segunda-feira, 31 de outubro de 2005

o mordomo



Elas eram duas tias bem velhinhas e solteiras. A festa de natal era sempre na casa delas, e para elas aquilo era o acontecimento do ano. Acho que elas se sentiam muito sós naquele dia-a-dia de aposentadas, nunca se casaram e tinham uma velhice muito solitária. Mas não completamente solitárias.
Elas tinham um mordomo.
Hummm.
Um mordomo.
Moravam com ele em casa. As pessoas comentavam.l Quem seria, realmente, aquele homem que as acompanhava há tantos anos? Um amante? Namorado? Ele era um homem calado, digamos que até bonito. Elas nunca esclareciam nada, diziam somente: ele é o mordomo. Ponto final.
Em alguma época da vida ele deve ter sido realmente um mordomo, claro, mas o problema é que nunca ninguém da família o viu em ação. Bem, um dia aquele senhor europeu, alto, magrinho, elegantérrimo, com seus olhinhos azuis e cabelos brancos, ficou muito doente. Teve um sério problema de reumatismo que foi, pouco a pouco, o impedindo de se movimentar. E, de mordomo que as servia, passou a ser um morador da casa a ser servido por elas.
Elas o tratavam como se fosse uma boneca. Davam banho, trocavam a roupa, penteavam, davam comida e falavam com ele como se ele fosse um bebezinho. E ele, impassível, sempre. Não se incomodava, mas não se desprendia de sua altivez.
Assim são os mordomos.
Bom, nestes natais elas organizavam tudo. Para elas uma festa de família era uma coisa muito séria e cerimoniosa e alguém tinha que estar no comando. Montar a árvore, tirar as louças antigas dos armários, buscar os faqueiros de prata no cofre do banco, definir o menu, escolher as músicas, fazer a lista de convidados, definir os lugares na mesa, tudo, tudo era minuciosamente planejado. Todos os anos a mesma coisa, o mesmo ritual estranho, indecifrável e esplêndido que são estes natais em família.
Como as tias levavam muito a sério a festa de natal, e como uma verdadeira festa de natal tinha que ter um Papai Noel, elas escalavam o velhinho para esse papel. Ele não tinha como retrucar, estava nas mãos delas. Assim, colocavam o mordomo numa poltrona, vestiam a roupa, enchiam de travesseiros na barriga, colocavam botas e o maquiavam. Na verdade, faziam a maior farra com ele. Do seu lado colocavam um grande saco de presentes.
Ele, impassível. Imóvel. Mordomo até o fim.
Os anos se passavam, os natais também e ele de lá, fazendo às vezes do nosso Papai Noel. Misterioso, e até um pouco... diabólico.
Um dia ele morreu. Elas ficaram tristes, mas não tanto assim, afinal, ele estava dando trabalho. O mistério nunca foi desvendado, quer dizer, até hoje não sabemos se ele realmente foi mordomo delas um dia. Mas é bom uns mistérios em família. Dá assunto nas festas.
No primeiro natal depois da morte elas disseram que continuariam mantendo toda a programação, tudo igualzinho, só que sem o mordomo.
Mas, quietinhas, resolveram que, apesar dele ter morrido, elas tinham que manter a imagem do Papai Noel na sala, pois era parte fundamental do ritual. Impossível um natal sem um Papai Noel. Não passou pela cabeça delas que as pessoas pouco se importavam com a “imagem” que elas inventaram do “Papai Noel” nos outros natais. Todos ficavam mais intrigados com o mordomo enigmático ali dentro, petrificado feito uma estátua do que com a idéia do Papai Noel.
Assim, elas pegaram a fantasia, as botas, os travesseiros e uma máscara de plástico e montaram uma espécie de “boneco Noel”. Acho que elas pensaram que, assim que a família chegasse, todos ficariam muito felizes de ver que ainda existia um Papai Noel na celebração.
Não foi por mal. Tenho certeza.
Bom, a família foi chegando aos poucos.
E cada um que entrava e olhava para aquele canto dava um berro de horror. Pois parecia, na semi escuridão da sala, que elas tinham retirado o mordomo do caixão para revivê-lo ali, em plena noite de natal. Era aterrorizante. Um defunto em plena sala de estar. Ninguém percebia que era uma máscara, pois afinal, como ele nunca falava nada, nunca ninguém olhou realmente para a cara dele.
Uma das minhas primas minha gritou, algumas crianças choramingaram, ninguém entendia a graça mórbida daquilo. Era uma tensão quando tocava a campainha, pois lá vinha outra vítima.
Minha mãe resolveu ficar de uma vez na porta da entrada para advertir as visitas. “Cuidado”, ela avisava, “assusta, mas é boneco”.
Elas ficaram bastante decepcionadas. Ficamos mudos, o jantar foi tenso, com aquele homem ressucitado da tumba. Nós continuamos comendo nos lugares programados, ganhando presentes e cantando, mas tudo era assombroso com aquela alma penada rondando a sala.
Não era para dar medo ou ter graça, como achamos no dia seguinte, rindo dessa maluquice delas. Na verdade, para elas, a festa de natal, importante como era, não poderia mudar. Só seria boa se fosse completa, e manter a “tradição” era muito mais importante do que a morte do mordomo. Numa certa época ele pode ter sido um bom mordomo, ou, quem sabe, até um amante misterioso. Mas naquelas festas ele era somente um recheio de Papai Noel, sem mistério algum. Bom, foi a última aparição dele. Nos anos seguintes a cadeirona ficou lá, vazia, esperando por ele, que nunca mais voltou.
Mas bastava olhar para ela que, brrr, todo mundo via a imagem do mordomo.
Uia. Um mordomo.

sábado, 29 de outubro de 2005

visita à obra



O arquiteto aproveitou a hora do almoço para ver a reforma do apartamento.
Ele entrou no meio da sala empoeirada, a porta estava apenas encostada. O local estava em absoluto silêncio, normas do condomínio: do meio dia as duas é proibido fazer barulho.
Quase todos os peões e funcionários dormiam ali mesmo na sala, no chão. Um deles usava a botina como travesseiro. Ao lado deles algumas marmitas e cascas de laranja. Um rapaz moreno, de camiseta regata, cruzou a sala na sua frente.
- Oi... – ele interpelou o moço – Você sabe do seu Sabino?
Na falta da resposta, ele tentou de novo.
- Como que você chama?
- Wanderson. Mas o pessoal aqui me chama de Mauá.
- Mauá. Mauá, você viu o seu Sabino? Eu sou o arquiteto da obra, ele me conhece.
Ele não respondeu, como se não tivesse entendido.
- O seu Sabino, o mestre.
- Ah. Saiu ele. Agorinha.
O arquiteto deu de ombros. Passou a andar pelo local para entender se estava de acordo com o projeto. Depois de rodar a sala e cozinha, foi para os quartos e sala íntima. Na volta parou no meio do corredor. O vão da porta da entrada da sala de TV estava no lugar errado.
Voltou para achar o rapaz.
- Mauá, escuta aqui. Você trabalha com o Sabino?
- Trabalho sim senhor.
- É o que?
- Sou servente.
- Bom, vem aqui comigo que eu preciso que você fale uma coisa pra ele – levou o rapaz até o corredor - Está vendo essa porta?
- A porta não, estou vendo o buraco da porta porque a porta ainda não tá ai - ele respondeu, sério.
- Isso. O buraco da porta, claro. De novo. Mauá, você está vendo esse buraco de porta?
- Estou sim senhor.
- Esse buraco de porta está errado.
- Não parece não.
Ele sorriu. Falar com peões de obra é completamente diferente do que falar num escritório, ou falar com funcionários ou em reuniões. A linguagem, a velocidade, o tom e a lógica precisam ser outras.
- Mauá, essa porta está no lugar errado. Temos que deslocar meio metro para o lado direito.
O rapaz olhou com cara de nada.
- Entendeu?
- Não senhor.
- Está vendo esta porta aqui, Mauá?
O pedreiro olhou o vão e franziu o olho com força.
- Bom, esquece. Fala pro Sabino que eu vim aqui e que.
Era melhor desistir, aquela conversa seria longa. Mas ao mesmo tempo lembrou que a obra não tinha telefone e o seu Sabino nunca atendia o celular dele. Era melhor resolver ali mesmo.
- Não, peraí. Vamos resolver agora mesmo. Olha, fala para o Sabino que essa porta tem que sair daqui - ele falou alto e resolvido.
- Sair daqui? – perguntou o servente, como se aquilo fosse o maior absurdo do mundo. Era como se a porta estivesse sendo mandada para a lua.
- É, sair daqui! Esta porta – e ele mostrou a porta com o dedo - deve sair daqui e deve ir meio metro para o lado direito!
- Lado direito?
- Direito, esquerdo. - ele mostrou com o dedo - ela vem pra cá, este que é o lado direito.
Os olhos do servente se iluminaram.
- Ah, entendi, é para mexer na porta – concluiu, com uma risada gostosa.
- Isso. E você vai colocar a porta meio metro para cá. Tá entendido?
Ele coçou a cabeça. Óbvio que não estava nada entendido.
- Mauá, você sabe quanto é... meio metro?
- Sei, é cinqüenta.
- Isso.
- Mas como cinqüenta se a porta tem mais que cinqüenta? – ele arriscou.
O arquiteto suspirou baixinho. Era desesperador.
- É, você tem toda razão. A porta tem mais que cinqüenta. Mas esquece o tamanho dela e pensa que ela vai andar, andar – e o arquiteto começou a andar pelo corredor batendo os pés no chão - ... andar cinqüenta para cá! Ei. Você tem trena?
Ele mediu meio metro na parede e rabiscou com um pedaço de tijolo.
- Olha. A porta vai ficar aqui. Aqui começa e aqui acaba. Este batente aqui vem para cá e este outro para cá - concluiu, acabando o desenho no chão e nas paredes.
- Ah, entendi – respondeu o Mauá com um sorriso no rosto.
- Você fala isso para ele? – perguntou o arquiteto, suspirando.
- Para quem?
- Para o seu Sabino, quando ele voltar.
- Ah, mas o seu Sabino não volta mais hoje não senhor.
- Bom, tudo bem. Você fala amanhã?
- Amanhã eu não estou aqui mais não senhor. Vou para outra obra.
O arquiteto balançou a cabeça, irritado.
- Então obrigada aí, ô Mauá.
- De nada não senhor.

sexta-feira, 28 de outubro de 2005

eu não tenho roupa!



O Zé veio até a sala coçando a cabeça.
- Iii. Melhor você ir lá com a sua filha. Ela está lá em cima, parada, de toalha, olhando o guarda roupa. Tá acontecendo alguma coisa.
Eu entrei no quarto.
- Filha? O que foi, menina, não vai à festa? Porque está parada ai?
- O papai não entende, mãe! Eu não tenho roupa!
Começou.
Existe uma enorme verdade por trás dessa frase, e quem é mulher já falou isso mais de um milhão de vezes.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer: a famosa frase “eu não tenho roupa” não tem absolutamente nada a ver com a quantidade de roupa que você tem dentro do guarda roupa naquele exato momento.
Nadinha.
A frase quer dizer um monte de outras coisas, que também não nada a ver com as palavras que compõe a frase, ou seja, quando nós, mulheres, exclamamos desesperadas “eu não tenho roupa”, não queremos dizer nada com “ter” nem com “roupa”, acredite se quiser. A única palavra que vale é o “eu”, mas quando você, atrapalhada, exclama que não tem roupa, o teu “eu “ já está tão em pânico que acho que nem você sabe mais quem você é.
É confuso?
Muito. Tem gente que nem imagina o quanto.
É uma frase mais comum que a gente imagina, que pode ser dita até mais de uma vez por dia, independente da hora. Outra coisa, quando alguém literalmente diz “eu não tenho cabelo”, ou “eu não tenho dinheiro”, ou “eu não tenho carro”, saiba que essa pessoa provavelmente é careca, dura e está a pé. Porém a exclamação “eu não tenho roupa” não quer dizer, de maneira alguma, que você vá ficar pelada.
É uma sensação horrível, é quase como ser possuída por um espírito mau que te atormenta e que te impede de ir a festas, bares e encontros. Acho que deve existir uma entidade pelada qualquer (meus santos que me perdoem) que azucrina as mulheres antes dos eventos. Quem já passou por isso sabe como é desesperador não ter roupa bem na horinha de sair.
A questão é que criamos uma relação muito esquisita com nossos guarda roupas. Aquelas portas que se abrem na nossa frente, muitas vezes, abrem os nossos medos e receios. E quando nos vemos diante deles, sentimo-nos incapazes de enfrentar o mundo. Além disso, armários ainda tem espelhos – e espelhos não mentem jamais, essa é a questão. Quando somos meninas e vamos numa festa, somos mulheres em cabides, esperando para ser escolhidas. Acho que é por causa disso que acumulamos muito mais roupas do que precisamos: para sobreviver. É uma estratégia da guerra contra o medo. E acumulamos roupas não para vestir, mas para poder escolher a melhor arma para lutar contra a solidão.
Vestir-se, na minha opinião, é um negócio meio triste.
Isso é um assunto que vai além do entendimento racional. "Não tenho roupa" quer dizer que estamos inseguras, que não nos sentimos confortáveis dentro do nosso corpo, que estamos no limite das nossas vidas. Uma roupa para ir a uma festa ou a um encontro não se compra numa loja nem se resolve olhando o guarda roupa. A roupa ideal está dentro da nossa cabeça. É preciso sentir-se abrigada dos males, dos medos, das inseguranças. Vestir-se é colocar confiança no seu corpo.
E não é sempre que isso está dentro de uma guarda roupa.

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

dia de aniversário



Pois bem, já se foi mais um ano e hoje é dia do meu aniversário. Eu ia ignorar a data e apenas colocar uma crônica da série ‘arquitetices’ , mas achei que com isso eu poderia parecer metida e blasé. Olha, não adianta a gente fingir que o aniversário da gente não é com a gente. Dá a maior vergonha fazer aniversário publicamente, mas resolvi assumir.
Data mais boba o aniversário, a maioria do mundo trabalha e não está nem ai com você, mas é o único dia que é só nosso no ano. O meu calhou de ser bem no dia do presidente Lula, e tomara que ele esteja feliz lá no palácio com o aniversário dele. É um dia todo meio mágico, por trás dele existe uma aura, uma alegria embutida. Você almoça e pensa “nossa, esse é o almoço do meu aniversário”, você se veste de manhã e pensa, “hum, essa será a roupa do meu aniversário”. Isso dá um significado especial para as coisas do cotidiano que não sei exatamente para quê serve.
Coisas de aniversário.
A única coisa estranha do dia do aniversário é ter que repetir “obrigada” tantas vezes. Acho que é o preço do prazer de ter um dia só seu. Obrigada tia, obrigada mãe, obrigada filho, obrigada Zé, obrigada Maria, obrigada gente, obrigada, obrigada. Acho curioso esse monte de “obrigadas”, mas até hoje não consegui achar nenhuma palavra mais adequada para falar depois dos parabéns.
O pior é que as pessoas nunca se contentam com apenas um “parabéns”. Tudo que é feito hoje para expressar prazer e satisfação é em excesso. É como se só um “parabéns” fosse muito pouco para te cumprimentar pelo seu aniversário, ainda mais num mundo onde as pessoas adoram comprar, consumir, comer, presentear, esgotar, adquirir.
- Lúcia, parabéns!
- Ah. Obrigada.
- Muitas felicidades.
- Obrigada.
- Muitos anos de vida.
- Obrigada.
- Olha, tudo de bom.
- Obrigada.
- Parabéns mesmo.
- Obrigada, obrigada.
Dez minutos depois lá vem a ladainha com outra tia – amigo – irmã – conhecido. E a cena se repete durante o dia todo. O cumprimentador com os inúmeros parabéns e desejos e eu com os inúmeros obrigados naquela cara sem graça.
Lembrei outra coisa engraçada. Hoje eu tinha que viajar para ver uma obra na Bahia, a equipe toda foi. Expliquei.
- É meu aniversário.
Nossa. Vocês não imaginam a receptividade dessa frase. Fui perdoada na hora, as pessoas todas me olharam com um certo respeito. O dia do aniversário é a melhor desculpa para você desmarcar compromissos. Ninguém te cobra nada, é um dia de respeito total às suas preguiças e outras coisas.
Mas a coisa mais genial eu ouvi da minha filha Luciana, quando ela era bem pequena. No dia do seu aniversário ela acordou e me olhou sorrindo.
- E ai? Que tal? Cresci?
Na cabeça dela o “crescimento” se dava exatamente no dia do aniversário e subitamente na hora que ela acordasse. Como se o corpo dela... plop!... crescesse mais um ano bem naquele instante. E por causa disso fazíamos tantas comemorações e dizíamos “nossa, você está ficando grande, que bacana”.
A idéia é muito boa, eu sempre tento adotá-la. Assim, tenho o dia todo de hoje para pensar em quê eu vou crescer e fazer... plop!

quarta-feira, 26 de outubro de 2005

A cozinha da tia Dorinha



- Alô. Ai é da casa da Lucinha?
Ninguém me chama de Lucinha há séculos.
- É. Quer dizer, sou eu, a Lúcia. Quem é?
A voz se animou toda.
- Oi Lucinha. Aqui é a tia Dorinha!
Tia Dorinha? Quem era mesmo a tia Dorinha? O Zé tem tanta tia, a família dele tem mais de duzentas pessoas. Falar com uma tia da família do marido, sem nenhuma dica, é judiação. Disfarcei.
- Oi tia, tudo bom? Quer falar com o Zé?
- Não, querida, quero falar com você mesmo.
- Comigo?
- Lucinha, é sobre a minha cozinha.Eu quero reformar a minha cozinha.
Pronto, entendi. Fria total. Sentei numa cadeira e suspirei.
- Ah, a senhora quer reformar a cozinha, tia Dorinha.
- Está muito velha. Quando eu comprei o apartamento os meninos ainda eram crianças, agora já vou ter um neto, imagina! E... como se chama esse acabamento mesmo dos armários?
- Fórmica?
- Isso. O acabamento fórmico está aqui desde que mudei. Imagina a velharia – ela mudou de tom – Escuta, Lucinha, você já veio aqui em casa, não foi?
- Eu... eu fui uma vez no natal, tia.
- Então diz uma coisa. Sabe aquela parede da frente da porta da copa? Aquela onde tem o calendário? Eu queria tirar aquela parede, trazer a copa para essa salinha onde está o telefone e aumentar a cozinha.
- Eu não sei, tia, porque eu não...
- Também pensei em trocar o fogão com a pia. Colocar o fogão do lado de cá e a pia do lado de lá. Daí aquela mesinha antiga que veio da fazenda ficaria do lado do fogão, na entradinha da área de serviços. O que você acha, você que é arquiteta?
Eu não estava entendendo nada. Fui na casa dela uma única vez e não sai da sala de estar.
- Acho que vai ficar bom, tia. A senhora mora ai há tantos anos e.
- Você lembra como a minha área de serviços é grande?
- Hum. Não me lembro muito bem não, tia.
- É gigantesca, não sei o que deu no arquiteto desse prédio pra fazer um negócio tão descomunal, Lucinha. Eu também queria tirar um pedaço da área de serviço para fazer uma despensa, você acha que fica bom?
- Tirar um pedaço como?
- Assim, cortar, mas tem a janela. Como eu faço com a janela, Lucinha? Eu falei com o meu Niltinho, o primo de vocês, ele mora agora lá em Porto Alegre, sabia? Ele que me disse: “mamãe, pede ajuda para um arquiteto ai de São Paulo, não pode mudar assim”.
- Tia, a janela é de correr?
- Sabe que eu nem olhei? – ela começou a rir – Hahaha. Esperai que eu vou ver e já volto.
Eu não sabia nem por onde começar. Que confusão.
- Iii, Lucinha, não vai dar – ela falou, suspirando. Eu acabei de perceber que bem ali tem meu varal. Se eu fechar, vou perder o varal.
- Ah, isso vai. Escuta, tia, a senhora não acha bom fazer um desenho?
- Ah... Eu falei com o seu Eliseu, o pedreiro aqui do andar de cima, e ele disse que não precisa de desenho. O que eu falei para ele é que eu ia ligar para a minha sobrinha para ela me dar umas dicas, isso eu disse. Eles respeitam muito mais quando a gente tem engenheira.
- Arquiteta, tia. Olha, a senhora já viu se tem pilar e prumada antes de derrubar a parede? Pilar é a estrutura do prédio.
- Vou falar com o seu Eliseu. Ele é ótimo, caprichoso. Mas olha, o motivo do telefonema é que eu queria que você desenhasse uns armários bem bonitos para mim.
- Eu?
- É. Vo-cê. Faço questão, Lucinha. Uma arquiteta, da USP.
- Ah. Brigada.
Ô meu Deus. Tava demorando.
- Que dia você pode vir aqui?
- Hummm, essa semana eu não posso, tia, uma pena. Na semana que vem eu também não posso e.
- Amanhã à tarde, que tal? Quatro horas. Isso, vem amanhã e eu faço um café e você vem desenhar os armários, está bom? Tem que ser logo que seu Eliseu começa na segunda.
- Eu...
- Lembra do endereço? É só embicar o carro que o zelador abre a garagem e você coloca na vaga dos meninos. É a vinte e dois a minha.
- Tia, eu...
- Ah Lucinha! Mais uma coisa, eu já ia me esquecendo. Que cores assim de cerâmica que você acha bonita?
- Branco, tia. Com piso preto.
- Pensei em bege, você acha bonito bege? E eu vou deixar o piso marrom mesmo, igual dessa pedra aqui. Que você acha, lucinha?
- Acho ótimo, tia Dorinha, ótimo.

terça-feira, 25 de outubro de 2005

o envelope



- Lucia?
- Sim, sou eu.
- É a Renata, do Paulo Miguel, tudo bem?
- Oi, Renata! – respondi, surpresa.
- Escuta... - ela titubeava ao falar – posso passar aí agora? Estou aqui perto.
A campainha tocou em menos de dez minutos e entrou no escritório a Renata, a mulher do Paulo Miguel, um dos meus clientes na época. Ele é um médico gatroentereologista, e estávamos fazendo uma casa para eles num condomínio bacana nos arredores de São Paulo.
A mulher estava ligeiramente sem graça. Lembrei que eu nunca havia conversado sozinha com ela, pois o nosso contato sempre fora com o marido. Entramos juntas na sala de reunião.
- Eu precisava falar sobre o projeto... – ela me diz, envergonhada.
- Vocês querem mudar alguma coisa, Renata?
- Não é isso – ela diz, sentando numa cadeira - é outra coisa.
- Então vou pegar os desenhos e já venho.
No salão encontro uma outra arquiteta que trabalha no escritório.
- O que a mulher do Paulo Miguel tá fazendo aqui a essa hora?
- Sei lá. Vou ver agora.
- Veio falar o quê? Ela nunca abre a boca.
Volto com os desenhos. Percebo que a Renata está super nervosa.
- Diga, Renata, o que você quer mudar na casa?
- Tudo.
Foi como destampar uma rolha. A mulher explodiu e desandou a falar sem parar.
- Olha, não tem cabimento construir uma casa onde meu quarto está tão longe do quarto dos meninos, pô, Lúcia. Acostumei no apartamento, é tudo pertinho. Eu... eu não estou tranquila, eu não quero assim. Eu queria que os quartos das crianças fossem alo lado do meu, é isso.
- Ora, podemos colocar, Renata. Enquanto é papel, projeto, desenho, a gente pode mexer a vontade. Qual o problema?
- O problema? O problema é o Paulo Miguel. Ele que não quer.
- Como não?
- Falei que queria mudar e ele me disse que não concorda, que eu sou muito grudada nos meninos, que não temos uma vida própria, assim, vida de casal. Ele acha que é ótimo os meninos estarem longe da gente, e fala que não é tão longe assim.
- Não é mesmo, Renata. Entre seu quarto e o deles tem apenas essa sala de tv. Uns cinco metros, se a gente contar o corredor. No mesmo andar.
- Eu acho muito. Muito!
- Tudo bem, mudaremos. Você precisa ficar feliz com a casa.
- Mas ele não quer de modo algum! Falou que se é pra eu continuar grudada nos filhos é melhor ficar no apartamento. Disse que eu preciso de terapia, que isso não é normal. Você acha que eu preciso de terapia?
- Claro que não, toda mãe...
- Mas ele acha! – ela disse, me interrompendo. Em seguida mudou o tom de voz – ... escuta, como seria se os quartos fossem todos juntinhos, porta com porta? Dá para desenhar, assim, um croquizinho?
- Dá, claro – respondi, confusa – seria alguma coisa assim... podemos colocar esse banheiro aqui e usaremos esse espaço para uma grande rouparia. Um quarto aqui e outro aqui. Olha, dar dá. Precisaremos acertar a estrutura e as circulações, Renata.
- Deixa eu ver – ela falou, apanhando o desenho – Gostei. Ficou muito, mas muito melhor. É exatamente isso que eu quero.
- Quer levar esse desenho e mostrar para o Paulo Miguel?
- Não. Queria outra coisa.
Ela tirou um envelope da bolsa e me deu.
- Que é isso?
- É dinheiro.
- Dinheiro? Não tem nada que me pagar agora, Renata, a gente tá só conversando.
- Eu sei, esse dinheiro é pra outra coisa.
- Como assim?
- Eu queria que você fosse ao consultório do Paulo Miguel mostrar esse desenho para ele.
- Eu?
- É, você. Mas você vai ter que marcar uma consulta com outro nome, para ele não saber que você é você. Você vai, entra, e quando ele fechar a porta você mostra o projeto para ele e fala que é isso que eu quero.
- Renata, eu...
- Se não for assim ele não vai te receber, entende? Ele me falou que não quer nem ver uma outra proposta de projeto. Esse dinheiro é o dinheiro da consulta, que você tem que pagar antes para a secretária.
- Pagar uma consulta com o Paulo Miguel...? – eu estava completamente pasma – você deve estar brincando, Renata.
- Não, de modo algum. Até pensei na sua doença, caso alguém pergunte. Você faria isso por mim? Pode ser?

segunda-feira, 24 de outubro de 2005

uma reunião de projeto



Quando chegamos, ela estava sozinha com as crianças. Sorriu.
- Entrem, sentem. O Reinaldo ainda não chegou. Deve ser o trânsito - ela explica, sem graça, olhando eu e meu sócio com o projeto nas mãos.
Os filhos pequenos rodam pela sala. Ela pede para a gente não reparar na bagunça.
- Estou curiosa para ver os desenhos. Ficou bonita a casa? – rapidamente ela olha para a porta da copa – Róóósa. Faz um café, por favor? – logo em seguida segura mão do filho pequeno - Lucas, não mexe nisso.
Eu sorrio sem graça. Será que dará certo? O resultado de uma reunião de projeto é sempre imprevisível.
- Gabriela, esse papel aí é da titia. Olha, quando o Reinaldo chegar eu vou colocá-los na cama - ela explica, desculpando-se.
O homem engravatado chega com cara de cansado. Óbvio que esqueceu da reunião.
- Ah, como vão... – ele diz, nos cumprimentando sem ânimo.
- Querido, você não quer ir com eles para a sala de jantar enquanto eu coloco a Gabi e o Lucas na cama?
A sala de jantar está quieta. O homem nos deixa ali e vai buscar bebida. Adiantamo-nos, retiramos a fruteira e abrimos os desenhos sobre a mesa. Ele volta com o uísque, que eu recuso e meu sócio aceita. A empregada entra com o café, que eu aceito e meu sócio recusa. Tentamos começar sem a mulher, mas ele discorda.
- Conheço a Vaninha, ela vai ficar brava.
Depois de uns minutos ela entra, cheia de revistas. Dá uma risadinha.
- Umas idéias que eu tive.
O Reinaldo olha torto. Eu me adianto.
- Isso é ótimo. Dá para sentir o clima que vocês querem ter na casa – falo, salvando a mulher.
Depois de explicarmos o projeto, a Vaninha pergunta onde fica a rua. Obviamente não entendeu nada. O Reinaldo retruca, ela deveria prestar mais atenção - se aqui é a garagem, aqui é a rua, Vaninha, ele aponta. Vaninha fica sem graça, disfarça e pergunta qual é o quarto de cada filho. Tanto faz, eu explico, são iguaizinhos. Ah, é que eu preciso que o do Lucas tome sol por causa da bronquite. Explico que os dois quartos estão virados para a mesma face. Olhe esse desenho aqui, isso é uma representação de uma janela. O sol é o mesmo nos dois ambientes.
O homem quer saber a área da construção. A Vaninha interrompe - a cozinha não está pequena? Meu sócio percebe que a mulher não tem idéia do que é pequeno ou grande, aliás, ainda não entendeu onde está a rua. Reinaldo coça a cabeça, não queria uma casa de trezentos metros. Conversei com um amigo que acabou de construir, pensei em cento e cinqüenta metros. Bom, explica meu sócio, vocês pediram quatro suítes, um home theather, family room. Então nós vamos tirar uma das suítes, fala o Reinaldo. A esposa se assunta. Mas a mamãe vem todo mês para cá, onde ela vai ficar, querido? Ora, ela dorme com a Gabi, ele desconversa e se levanta para pegar outro uísque. Vaninha fica ressentida e segura a raiva num suspiro profundo. Fingimos que está tudo bem e continuamos. É uma casa de telhado? Pergunta a mulher, olhando as elevações, eu não gosto de casa de laje, eu falei. É, diz meu sócio. É interrompido pelo Reinaldo, que, preocupado, diz para mudar o projeto. Três suítes e um quarto de empregada só. Cento e cinquenta metros.
A Vaninha fica irritada. Como assim? Um quarto de empregada só? Tem a Rosa e a Lourdes, a babá, onde a babá vai dormir, Reinaldo? No mesmo quarto que a Rosa, Vânia. Mas eu já disse para elas que. Você desdiz, Vaninha, porque eu não quero construir uma mansão desse tamanho para satisfazer empregada. A mulher bufa. Reinaldo, escuta, nós temos que conversar depois. Você sabe quanto custa uma obra, Vaninha?, ele diz, olhando para o meu sócio. Olha, vocês que decidem, eu falo, se precisar mudamos o desenho.
O Reinaldo analisa o projeto. As crianças podem ter um único banheiro. Como assim, Reinaldo, mas a Gabi... Ora, ele fala, eu dividi o banheiro com a minha irmã Flávia a vida toda. Então porque não divide comigo, Reinaldo? As crianças terão que dividir o banheiro mas você quer ter um só teu, né? Ele a olha com autoridade. Eu que pago as contas aqui e não posso nem ter um banheiro meu? Vaninha, irritada, disfarça, abre uma revista e mostra para meu sócio uma foto de um lavabo. Ele sorri sem saber o que fazer. Explica que precisaremos fazer outro projeto, afinal teremos que tirar uma suíte, um banheiro, a sala íntima e um quarto de empregada. Não esqueçam de aumentar a cozinha, ela pede. Chega, Vaninha, fala o Reinaldo, você não entende nada de projeto, a cozinha está boa assim. Ele me olha, nervoso. Me responda, acha que a cozinha está pequena?
Titubeio. Fico de lado de quem? Está do tamanho da cozinha da minha casa, mas melhor esperar o outro projeto, respondo. Nos levantamos para sair, enquanto Vaninha ainda olha desenhos tentando entender a rua, cozinha, a laje e o telhado. Está nervosa. Olhaqui, Reinaldo, se é para diminuir tanto eu prefiro nem construir. Morar num cubículo, Deusmelivre. Mesquinharia sua isso. Vaninha falamos depois, ele resolve, nos encaminhando para a porta. É melhor vocês conversarem, fiquem com esses desenhos que ligaremos no final da semana, fala meu sócio. Vaninha se despede com um sorriso amarelo, o marido dá tchau e a porta de fecha.
Provavelmente é naquele momento que a briga começa.

sábado, 22 de outubro de 2005

as lesmas e o ozônio

(atenção: mais um post de nojo - pode causar asco, repugnância e ânsias)

Morar na cidade tem isso. A gente se civiliza e não sabe mais conviver com insetos. Resolvemos questões complicadíssimas no mundo virtual mas somos derrotados por uma barata ou um ninho de cupim.
Uma vez comentei isso com um amigo biólogo. Ele, um apaixonado por insetos, ficou indignado com minhas aflições. Falou maravilhas de todos os bichinhos, inclusive citando as utilidades de uns para manter a vida dos outros. Éca. Aquela coisa chata da cadeia insetal, que no fim sempre tem um final feliz, flores lindas, uma melhora na camada de ozônio, ar puro e longa vida aos humanos. A tua aflição de baratas perto da salvação do mundo parece a coisa mais idiota do universo e você é obrigado a calar a boca e mudar de assunto.
Bom, como eu moro em casa, está cheio de insetos aqui. As formiguinhas que são comidas pelos pernilongos que são comidos pelas largartixas que são comidas sei lá por quem que são comidos pelos gatos que são praticamente comidos pela Bela, minha cadela, que só foi comida uma vez pelo marido dela, um border collie lindo, o Bug.
Olha, eu não sou maluca, até que agüento bem. Mato as baratas, desprezo largartixas e desratizo a casa a cada seis meses. Pernilongo tem bastante, mas fazer o quê?
Mas nada é tão asqueroso como as lesmas. E aqui na minha casa tem um monte de lesma.
Sabe aquelas lesmas marrons, que se parecem com um bife de fígado ambulante? Elas são o meu pesadelo. Tenho horror das lesmas. Elas andam devagar, nunca sei para onde nem porquê. Estão em busca de quê? São caladas, lentas, perigosas. Não tem nada que as impeça de entrar onde quiserem. Passam sob as portas, entram pelos vãos das janelas de correr, andam sobre o tapete, sobre o sofá, sobre a tv e sobre as paredes, deixando aquela nojenta trilha brilhosa.
Aquela trilha, para mim, é pura provocação. Uma afronta. Sinto que elas querem me dizer o quanto são poderosas e como não tem medo de nada. E se um dia elas andarem em cima de mim a noite? Tenho medo de acordar, me olhar no espelho e ver aquela trilha gosmenta bem no meio do meu rosto.
Argh.
Quando descobri que minha casa era cheia delas, entrei em pânico. Passei a ter pesadelos com os bifes ambulantes. O que fazer? No começo, o Zé pescava as lesmas com uma vara comprida e colocava num saco. Eu ficava berrando ao lado, de ânsia.
- Zé, será que assim elas não fogem? Você deu um nó forte? Coloca mais um saco!
- Sal, joga sal antes – dizia a Maria, transformando a lesma numa meleca asquerosa – enche o saco de sal!
Um dia descobri um sensacional produto na Cobasi que matava as lesmas. Passei a comprar caixas e caixas, criando uma barreira química de bolotas ao meu redor da minha casa. Passei dois anos assim, salva. Porém, há seis meses, quando fui renovar meu estoque, a surpresa.
Proibida a venda de lesmicida.
Parece que é por causa da cadeia alimentar de algum inseto.
Entrei em pânico. O horror voltou. As trilhas descobertas pela manhã. Pensei em fazer uma barreira de sal ao redor da casa, pensei em mudar de casa.
Essa semana veio o jardineiro aqui.
- Tarcísio, você viu? Não vendem mais lesmicidas. Disseram que foi proibido por lei.
Ele balançou a cabeça.
- Olha, eles pararam de vender, mas eu compro no mercado negro, dona Lúcia – e ele abaixou o tom de voz – be, se a senhora quiser eu arrumo...
Epa. Seria contrabando de lesmicida?
- Ei, eu quero... – sussurei, animada – quanto cada?
O homem falou mais baixo.
- Quinze reais o pacote. Quer quantos?
Olha, gente, perdão. Vou quebrar a cadeia e prejudicar a camada de ozônio.
Mas não, lesma não.
Argh!

sexta-feira, 21 de outubro de 2005

o homem que falava demais



Uma obra sempre tem muita gente trabalhando. Como em qualquer grupo de trabalho, as pessoas no começo não se conhecem, depois algumas se tornam amigas, outras apenas conhecidas, outras brigam e não conseguem nem se olhar. Mais ou menos no meio do processo já sabemos muito bem as características de cada um.
Foi mais ou menos nessa época de uma das minhas obras que eu percebi a coisa. Eu já comentei aqui sobre as ‘características’ de algumas pessoas. Muita gente tem traços de personalidade, manias e tiques bem... marcantes. Depois que a gente nota não tem mais jeito. Estigmatiza. É uma condenação, uma prisão eterna.
A desse engenheiro era impossível não ver. Ver não, era impossível não ouvir. O problema do cara é que ele falava pra caramba, continuamente e ininterruptamente. Parecia que tinha engolido um rádio ou coisa parecida – bastava começar que a conversa virava um monólogo sem fim.
Olha. Eu detesto gente que não desenvolve conversa, mas aquele fulano era exageradamente tagarelo, e, depois de uns dez minutos de escuta ininterrupta qualquer cristão percebia que ele passava dos limites.
No começo aquilo não me incomodava, até o dia que tivemos que viajar juntos. Ele falou sem parar durante as duas horas e meia de vôo de ida e de volta, e eu cheguei aqui com o maior torciloco da paróquia.
Bom, uma coisa como essa todo mundo percebe, mas não comenta. Guardei a aflição durante um mês, até que um dia desabafei com um amigo.
- Escuta. Já notou como o fulano fala?
O meu amigo se animou. Foi como destampar uma rolha.
- Ah, ainda bem que você também reparou. Tem dias que eu não agüento, o telefone quase derrete na minha mão – ele suspirou, aliviado em desabafar.
Assim, pouco a pouco, todos os outros engenheiros, arquitetos, fornecedores, secretárias e encarregados tomaram coragem e começaram a comentar o fato. E o fato era que o tal engenheiro, realmente, falava demais.
- É insuportável, não é producente – falou um marceneiro – Eu tenho que trabalhar e ele não me deixa, fica falando!
- Por causa dele eu perdi o vôo – falou um outro engenheiro – ele falava sem parar no meu ouvido na sala de embarque, eu ouvi a moça chamando o vôo mas não consegui interromper. Resultado: perdemos o avião.
- Outro dia pedi licença e fingi que ia ao banheiro para descansar – falou uma arquiteta.
Começaram as piadinhas. Um monte delas.
- Quer ficar um ano sem falar com ele? É só não interromper.
Coitado do homem. Virou motivo de chacota. As pessoas passaram a evitá-lo. Mas fazer o quê? Eu, por exemplo, que preciso falar sempre com ele, fico adiando a ligação. Quando ligo no fim da tarde, o tempo passa, anoitece ele ainda está lá, dentro daquele telefone, matracando. Fico nervosa, deito no chão, largo o telefone, vou até a cozinha, falo palavrão baixinho, escrevo impropérios, mordo a mão, arranho o rosto e quase choro. Ele continua falando, falando, falando.
O homem é o gerúndio vivo.
Hoje eu tive que ligar para ele. Antes, comentei com uma secretária.
- Bom, preciso desligar, Bete. Tenho que ligar para o fulano agora.
- O fulano? – ela respondeu, rindo – Bom, então hoje não nos falaremos mais. Até amanhã!

quinta-feira, 20 de outubro de 2005

o ônibus do mané



Recebi um e-mail super engraçado de amigo meu de anos e anos, o Mané.
Desde que eu conheço o Mané, e já se vão quase vinte anos, que ele tem uma vida diferente. Ele trabalha aqui em São Paulo e mora da cidade de Santos, no litoral. E todos os dias ele sobe e desce a serra para trabalhar.
Quando ele me contou essa esquisitice, cai para trás. Hã? Ir e voltar do litoral para São Paulo todos os dias? Eu sou complicada para viajar, imagine o tamanho da mala que eu resolveria levar. Ele deu risada.
- Você acostuma, lúcia, e quer saber? Dependendo do lugar onde você mora, é muito mais rápido e cansa muito menos do que dirigir dentro de São Paulo.
- Mas é uma viagem! – repliquei.
– Veja, vamos num ônibus confortável, eu não dirijo o ônibus, tenho amigos lá dentro, fazemos jogatinas e festas e podemos dormir a vontade.
Ele também me conta que depois de tantos anos indo e vindo com as mesmas pessoas, todos acabaram ficando grandes amigos. Ali já nasceram filhos, houveram casamentos, separações, mortes, festas e grandes histórias. É uma turma muito unida, a do ônibus do Mané. Tive vontade de entrar no grupo. Será que esse ônibus me leva e me trás de volta?
Bom, quando escrevi sobre os carros com insulfilm, ele me escreveu um e-mail sobre o ônibus deles, que agora tem insulfilm também. É hilário. Olhai.

Nesta vida errada que escolhi (trabalhar em SP e morar em Santos), comecei a passar pela mesma coisa desde trocamos de ônibus fretado.
Ar-condicionado ecológico fortíssimo (todos de cobertor, parece um avião indo para NYC ou Miami) com as janelas seladas ("não precisa abrir", nos dizem) e esta porcaria de vidro com insulfilm, só que deve ser 10% de transparência - claro, passageiro não dirige. Lá na frente, no motorista, é tudo claro, mas entre ele e o “salão” há uma porta que fica fechada e vidros com cortinas.
De manhã todos dormem batendo queixo, numa escuridão de 90%. À tarde ou noite, saindo do Largo de São Francisco, vemos filmes no aparelho de DVD (o ônibus tem quatro monitores e sempre um está no máximo a 3m de você). Quem quer ler tem que acender a luzinha de cortesia, mínima.
E tome filme. Não se enxerga a estrada, a lua, a chuva. Sabemos que está na serra pelo leve balanço. Alguém tenta ver se tem neblina. Piada ! Nada se vê.
Aí o ônibus chega em Santos à noite e as pessoas precisam descer, claro que cada uma num trecho do percurso. O que temos? Dezessete, trinta pessoas cobertas feito mendigos com os narizes estampados nas janelas, tentando enxergar o bairro, o caminho, vendo se o diabo do motorista está "chegando perto de casa". Vai dando um desespero até que alguém resolve ir lá para frente e começa a irradiar "onde estamos":
- Rua Epitácio Pessoa, perto da padaria Independência!
- Olavo Bilac, agora no banco Itaú! Faculdade de Medicina!
- Alguém no canal dois? Olha, o sinal está aberto, ele vai passar, hein?
- Cruzando a Ana Costa, gente, olha o Gonzagaaa!
Quem olha de fora não vê absolutamente nada.
As pessoas estão ameaçando trazer uns estiletes para abrir umas vigias. Coisas de hoje em dia.

Gente do céu. Ônibus com insulfilm é demais, isso não é viagem, é sequestro. Será que o índice de assaltos a pessoas pelas janelas em ônibus de turismo é tão grande assim para justificar essa maluquice? E para quê serve um ônibus de turismo onde ninguém vê nada lá fora? Pensa bem, uma das intenções de uma viagem num ônibus de turismo é ver conhecer o lado de fora. A coisa extrapolou. Insulfilm não é mais uma necessidade, e sim um luxo. É um acessório a ser consumido, não duvido nada que daqui a pouco ele seja adotado em... aviões. O que se vende é um estilo de viajar. Dentro de uma bolha condicionada, escura, segura e inacessível.
- Cruzando a Ana Costa, gente, olha o Gonzagaaa!

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

idade mental



Era uma viagem de família, eu, o Zé e os três filhos. Uma viagem grande, cuidadosamente planejada. Ficaríamos um mês fora do país, iríamos de avião, alugaríamos um carro e viajaríamos um mês de cidade em cidade, dormindo cada dia num lugar. Todos juntos, o tempo todo.
Tudo programado. Cada um teria sua mala e seus pertences e seria responsável por alguma parte da viagem. Estabelecemos algumas regras: não brigar, respeitar os horários e estar sempre animado. Seríamos um grupo unido e companheiro, e enfrentaríamos juntos as situações que aparecessem pela frente.
Bom, foi uma viagem deliciosa, mas passamos mais tempo arrumando e desarrumando malas, entrando e saindo de hotéis, lendo mapas e nos perdendo em estradas do que realmente conhecendo lugares novos. E o tempo que passamos dentro do tal veículo alugado, um carro enorme, que mais parecia um ônibus de retirantes muambeiros, foi muito maior do que o tempo que passamos em terra firme.
- Vai ser ótimo para eles – disse o Zé, logo nos primeiros dias da caravana – eles vão crescer, vão aprender muita coisa.
As crianças tinham, na época, de sete a doze anos. No começo parecíamos dois professores. Como éramos 'os pais', nos mantínhamos sérios e dávamos aula atrás de aula. Pobres dos meninos. Acho que éramos entediantes, eles dormiam o tempo todo. Viramos uma espécie de pais – enciclopédias, vomitando fatos, datas, explicações. Achávamos que eles tinham muito a aprender com aquele país.
Sabe como é.
Mas com o tempo esquecemos aquela postura empoada. Descobrimos que para eles a viagem era apenas uma grande aventura, feito nos filmes. Eles se divertiam com tudo, era inevitável não acompanhar as gracinhas, não rir, não emendar e falar mais bobagem. Eles eram muito mais legais e divertidos que nós, com nossas tentativas de sermos inteligentes e sérios.
Bom, o fato foi que, ao invés das crianças evoluírem, eu e o Zé regredíamos a cada dia. Agíamos como se tivéssemos uma idade mental muito menor que a nossa. Passamos a ter, no máximo, uns doze, treze anos. Foi um verdadeiro absurdo o que aconteceu ali.
Acho que o convívio exagerado, dia e noite, sem qualquer outro tipo de interlocutor e fechado dentro daquele carro imundo (quem é que manda lavar carro alugado em viagem? E já viu viagem de brasileiro com criança sem uma geladeira entupida com comida porcas com embalagens mais estranhas ainda?) gerou um processo mental onde ficamos, pouco a pouco, totalmente infantilizados.
Quando percebemos era tarde demais. Era impossível não brigar feito criança, não falar palavrão em português na frente dos desconhecidos. O Zé cantava musiquinhas escatológicas o tempo todinho, era insuportável. Um dia até coloquei uma almofada de pum embaixo da cadeira dele no restaurante. Imagine, eu, a mãe.
Vexame.
Brigávamos, mas eram brigas bobas, onde a idade mental declinava ainda mais. Se não fosse a intervenção dos filhos, falando para parar com aquilo já, nos atracaríamos de verdade.
Um dia, à noite, depois que as crianças dormiram, o Zé falou.
- Temos que tomar cuidado, lú. Estamos quase perdendo o controle. Somos adultos, temos que dar exemplo, não podemos continuar com essa idade mental infantilóide.
- Concordo, Zé – eu disse, trocando o canal da TV.
- Ah não, nem vem! – ele exclamou - Me dá já esse controle remoto senão eu te bato. Eu estava aqui antes, hoje é meu dia, pô!

terça-feira, 18 de outubro de 2005

nojo do nojo



Agora a pouco eu estava numa reunião de projeto no escritório de um arquiteto. No meio da conversa ele lembra.
- Posso contar uma coisa? É nojento.
Imediatamente todo mundo sorriu e aceitou. As pessoas adoram ouvir coisas nojentas e fazer cara de nojo. Expressão de nojo é das coisas mais divertidas que existe. A cara retorce, os olhos reviram, a boca entorta.
Engraçado demais cara de nojo.
Aqui em casa o Zé tem uma lista de histórias nojentas que animam qualquer festa. São perólas da repugnância, que ele aprimora a cada contada. É uma coletânea digna de um pequeno livro. Nem sei se tais histórias existiram mesmo ou se foram criadas pela mente dele. E são todas... nojentas.
Bom, esse arquiteto contou que estava viajando a trabalho, e, por causa da correria, não teve tempo de fazer a barba. Entre uma reunião e outra ele viu uma barbearia na rua e resolveu entrar. Porém o que era para ser uma barba virou um filme de terror. Segundo ele, quando o barbeiro segurava no rosto dele para escanhoar, colocava os dedos perto do seu nariz. E a mão do barbeiro fedia muito, mas muito.
- Vocês não imaginam cheiro de quê – ele explicou, todo retorcido – o homem não conseguia fazer a minha barba por causa das minhas caretas e eu não conseguia me livrar daquela mão. Nojento, nojento! Morro de nojo de mãos!
Eu já disse que tenho um pouco de nojo de massagem, o Pecus contou uma vez que tem nojo de esponja de banho, um amigo tem nojo de louça antiga. Não adianta argumentar que é antiguidade, que custou milhões.
- Vai saber quem comeu nesse prato. Nojento.
Mas meu maior nojo é cabelo. Qualquer cabelo fora da cabeça me dá asco. Se o lugar que cai o cabelo é molhado então, tenho até ânsia. Eu não entendo. Porque eu tenho isso? Qual o problema de cabelo no ralo? Sei lá. Mas tenho horror.
Argh. Nem vou falar muito.
Não sei se o nojo realmente aumenta ao longo da vida ou se sou eu que estou piorando. Acho que a gente tem menos nojo quando tem filho pequeno. Deve existir um hormônio nas mães que regula o nojo pós parto, ou o nojo na infância, pois quando lembro das coisas que eu fazia eu... morro de nojo.
Tem também muita coisa que antigamente não era nojenta pra mim e agora é. Cinzeiro, por exemplo. Todos nós, que fumávamos, convivíamos diariamente com cinzeiros. Hoje não agüento nem dez segundos do lado daquela porcaria. Criei asco, repugnância, aversão a bituca.
- E pensar que quando a gente casou, nós dois fumávamos e dormíamos ao lado do cinzeiro – lembrou o Zé.
Já para minha filha adolescente, tudo que envolve os irmãos é “nojento”. Aliás, quando ela não gosta de uma coisa, adota o termo.
- Pergunta para seu irmão.
- Nem pensar. Que nojo.
- Nana, quer suflê?
- Não, nojento.
Meus nojos só aumentam. Ando com nojo de coxinhas quando penso que alguém manuseou aquilo, tenho nojo de gente que encosta o rosto no vidro, nojo de óculos sujos, nojo de banco de carro, de carpete, de bolsa suja, de prato usado, de lixo de pia. Já repararam que tem café gorduroso? E roupa em loja, será que a gente deve sair assim experimentando roupa aqui e ali?
As pessoas estão a cada dia mais inflexíveis, a assepssia e a tolerância com resíduos, lixos, cheiros e detritos está a cada vez menor. O pior é que o mundo não está cada vez mais limpo. Gerar detritos, cheiros, lixos faz parte da vida, mas vemos isso com asco. Fingimos que não vemos, como se não fosse com a gente.
Lixo? Que lixo?
Credo. Acho que eu devia era deixar de ser nojenta.

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

uma praça muito alta



Neste final de semana fui assistir “A vida na praça Roosevelt”, do Sátyros, a convite do Ivam Cabral, que é ator e um dos idealizadores do local. Genial a peça e adorável o Ivam. Mais uma amizade que, de um modo ou de outro, surge por causa desse universo blogal. E, além de talentoso, simpático e generoso, o Ivam escreve muito bem também O blog dele é o Terras de Cabral.
O espetáculo é lindo, e o texto, de uma alemã chamada Dea Loher que morou um tempo no Brasil, é maravilhoso. É uma história sobre a cidade, a praça e seus moradores. É uma história triste sobre a vida, a família, o carinho, o medo e a solidão. E é também uma história sobre os excluídos, os mendigos, os guardas noturnos, os traficantes, as prostitutas, as mães que choram pelos filhos, as jovens com problemas, os operários miseráveis, os desempregados. Gente comum, longe da fama, do excesso de consumo, da grana e longe até da miséria total. É uma história sobre as pessoas que vivem ao nosso lado e que nem notamos, apenas nos incomodamos.
A peça comove. Nos dá consciência da futilidade dos nossos problemas, tão mínimos e frívolos. A arrogância das nossas vidas, com tantos remédios e soluções prontas e caras, nosso orgulho tão mesquinho, nossas preocupações e nossos medos, tudo parece muito mais miserável do que a sujeira real de um mendigo.
Mas eu queria falar sobre a praça Roosevelt.
Para quem não sabe, é uma praça com um projeto moderno no centro de São Paulo, na rua da Consolação, onde fica o teatro e que é o tema da peça. Conheço a praça Roosevelt desde que pequena, e nunca gostei dos comentários insistentes sobre a falta de qualidade urbanística. É difícil admitir, mas a minha primeira impressão do local nunca foi de um espaço feio.
Quando ela foi construída, fui visitá-la com meu pai. Era moderna, civilizada. Uma praça paulistana. Olha, São Paulo, para mim, nunca teve praças. Morei minha infância toda num apartamento na Haddock Lobo com a Antonio Carlos, perto da Augusta e da Paulista. Não há praças ali. Elas simplesmente não existiam na minha infância, nem tampouco no meu imaginário. Eu brincava, passeava e convivia dentro de casa, nas calçadas ou num páteo atrás do prédio.
Conheci as praças do interior, da casa dos meus avós. Mas eram outras praças, de outras cidades, praças de férias. A minha São Paulo nunca me deu praças e eu nunca exigi que desse. Não me ressinto da praça Roosevelt, pois ela teve, para mim, a simplicidade de um fato consumado e perfeitamente adaptado à minha vida urbana. Era uma praça calçada, com um projeto arrojado e moderno, com um estacionamento e viaduto embaixo. Era um espaço perfeitamente inserido na minha vida. Não era feia, era apenas alta. Somente isso eu estranhava, a altura, mas São Paulo também era mais alta que as demais cidades que eu conhecia, com esse monte de prédios.
Porém, um certo dia, aprendi que ela era feia. Surgiram um monte de teorias de qualidade de vida e modelos de urbanismo. Diante de todas essas comparações, a pobre praça tornou-se pavorosa. Uma cicatriz mal feita no desenho da cidade, diziam. Mas eu poderia não ter pego esse atalho de conhecimento. Aliás, não sei se adianta aprender depois de viver a coisa. A memória fala bem mais alto que as outras vozes.
Às vezes eu acho que sou igual a essa praça. Não tive essa infância que dizem ser “saudável”, com a possibilidade de viver numa cidade mais humana, mais generosa, cheia de praças e onde eu poderia brincar na rua. Talvez eu tenha crescido áspera, fria e sem plantas, exatamente como esse espaço. Mas tenho uma alma boa, como a gente daquela praça, como o astral delicioso do teatro e como a generosidade do Ivam.
Eu só não sou tão alta como ela, gente. Só isso.

sábado, 15 de outubro de 2005

o insulfilm e a depressão




O carro novo do Zé chegou uma semana depois da compra, por causa do emplacamento, licenciamento e colocação daquele monte de acessórios que o vendedor me deu.
Aquela coisa caipira. Saímos todos para dar umas voltas no quarteirão, felizes com a novidade, apertando todos os botões, abrindo e fechando os vidros, remexendo porta luvas e cinzeirinhos. O Zé bravo com os meninos, que entraram comendo biscoito.
- Ah. Já vão começar a emporcalhar o carro? Não começa jogando lixo, gente, por favor. Olha, novinho.
Bom, para pessoas que nem a gente, um carro novo sempre é aprovado. Acho tudo lindo, o máximo. Tive pouquíssimos na vida, é uma dureza comprar. Mas aquele carro estava estranho, diferente de todos os outros que já andei. Estava escuro para burro lá dentro.
- Que breu que é dentro desse carro, né Zé? – eu disse, esmigalhando o nariz no vidro para ver onde estávamos.
- É o seu insulfim... – ele arremedou – ... já estranhei isso o dia todo.
- Meu?
- Humpf. Fez tanta questão...
- Zé, mas foi grátis! A gente ia recusar? Só faltava essa. Ei, quanto custaria para colocar essa coisa? Olha a economia. E além de ser presente, está na moda colocar inlfilm nos carros. Somos gente da moda agora, dentro dessa chiquérrima bolha negra. Modernos. Os garagistas vão vir correndo pegar o nosso carro. É o fim do vexame.
- Modernos e cegos – ele retrucou.
- Olha, Zé, além disso é seguro. Uma vez me disseram que meu carro é um perigo, pois os bandidos me vêem lá dentro.
- Mas quem que você queria que vissem lá dentro? Será que os bandidos acham que nos carros com insulfim não tem ninguém?
Mas ele tem razão. É esquisito pra burro essa coisa de insulfilm. O filme faz tudo ficar escuro lá dentro, você não vê se está sol, se vai chover, se está nublado, se tem arco íris no céu. O pôr do sol da Marginal Pinheiros, que me acompanha a vida toda, estava marrom-pastoso, as pessoas se tornaram cinzas, e, mais um problema: não dava para usar óculos escuros. Perigosíssimo.
Resumindo. Andar num carro com insulfilm não tem graça nenhuma. Nada é cristalino, límpido, puro, e quem foi que inventou que a segurança está ligada à escuridão? A escuridão causa depressão, tristeza, melancolia, gente. Pessoas que vivem em países que tem menos sol, é sabido, tem temperamentos mais depressivos. Acho que até, no futuro, perceberemos que muitas pessoas passaram a ter problemas de depressão por causa do insulfilm. Pesquisas serão feitas: carros com filme versus compra de antidepressivos.
Mas o pior não é isso. Andar dentro de um carro escuro dá medo do que tem lá fora. Temos a sensação que dentro tudo está seguro, e lá fora, na escuridão, fica uma outra cidade, estranha, perigosa. O fora e o dentro ficam a quilômetros de distância.
Estamos a cada dia mais nos distanciando da cidade enquanto circulamos. O nosso ar é condicionado, o som é interno e agora perdemos até a luz. Saímos de uma célula para outra célula. A cidade é um tempo que não existe mais. Aquilo foi feito para dar medo na gente, não para proteger.
O carro do Zé é um filme de terror.
- Vamos jantar fora hoje para comemorar, lú?
- Sim, Zé, mas no meu carro. É menos deprê. Pode ser?

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

brigas e birras



Acabei de enfrentar uma discussão sobre um conserto de um vídeo game que acabou em uma briga com meu filho. O diacho da coisa quebrou e ele ficou furioso, pois tinha acabado de comprar um jogo e queria jogar.
Eu sei que essas coisas dão raiva. Entendo a fúria dele. Mas ele queria consertar o aparelho naquele instante, estava nervoso, chateado. Eu trabalho em casa, o que não significa que não trabalhe e esteja disponível, ao contrário, como não tenho horário de entrada e saída, acho que trabalho muito mais. Disse categoricamente “não” e ele ficou furioso. Gritou, desrespeitou meu trabalho, interrompeu o telefonema que eu dava, invadiu o espaço do meu escritório. Fiquei brava, coloquei o menino de castigo.
Quando sentei aqui de novo, estava exausta.
Olha.
É bem difícil educar um filho. Precisamos ficar bravos, nunca raivosos. Braveza é uma coisa, raiva é outra. Um pai ou uma mãe não podem, nunca, ter raiva do filho durante uma briga. E a braveza deve ser contra a ação, e não contra a pessoa. Essa diferença que, para mim, é essencial. Já os filhos, não sei. Existe um componente raivoso no ser humano que me assusta. Já as crianças, quando ficam bravas, não sabem discernir as pessoas dos problemas. Quando percebo, a culpada do videogame quebrar fui eu.
Desde que os meninos são pequenos que noto que quando são contrariados eles se enfurecem. Quando eles eram bebês, a fúria era contra o limite corpo. Berravam como se fossem explodir. Um pouco maiores, as birras. Acho que eles sabem, quando pequenos, que pais servem para conter filhos no colo, nos braços, no limite do abraço. Numa birra a criança não se deixar pegar, abraçar. É assim que eles manifestam a raiva, nos impedindo de amá-los. Um dia minha filha deu um enorme escândalo no clube porque queria balas. Gritava, berrava, se atirava no chão e não deixava ninguém se encostar nela. A fúria, a vontade de xingar, de bater, manifestava-se contra a minha contenção, contra o meu abraço.
Já maiores, eles passam a bater, tacar coisas, empurrar, quebrar brinquedos, chorar. A raiva ainda é física e pouco verbal, sem recheios de palavras feias. No final da infância, berros, palavrões, ameaças. Um pouco mais tarde, as lutas, os socos, os tapas, os arranhões, os puxões de cabelo.
É difícil assumir que isso acontece, mas acontece. Nas melhores famílias.
O meu filho mais velho tem, tatuada na perna, uma garfada que ganhou da irmã. Quatro furinhos, um ao lado do outro. Já ela tem uma marca no rosto de uma arranhada dele. São histórias escritas na pele que eles carregarão até o final da vida. Acho impressionante levar consigo marcas de violência. Eu me espanto, mas eles riem, se gabam. Foi minha irmã que fez, diz aos amigos.
Até hoje não sei como lidar com essa agressão com quem a gente gosta. Familiares, irmãos, pais, devem ser adorados, nunca fulminados. Mas me parece ser da natureza humana esse sentimento de ódio. Ora, e isso também acontece comigo. O quanto que eu já não briguei com o Zé, com minha mãe, com minha irmã.
Mas isso são coisas que as famílias guardam a sete chaves, em reserva, em segredo. Brigas e birras não devem ser comentadas. Brigas não são pautas de conversas, assunto. São segredos, como manchas nas roupas de cama, nas roupas íntimas, nas paredes da casa, nas rachaduras da alma.
- Não fica muito perto que dá briga – dizia minha mãe.
- Desgruda, que daqui a pouco vocês brigam – eu digo aos meus filhos.
- Brincadeira de mão, brincadeira de cão – fala o Zé, repetindo o ditado.
Ora, se sabemos que ficar perto dá briga, porque aceitamos o casamento e moramos todos na mesma casa, grudados, pai, mãe, filhos? Ficar perto não “dá briga”? Não deveríamos “desgrudar”, como dizem os pais?
Meu filho se acalmou e veio falar comigo.
- Feio o que você fez – falei, séria ainda.
- Desculpa, mãe, eu tive um ataque e me descontrolei – ele disse tranqüilamente, um pouco sem graça – Já acabou o castigo? Posso jogar bola?
Epa, ele já tinha esquecido de tudo? Eu fiquei boquiaberta.
Tá. Depois dizem que brigar não é absolutamente natural.

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

trauma de loira

(eu, uma mãe ~"não loira", desenhada pelo meu filho João B. aos 5 anos)

Não dá mais para adiar. A situação está constrangedora, a aparência horrível, já surgiram as raízes brancas, as mechas mais claras estão com aparência de piaçava e se eu fosse me comparar com alguém, seria com a bruxa Meméia.
Resumindo, tenho que pintar o cabelo.
Falando em cabelos, essa semana recebi um comentário muito simpático do blogueiro Jôka P., do Avenida Copacabana. Ele me disse que, além dele, a mãe dele, Gigi P., também lê meu blog. Nessa conversa de mães, ele se lembra de uma foto da minha mãe que eu postei aqui, e me conta que a mãe dele também é loira, como a minha.
Bom, e é sobre isso que eu queria falar. Sobre a loirice da minha mãe.
Desde que eu existo que a minha mãe é loira. Os cabelos dela já foram mais curtos, mais compridos, às vezes ligeiramente mais lisos, mas sempre loiros.
Todos os desenhos que eu fiz da minha mãe na minha infância são assim. Uma mulher loira, de olhos verdes, ao lado do meu pai, de olhos pretos, cabelo preto e bigodinho. Nos desenhos eu caprichava nas cores e nunca esquecia de fazer a roupa branca do meu pai, que era médico.
A loira e o médico de bigodinho.
O tempo passou, infelizmente meu pai morreu e minha mãe ficou viúva. Um certo dia, quando eu tinha mais de dezoito anos e já estava na faculdade, reparei na minha mãe defronte da pia do banheiro, com a cabeça toda empastelada com uma gosma marrom.
- Quer entrar, Lucia? Eu já saio, já acabei.
- Não, mãe, eu tava só te olhando.
- Olhando o quê?
- Essa coisa que você está fazendo no cabelo. Que é isso?
- Ué. Nunca me viu pintando o cabelo?
- Hã?
- Lúcia, desde que você é pequenininha que você me vê colocando tinta no cabelo. Agora resolveu reparar?
- Mãe, eu sempre vi, mas... nunca pensei para que isso servia.
- Ora. Serve para pintar o cabelo, filha.
- Você pinta... os cabelos brancos?
- Imagina, eu não tenho cabelo branco ainda. Eu pinto o meu cabelo, que é castanho, de loiro, ora.
Eu fiquei estatelada, em estado de choque. Minha mãe não era loira? Como assim? Fiquei confusa, momentaneamente decepcionada, sem chão, sem eira nem beira. Ora, uma mãe não pode fazer isso com uma filha. A imagem que fazemos das nossas mães na infância é das coisas mais sagradas do universo. Aquilo foi para mim uma das mais terríveis revelações da minha vida. Vivi dezoito anos com uma mãe loira, me vangloriava de sua loirice para Deus e o mundo, e um dia, sem mais nem menos, descubro que tudo aquilo é mentira? Minha mãe, uma loira falsificada? Céus, traumatizei. Meu mundo caiu.
- Mãe. Tá brincando que você não é loira.
Ela deu um longa risada.
- Claro que não, Lúcia! Que idéia! Eu pinto o cabelo de loiro desde o dia que conheci seu pai. Foi assim: eu soube que ele gostava de loiras, e, como eu estava interessada nele, pintei. Nos conhecemos, ele gostou de mim e me pediu que eu fosse sempre loira, pois dizia que combinava com meus olhos. Agora acho estranho não ser mais loira. Então eu pinto.
- Mãe do céu..
Ela dava risada.
- Tá impressionada, é?
- Muito.
- Eu acho que tenho alma de loira, filha. Não custa nada dar uma forcinha para a natureza.

terça-feira, 11 de outubro de 2005

lúcia, a negociadora



O Zé resolveu trocar o carro dele, ou melhor, o que sobrou do carro dele depois de anos de uso. Fomos até a loja para comprarmos um igualzinho, mas mais novo.
O vendedor insistia em outros modelos, a gente segurando a mão – a prestação ia ficar cara demais. Homens gostam de carro, o vendedor sabia disso. Assim, ele deu um jeito e pimba, me neutralizou com um cafezinho e levou o Zé para a ala dos carros bacanas para a lavagem cerebral. Provavelmente ele dizia que se o Zé comprasse um carro melhor, ia ter mais sucesso, status, fama. Só não falou que o Zé teria mais mulheres porque eu voltei rapidinho e me prostrei ao lado, feito a ... a madre superiora
Os olhos do Zé começaram a brilhar diante daquelas maravilhas. Eu resolvi que precisava fazer alguma coisa.
- Não, não... – falei muito alto – eu não gosto desse carro ai. É pequeno, apertado, e essa cor é horrível – declarei, categórica.
Sabe, quando a gente tem certeza absoluta de uma coisa? Eu, naquele momento e naquela loja tive certeza absoluta que o Zé estava sendo ludibriado. Hipnose pura.
- Como a senhora não gosta? – falou o homem, sem graça – esse é o melhor carro da marca.
Fiz uma cara de desprezo e percebi o pânico do Zé. Eu não entendo nada de carros.
- O similar da marca concorrente é mais barato, é maior e tem mais acessórios, moço - arremedei.
Olha, eu falei tão sério que o homem deu um passo pra trás. Ele não percebeu que aquilo era apenas um modo de salvar o Zé e nossa família da falência.
- Ah, é? Quais acessórios que tem a mais e quanto custa o tal carro da concorrência, senhora?
Eu não tinha a menor idéia. Na semana anterior eu tinha ido com o Zé numa outra concessionária que era carésima. A resposta deveria ter sido “sei lá”, mas tive vergonha de admitir. Olhei para o Zé. Ele estava estático, hipnotizado.
- Custa dez por cento a menos e eles me dão trio elétrico.
Como se eu soubesse o que é isso. Bom, ao menos sei que é vidro elétrico, alarme e alguma coisa elétrica a mais. Seria direção hidráulica? Rádio? Tomada para secador de cabelo? Ou um caminhão de música?
O homem pigarreou.
- Humpf. Posso estudar – ele pensou um pouco e declarou - posso dar rodas de liga leve, senhora.
O que seria isso?
- Mas o carro da concorrência é maior, muito maior, moço - continuei, mudando de assunto.
- Hum, eu arrumo da cor que a senhora quiser.
-Ah, mas eu gosto mais do modelo deles. É mais bonitinho.
- Eu dou os tapetes grátis.
Eu não sabia mais como me livrar dele. O homem era muito chato.
- O porta malas é mínimo – eu argumentei, abrindo a porta de trás – não cabe nem duas malas e...
- Os parachoques, senhora. Eu faço da mesma cor do carro.
Olha, eu não queria aquele carro e nem tinha reparado em parachoques. O que eu queria era me livrar do vendedor. Acho que foi por causa disso que fui tão categórica e tão definitiva. E justamente por causa daquela minha certeza que o homem percebeu que aquilo não era brincadeira e começou a liquidação.
- Você não entendeu, moço – eu falei, já me levando a sério – eu não quero esse carro. Eu vou comprar o outro. Da concorrência.
- Um momento – disse o homem – eu já volto, um minutinho.
O Zé me olhou.
- Pirou? Que carro é esse que você “viu” e que é tão melhor? Mas está ótimo, ótimo, lúcia, continua. Está uma maravilha isso.
- Zé, eu que pergunto. Você está maluco? A gente vai se endividar até a alma.
- Shiu, olha ele ai.
O homem me olhou e sorriu.
- Senhora. Senhor. Falei com o gerente. Faremos mais barato que a concorrência.
Levamos um susto. E não era só isso.
- E, além dos parachoques, do trio elétrico, dos tapetes, das rodas de liga leve e da cor que a senhora quer, daremos ainda insulfilm. E a primeira parcela só mês que vem.
Foi quando eu entendi. É assim que deve funcionar um método de barganha. Os verdadeiros métodos de barganha acontecem quando a pessoa do lado de lá, como eu, não querem de modo algum o produto. Acho que eu nunca negociei tão bem, o Zé até me elogiou. Mas aquilo não foi negociação, foi realidade. Assim que eu vejo os atores de teatro, os profissionais, os escritores, os artistas. Muitos profissionais ‘representam’ e não conseguem vender nada. Os verdadeiros, os legítimos, não barganham.
São.
A autenticidade está ai, na cabeça de quem faz.
Bom, o Zé comprou o carro. Agora temos que negociar a dívida...

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

a gincana da crônica



A editora da revista me escreveu no começo da semana passada. Será que eu poderia escrever sobre meu primeiro sutiã até quarta feira? Seria uma matéria sobre crianças pré adolescentes, sobre quando é a hora certa para fazer isso ou aquilo.
Claro, dona editora. Oba, publicação, pensei, animada. A única maldade é que o texto era pra ser curtinho. Eu gosto de me estender.
Bom, na quarta no final da tarde, eu com a crônica prontinha quando chega um e-mail da moça. Toda cheia de desculpa. Eles sentiam muito, mas cancelaram a minha participação pois o colaborador do sexo masculino tinha desistido. Mil desculpas, blá, blá, blá.
Ô coisa. Droga.
Fiquei naquela sem graceza sem saber o que fazer, lendo e relendo “... tivemos problemas com nosso colaborador do sexo masculino e precisamos cancelar...”
E o que eu faço com essa mini crônica de sutiã?
Responder ao remetente, cliquei. “Olha moça”, argumentei, “e se eu arrumar um colaborador do sexo masculino, paulistano, que escreva crônicas bárbaras e que tope escrever ainda hoje?”
“Você pode tentar”, ela escreveu em seguida, “mas não damos garantia de publicação, pois não conhecemos a pessoa. Porém, se ele entrar, você entra. O tema para o sexo masculino é pêlos. Os primeiros pêlos”.
Uma luz no fim do túnel. Era só achar um colaborador do sexo masculino, paulistano, que escreva crônicas e que topasse escrever sobre pêlos ainda naquela noite. Hahahaha. Impossível? Nunca!
Nada cai do céu, diz minha mãe, a gente tem que ir atrás. E como obviamente um colaborador do sexo masculino, paulistano, que escreva crônicas e que topasse escrever sobre pêlos naquela noite não cairia mesmo do céu, era melhor ir a luta.
Quem eu chamaria? Obviamente eliminei os amigos escritores famosos. Uma coisa dessas, que é legal mas que beira um... mico, é só para gente como eu, uma escritora sem lombada. Foi quando me lembrei do meu grupo de escritores de blogs, os e-néditos (link ao lado). Ora, gente que escreve em blogs tem rapidez, pique e boa vontade. E embora a linguagem da internet seja o máximo, os blogueiros adoram dar uma escapadinha para o papel.
E-néditos, aqui vou eu, pensei. Olhei a lista. Bom, retirando as mulheres e os homens dos outros estados ou cidades, cheguei no Pecus e no Jayme. Eu estava achando aquilo muito engraçado. Além disso, tive certeza que tanto um como o outro poderia escrever muitíssimo bem sobre pêlos, mesmo sem saber se eles são homens peludos ou não.
O Pecus me deu o telefone dele num email uma vez, mas eu não encontrava de modo algum. No meio da procura, achei o telefone da Anna, a mais animada das leitoras.
- Alô! Anna, aqui é a lúcia, do “frankamente...”. Preciso da sua ajuda.
Ela se animou toda. O clima era de gincana.
- Uau, o tema é ótimo, Lúcia! E eu tenho o telefone do Jayme, vamos ligar já.
Achei o Jayme, esbaforido, quando já era noite. Parecia que ele estava numa academia, ou no meio de uma maratona.
- Olha que legal. Claro que eu topo. Pêlos? Genial pêlos – ele estava tranquilíssimo – Já tenho um monte de idéias.
- Jayme, você pode escrever hoje?
- Posso, ora. Vou voltar para o escritório e quando acabar eu te mando. Peraí.
Ah, por isso que é bom ser amigo de blogueiro. E, cá entre nós, o Jayme escreve muito, mas muito bem.
E plim, as nove e meia chegou um email. Eram os pêlos do Jayme. Li, adorei. Eu estava salva e praticamente publicada. Só faltava a moça gostar, o que, obviamente, aconteceu.
E ontem fizemos a nossa dupla na revista. Lúcia, a colaboradora do sexo feminino e Jayme, o colaborador do sexo masculino.
Ahahahaha.
Uma questão de peitos e pêlos, que não caem do céu.

domingo, 9 de outubro de 2005

nelas, uma questão de peitos

(Iêba, hoje fui publicada na Revista da Folha de São Paulo - uma crônica curtinha, curtinha, mas que me deixou toda feliz)

- Pai, vem ver! – falou minha filha quando o Zé entrou em casa – comprei um sutiã lindo!
Ele olhou assustado. Nossa. Opinar sobre o primeiro sutiã da filha?
Mas hoje é assim. Fala-se livremente sobre roupas íntimas, sobre o corpo, silicones e plásticas. É normal.
Quando eu era menina era bem diferente. Imagine mostrar um sutiã para meu pai. Além de eu ser uma menina tímida, pais não se metiam nesses assuntos.
Um dia minha mãe me olhou e se assustou. “Ichi, você já precisa usar sutiã, filha!”. Compramos um modelo bojudinho, de abotoar atrás, com rendinhas. Segundo a vendedora, era o modelo menina-moça. “É bom, segura bem”, declarou minha mãe, analisando o produto. No dia seguinte, vesti. O sutiã era bonitinho, mas a blusa da escola era de tergal, meio transparente, e marcava tudo.
Olha, pode parecer estranho, mas eu preferia mostrar meus peitos a exibir o tal sutiã modelo menina moça que me segurava tão bem. Sabe quando você implica com uma coisa e ela parece maior do que é? Aquele sutiãzinho virou a coisa mais vexaminosa do mundo. Eu andava encolhida, agarrada nos cadernos, me sentindo uma verdadeira stripper. Engraçado, nunca me senti tão... nua.
Um dia, esqueci. É, tudo passa nessa vida.
- Devia era ter vergonha desses seus peitos – falou a minha filha, quando contei essa história.
- Hã?
- Olha que horror, mãe. Coloca um silicone, vai. Não tem sutiã que resolva o seu caso.

sábado, 8 de outubro de 2005

o feriado



Hoje começa uma espécie de feriado. É a semana do saco cheio, o feriado com o nome mais feio do ano. O mais esquisito é lembrar que bem no meio dessa semana existe o dia de Nossa Senhora Aparecida, uma santa mulher.
Uma santa e um saco cheio, não é estranho?
Mas o nome tem uma explicação. Como é quase final de ano, os alunos estão com ‘saco cheio’ de estudar e o feriado da Santa vem bem a calhar. Por causa disso, muitas escolas dão a semana toda de folga para os alunos descansarem.
O final da tarde de ontem foi o caos. O maior trânsito, aquele corre-corre de gente querendo fugir de São Paulo, aquela zona que precede o marasmo da cidade da semana que vem.
Obviamente que nós não viajaremos. Acho muito estranho ver famílias que não agüentam um fim de semana prolongado e precisam ir para algum canto. Eu sou ao contrário. Adoro ficar em casa sem fazer nada.
Isso vem da minha infância, eu acho. Quando eu era menina e meu pai era vivo, nós nunca viajávamos nos finais de semana ou feriados. Meu pai não gostava. O que hoje é estranho para uma família, para nós era normal. Viajávamos nas férias, para visitar a casa dos avós no interior. E só.
Bom, houve uma época quando, depois de muita insistência da minha mãe, ele comprou um apartamento na praia. Mas ele abominava ir para lá, achava a maior chatice sair do conforto de casa para um lugar estranho, com comida estranha, espaço estranho, cama estranha. “Para que?”, ele perguntava, “está tão bom aqui!”
Minha mãe argumentava. “As meninas, o verão, a praia, ora, Dito! Crianças precisam de férias, diversão, não podem ficar trancadas em São Paulo”. Ele ia, mas ficava no apartamento lendo livros. Praia? Só de longe. Muito calor, a areia incomodava.
Ficamos com o tal apartamento apenas um ano e duas estadias. Minha mãe desistiu, era mais fácil mover uma montanha do que meu pai para a praia nos finais de semana.
Já o meu avô nunca tirou férias na vida. Nasceu, cresceu, virou médico, casou, teve filhos, netos e não me lembro de ouvi-lo reclamando de necessidade de descanso. Aliás, acho que não tirar férias faz bem. As pessoas que tiram férias são sempre tão nervosas...
Sempre me lembro deles antes dos feriados, quando penso que não vou sair daqui. Mas o que me impressiona é que daquele tempo para cá as pessoas cada vez mais se animam de viajar nos feriados. O descanso fora de São Paulo foi muito propagandeado ao longo desses últimos trinta anos pela indústria do turismo e pelos especuladores imobiliários do litoral, da serra e do campo. As pessoas foram convencidas de que, para descansar, precisam viajar. Sofremos uma lavagem cerebral, eu acho. É fácil convencer pessoas de coisas esquisitas, ainda mais quando é colocado muito dinheiro na história.
Por outro lado, conhecer lugares é muito gostoso. Quem não gosta de peregrinar pelo mundo, conhecer países, ver povos e pessoas diferentes? Eu adoro, e as melhores viagens que fiz são assim. Porém, por causa do meu pai e do meu avô, eu sinto a maior culpa nessas viagens. Acho estranho ficar a toa no meio de um monte de gente trabalhando.
O mais maluco é que hoje em dia não basta apenas sair de São Paulo. Você tem que ir e fazer coisas para se desestressar. É uma trabalheira sem fim, essa coisa de descansar. Além de fazer ginástica, andar, comer as comidas certas, fazer os esportes adequados, ter monitores e cumprir as programações turísticas do local, você precisa relaxar. E com tanta programação, viajar cansa pra burro. Depois de uma maratona dessas, é preciso tirar férias para descansar. E como eu quero descansar, nesse feriado eu fico por aqui, decidi.
- Ô mãe... - falou minha filha agora pouco no café da manhã - Sério que a gente vai micar aqui de novo no feriado? Droga.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

a peça e a prostituta


Era uma peça do Nelson Rodrigues.
Uma das personagens era uma prostituta. A cena mostrava a mulher implorando a um homem que ficasse com ela, mas ele não queria de jeito nenhum.
A moça, uma ótima atriz, se esfregava, se insinuava, se agarrava nas roupas do homem e expunha toda sua carência, não se importando com a humilhação explícita. Se jogava no escuro e dava de cara com as paredes, berrando, gritando, urrando.
Tipo desesperada.
Bom, sabe como é mulher quando dá para ser escandalosa.
O homem se mantinha impassível. Ele não queria aquele amor, era demais, era exagerado. Acho até que, na verdade, ele nem entendia a moça. Estava em outro lugar, em outro tempo, em outro pensamento. Isso acontece muito: às vezes a gente fala com as pessoas sem perceber que elas estão muito, mas muito longe.
Essa foi uma das cenas mais fortes que já vi. Tinha uma violência escancarada, nua, vulgar. Vi eu mesma, vi minha mãe, minha avó, minha bisavó, vi todas as mulheres do mundo berrando, gritando, implorando, nas nossas eternas carências de afeto. Vi como somos detestáveis, vi como nossas paixões são vexaminosas. Ali, naquele palco e naquela prostituta, eu vi o contrário de tudo que me ensinaram.
Olha, gente. Prostitutas somos todas nós que queremos ser adoradas. Prostitutas são todas mulheres do universo nessa nossa irritante ânsia de endeusamento. Toda mulher carente é meio puta e se vende por muito pouco. Muito, mas muito pouco.
Perdões, mas é verdade. Convenhamos.
Tive arrepios. Lágrimas nos olhos.
Acho que é a carência que nos faz querer mais, sempre mais. É como se precisássemos engolir todo o alimento que nos faltou durante décadas e décadas de gerações. O mais maluco é que sabemos isso desde pequenas. A virtude do sofrimento feminino vem de lá de trás, das avós e bisavós. Dizem que grandes mulheres agüentam os percalços, as afrontas, a solidão, a omissão. Mulheres sofridas são dignas. Carregamos esse peso ancestral na nossa alma e na nossa carne.
Mas hoje querem que aprendamos o contrário. Os tempos mudaram, as mulheres devem ser livres, não podem depender de homem, nem de casamento, nem de amor. Nos achamos super inteligentes, somos as maiores metidas com nossas verdades. Sabemos que podemos ter prazer e precisamos consumir esse prazer. Caramba, e como nos mandam consumir este maldito prazer. Acho que é por isso que sofremos tanto.
Um dia saímos das teorias, não agüentamos ficar sozinhas e começa a liquidação. O tempo passa e cada dia estamos mais em oferta, fazendo qualquer negócio por um carinho, por um amor.
Afinal de contas, como era mesmo? É para sofrer ou ser feliz?
Na peça ou na vida, gente, não é facil ser mulher.

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

o amigo


Domingo.
Estávamos todos em casa quando tocou o telefone. O João atendeu, era um amigo dele. Logo em seguida ele apareceu na sala.
- Mãe.
- Fala.
- Me leva na casa do Daniel? Ele me ligou e me convidou para passar a tarde com ele.
- Levo. Se arruma.
Saímos. Chegamos na casa do menino e tocamos a campainha. Apareceu a mãe com cara de susto.
- João, você por aqui? – exclamou.
Achei estranho, parecia que ela não sabia do convite do filho. O menino surgiu na porta.
- João? O que você veio fazer aqui?
O João olhou para ele, atrapalhado.
- Você não me convidou, ô Daniel?
- Eu não.
Eu e a mãe do Daniel nos entreolhamos, rindo.
- Ei – disse o João, estranhando – Daniel, não foi você que ligou agora há pouco para mim lá em casa?
- Não.
- Nossa... – ele disse, assustado - eu achei que estava falando com você...
A mãe do Daniel interveio.
- Não tem problema. Você confundiu de amigo, mas a gente não está fazendo nada. Entra e fica ai com o Daniel, João, olha que delícia – ela segurou a mão do João e já ia levando-o para dentro – você já está aqui mesmo...
O João, confuso, olhava para o Daniel, para a mãe, para mim. Eu também concordei, afinal.
- Fica aí, filho. Não tem problema, você confundiu. Eu te pego mais tarde.
Ele olhou bravo para todo mundo.
- Vocês não estão entendendo, pô! O problema não é ficar aqui ou não. O problema é que tem algum amigo meu me esperando em algum lugar, e eu não tenho a menor idéia de quem seja!
Óbvio.
Que absurdo de mãe que eu sou. Falo tanto de boas maneiras e cometo uma gafe dessas. Imagine deixar um amigo do meu filho plantado que nem árvore esperando por ele, um amigo que ele nem sabe quem é!
Ele e o Daniel entraram na casa, pegaram a agenda de telefone e ligaram para os amigos, um por um, até descobrir quem esperava o João.
Era o Joaquim.
- Mãe, vamos logo – ele me pediu, aflito.
E assim corremos para a casa do Joaquim. Que, claro, segundo um pedido do João, não podia saber de nada.
Óbvio.

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

o menino e o prato de comida


Vou falar sobre um assunto que me persegue há anos. A fome. Não a fome de comida, mas sobre uma fome que vem de lá de trás, do passado. Uma fome que não passa nunca.
Lembro de um menino que trabalhou com o Zé. O Zé tem um escritório grande, com muitos sócios e muita gente trabalhando. Hoje em dia os funcionários reivindicam muitos direitos, passes, vale alimentação, férias, plano saúde. Isso custava caro para a empresa, e eles procuraram algumas soluções mais baratas e alternativas. Resolveram que melhor que dar “vale refeição” era contratar uma cozinheira para fazer um belo almoço para todo mundo lá mesmo no escritório. A cozinha era espaçosa e eles tinham uma grande sala de reunião que serviria de refeitório.
Ficou estipulado que todos comeriam junto, secretárias, estagiários, funcionários, sócios. Seria um almoço democrático, como uma grande família.
Esse rapaz era o boy. Era um menino esforçado, calado e bastante tímido. Ficou extremamente envergonhado de ter que almoçar com os patrões, mas não havia outro jeito.
A mesa era colocada todos os dias. Salada, carne, arroz, feijão, farofa, batatinhas, macarrão. Era bastante gente e, portanto, bastante comida. O menino provavelmente nunca vira uma mesa assim, tão farta e totalmente grátis. Aqueles almoços eram, para ele, verdadeiros banquetes.
O Zé conta que no início ele era bastante comedido, mas conforme o tempo passava ele comia cada vez mais. Um, dois, três pratos imensos, montanhas de comida.
Bom, o escritório tinha um depósito ao lado da cozinha. Um dia o Zé entrou lá para pegar alguma coisa e tropeçou. Era o menino, no chão, deitado.
- Opa. O que você faz aqui?
- Eu...eu estou com dor de barriga - o menino falou, envergonhado - não consigo nem ficar em pé, acho que comi demais.
O Zé ficou impressionado. Para que comer tanto e ficar quase doente? Ele deveria comer menos, sem tanta pressa, disse ao garoto.
Mas acontece que aquilo não era apenas fome, e o menino não comia para se alimentar. Ele comia para alimentar sua família, comia para preencher o vazio da mesa da sua casa. Aquilo uma fome ancestral, uma fome que seus parentes carregavam durante anos. Uma fome de cada dia, uma fome de lá dentro, uma fome de medo. Isso é muito além da nossa fome diária. O menino comia e não agüentava ficar em pé.
O menino comia e quase morria.
Eu penso que todos temos nossas fomes ancestrais de diversos tipos de alimento. Fomes físicas, espirituais, de amor, de paixão, de convívio, de riso, de alegria, de entendimento, de empatia. Fome de sermos queridos, fome de sermos amados. A fome nos torna carentes, aflitos, famintos. A fome nos torna crianças assustadas.
E quando temos chance, engolimos todo o alimento que conseguimos e também precisamos nos deitar nos nossos depósitos, no escuro, para esperar aquela doída digestão.
Olha.
É a mesma coisa. A mesmíssima coisa.

terça-feira, 4 de outubro de 2005

sim! não! sim! não! sim!



- Diga não, vote contra! – falou uma voz no rádio. E sabe o que a voz defendia? O “sim” para a venda de armas.
Eu queria fazer algumas considerações sobre esse negócio do referendo das armas.
Primeiro que eu não consigo falar “referendo”.
Sai “reverendo”.
E me dá vontade de fazer aquele gesto de cumprimentar os padres e sacerdotes.
Benção, reverendo.
Mas não é isso que eu ia falar. O problema do referendo é a pergunta.
A pergunta está errada, confusa e mal formulada. Por causa disso, para mim, a resposta que temos que dar está ao contrário. Eu não consigo dizer com clareza se estou a favor ou contra, e tenho certeza que muita gente vai referendar o oposto.
Olha. Alguém me explica porque, se eu “não” quero armas, eu tenho que falar “sim”? E porque o “sim” é o número dois e o “não” o número um e não ao contrário? Ah, desculpa gente, mas sim, o positivo, tem que ser o um, e o não, o negativo, tem que ser o dois. Começar com um"não” é uma coisa muito baixo astral.
Olha, pode parecer que o que digo é bobagem, mas é irritante essa coisa ao contrário desse referendo. Ao invés da gente apenas responder um sim ou um não, a gente sempre precisa explicar. Eu me confundo toda. Uma vez eu disse que eu desconfio de tudo que eu não entendo, e vou dizer mais - eu também desconfio de tudo que eu confundo. A pergunta desse referendo, para mim, foi feita para confundir. Ou é muito mal formulada ou a pessoa que escreveu estava com má intenção. Se eu não quero armas, deveria falar não, certo?
Errado. Se você é contra as armas, tem que falar sim. Sim ao “desarmamento”.
Escuta, chega. Isso para mim é uma enorme confusão.
Atenção: sou contra a venda de armas.
E benção, reverendo.
(obra, uma canja do zérramos - obrigada, Zé, valeu!)

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

mas o que é bip?



- Bip? Mas o que é bip?
Eu e a Luciana, minha filha, estávamos no consultório da médica. A pediatra dos meus filhos, depois de tantos anos ficou minha amiga, e eu ainda levo os meus filhos (já não tão crianças) lá quando eles tem algum probleminha.
Ela consultando, eu fazendo aquele monte de pergunta. Não adianta, os meninos já estão adolescentes e eu ainda me comporto como mãe de recém nascidos. Faço milhões de perguntas repetidas, não presto atenção nas respostas, um vexame. Uma hora, conversa vai, conversa vem, ela encerrou o assunto.
- Bom, é isso. Qualquer coisa me chame no final de semana, lúcia.
Foi quando eu me lembrei. A última vez que eu liguei para um médico durante a noite foi em 98, ou seja, sete anos atrás.
- Mas. Como é que te liga?
A médica estranhou.
- Ué. Telefona.
Explico. Desde que os meninos nasceram até 98, eu sempre liguei para um bip. Por um instante tive uma dúvida. Ainda existe bip no mundo?
- Ligar no... bip?
Ela caiu na gargalhada.
- Bip? Claro que não, né Lúcia! Há anos que eu tenho um celular só para pacientes. Se puder atendo na mesma hora. Senão você deixa um recado.
Foi quando a Luciana nos interrompeu.
- Mas o que é bip?
Eu e médica nos olhamos, confusas. A quantidade de vezes que eu liguei para bips por causa da Luciana foi enorme, e ela vem perguntar o que é?
A médica explicou, paciente.
- Nani, era um aparelhinho que a gente usava antigamente para os pacientes acharem os médicos. Não tinha celular quando você nasceu.
- Como funcionava?
- Facílimo. Era um aparelhinho pequeno que a gente carregava aqui, no cinto, que quando era chamado apitava. Se você queria falar comigo, ligava na central do bip, deixava seu recado e telefone com a moça. A moça da central me bipava, e eu lia no bip o recado. Daí eu tinha que achar um telefone e ligava para você. Eu andava com um monte de fichas de telefone.
A Luciana ficou boquiaberta.
- Que zona. E isso era “facílimo”?
Eu e ela nos olhamos e começamos a rir. Realmente, pensando bem, era uma coisa para lá de complicada, que envolvia telefonemas, apitos, uma atendente, uma central, orelhões, fichas. Praticamente um telégrafo antigo.
Mas a maluquice maior é que faz muito pouco tempo, mas muito pouco mesmo, que os bips todos praticamente sumiram do mundo. E o mais maluco de tudo é que, nesses sete anos, nem percebemos.
O homem, na verdade, precisa se comunicar. Cada novidade inventada que acelera e facilita qualquer comunicação é imediatamente aceita. Vem de lá de trás, dos primórdios da civilização, essa necessidade de interagir.
E é como a Cláudia, da Gruta da Montanha, disse nos comentários do post abaixo.
- ... e a próxima geração vai dizer algo como: mas vó, messenger é coisa antiga, o lance agora é falar ao vivo. E vai ser uma revolução!

sábado, 1 de outubro de 2005

a webcama



Sabe uma coisa que eu acho totalmente absurda?
É a gente ainda não poder usar a televisão como um computador, para, por exemplo, abrir um site.
Acontece toda hora. Eu estou assistindo TV e alguém me manda abrir um site para conhecer melhor o produto que está sendo anunciado, para participar de um programa ou para conhecer alguma coisa. Ontem a noite foi exatamente isso. Eu estava deitada, toda tranqüila na minha cama vendo TV antes de dormir, quando o apresentador disse.
- Para maiores informações, acesse o nosso site no www. ...
Tive vontade, mas olhei ao redor. Só a TV. O computador fica lá no andar de baixo, dentro do escritório, trancado a sete chaves. Tsc, desisti. Nem pensar que eu sairia dali. Será que tem gente que sai da tv, vai até o micro, liga e abre um site?
Outro dia, numa conversa com o Álvaro, meu amigo, ele me disse que quase toda noite, antes de dormir, ele morre de vontade de abrir os e-mails.
- Como assim?
- Eu deito, fecho os olhos e penso: hum, será que chegou algum e-mail pra mim?
- E você vai lá ver?
- Claro que não. O micro fica lá longe, na outra sala, precisa ser ligado, demora. Daí eu desisto. Mas sério, eu dormiria muito melhor se abrisse meus e-mails antes de deitar.
Não acho nada esquisito isso, gente. No mundo de hoje, ou a gente se virtualiza e aceita essas novas formas de comunicação ou é atropelado no primeiro acesso, como um dinossauro velho. É importante lembrar que a Internet é nosso telefone, e que o rumo das coisas, queiramos ou não, é termos tvs-micros, além de minis-tvs-micros, que serão os substitutos dos nossos celulares.
Aliás, adorei a idéia do Álvaro. Eu também adoraria pegar meus e-mails na cama.
- Webcama – ele declarou, animado – precisamos bolar uma coisa assim, ou seja, uma cama onde é possível pegar e-mails. Uma cama conectada, lúcia.
- Uma reles televisão resolveria isso, Álvaro. E o teclado poderia muito bem ser resolvido num reles controle remoto. O Zé me contou que ficou num hotel em Miami onde um dos canais era a Internet, e o controle remoto tinha um teclado. Por isso, Álvaro, é questão de meses para adquirirmos nossa versão da tua webcama. Calma, não vai demorar para você pegar os seus e-mails deitado.
Animada com a idéia e me sentindo a maior moderna, contei para os meus filhos minhas conclusões.
- Hã? Abrir e-mail, mãe?
- É, na cama. Webcamas. Não é genial?
Ele suspirou, cansado.
- E-mail é coisa do passado e logo vai acabar, mãe... Coisa mais demorada, de velho, só tem spam. A gente quase não usa mais, eu nem abro mais meu e-mail... – disse o Chico, no alto dos seus 16 anos – é só messenger, torpedo, não percebe?