, esse moço maravilhoso aparece na sua frente. Se você tivesse se arrumado ele provavelmente não apareceria. A vida é assim mesmo, Ana”.
Às vezes só a mãe da gente para entender a graça do destino.
Ela olhou para o homem uma outra vez. O rosto grande tinha um grande nariz. Aliás, ele todo parecia imenso.
Era simplesmente perfeito.
Amém.
Foi quando tudo aconteceu.
Ela queria entender qual foi o mecanismo que o fez olhar para o lado e perceber que ela estava ali. Também não sabe se foi ele que olhou, ou se foi ela que o forçou. Mas houve um olhar. Um longo e demorado olhar, que, claro, ela desviou. É preciso saber medir esse tempo. Um pouco a menos ou a mais atrapalharia. Ele olhou, ela olhou. Não há muito mais do que isso, não existe música para isso, não há como pintar esse quadro, nem como dançar essa dança. Ele olhou, ela olhou, e nesse momento meio segundo a mais se passou. Ah, se ela pudesse contar o que realmente significa esse meio segundo a mais. Se pudesse...
Meio segundo a mais acende uma luz. Um coisa de bicho, de ser como um animal no meio da floresta, de uma vontade instintiva, pré histórica. Ele olhou, ela olhou e foi assim que foi tecida a trama do começo da história. Para sempre existirá esse enlace, esse fio de linha, naquele instante ainda tênue e frágil, mas indestrutível como a memória. É claro que depois daquele houveram muitos outros olhares, que tentaram provar para a consciência deles que aquilo tudo não era um engano. Outros olhares, com sorrisos, com emproares de corpos, com respirações profundas, com lábios mordidos. Mas esse primeiro olhar, tão inexplicável, de duas pessoas que nunca se viram, sem passado, sem memória e, mesmo assim, completamente inevitável. Não há cálculo, nem precisão, só um brusco atropelamento diante dos corpos. Um fisgar violento, ela pode falar assim? Violento? Pode alguma coisa ser violenta e doce ao mesmo tempo?
Ele olhou e ela olhou, e o destino definiu esse olhar, casual, denso, insensato, diabólico, dissolvido, mágico. Era tudo o que ela podia fazer na vida, olhar e olhar de novo, dentro daquela área contida no meio do tempo. E Ana soube que alguma coisa germinava, era ainda uma coisa seca e pálida, mas podia sentir a força da semente.
Ana respirou fundo. Ela sabia como regar, como tornar férteis a noite e o dia e como transformar todo esse sonho numa outra verdade, ah, tão alimentícia.
E foi ai que ela entendeu.
Aquele era o seu personagem."

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