segunda-feira, 31 de outubro de 2005

o mordomo



Elas eram duas tias bem velhinhas e solteiras. A festa de natal era sempre na casa delas, e para elas aquilo era o acontecimento do ano. Acho que elas se sentiam muito sós naquele dia-a-dia de aposentadas, nunca se casaram e tinham uma velhice muito solitária. Mas não completamente solitárias.
Elas tinham um mordomo.
Hummm.
Um mordomo.
Moravam com ele em casa. As pessoas comentavam.l Quem seria, realmente, aquele homem que as acompanhava há tantos anos? Um amante? Namorado? Ele era um homem calado, digamos que até bonito. Elas nunca esclareciam nada, diziam somente: ele é o mordomo. Ponto final.
Em alguma época da vida ele deve ter sido realmente um mordomo, claro, mas o problema é que nunca ninguém da família o viu em ação. Bem, um dia aquele senhor europeu, alto, magrinho, elegantérrimo, com seus olhinhos azuis e cabelos brancos, ficou muito doente. Teve um sério problema de reumatismo que foi, pouco a pouco, o impedindo de se movimentar. E, de mordomo que as servia, passou a ser um morador da casa a ser servido por elas.
Elas o tratavam como se fosse uma boneca. Davam banho, trocavam a roupa, penteavam, davam comida e falavam com ele como se ele fosse um bebezinho. E ele, impassível, sempre. Não se incomodava, mas não se desprendia de sua altivez.
Assim são os mordomos.
Bom, nestes natais elas organizavam tudo. Para elas uma festa de família era uma coisa muito séria e cerimoniosa e alguém tinha que estar no comando. Montar a árvore, tirar as louças antigas dos armários, buscar os faqueiros de prata no cofre do banco, definir o menu, escolher as músicas, fazer a lista de convidados, definir os lugares na mesa, tudo, tudo era minuciosamente planejado. Todos os anos a mesma coisa, o mesmo ritual estranho, indecifrável e esplêndido que são estes natais em família.
Como as tias levavam muito a sério a festa de natal, e como uma verdadeira festa de natal tinha que ter um Papai Noel, elas escalavam o velhinho para esse papel. Ele não tinha como retrucar, estava nas mãos delas. Assim, colocavam o mordomo numa poltrona, vestiam a roupa, enchiam de travesseiros na barriga, colocavam botas e o maquiavam. Na verdade, faziam a maior farra com ele. Do seu lado colocavam um grande saco de presentes.
Ele, impassível. Imóvel. Mordomo até o fim.
Os anos se passavam, os natais também e ele de lá, fazendo às vezes do nosso Papai Noel. Misterioso, e até um pouco... diabólico.
Um dia ele morreu. Elas ficaram tristes, mas não tanto assim, afinal, ele estava dando trabalho. O mistério nunca foi desvendado, quer dizer, até hoje não sabemos se ele realmente foi mordomo delas um dia. Mas é bom uns mistérios em família. Dá assunto nas festas.
No primeiro natal depois da morte elas disseram que continuariam mantendo toda a programação, tudo igualzinho, só que sem o mordomo.
Mas, quietinhas, resolveram que, apesar dele ter morrido, elas tinham que manter a imagem do Papai Noel na sala, pois era parte fundamental do ritual. Impossível um natal sem um Papai Noel. Não passou pela cabeça delas que as pessoas pouco se importavam com a “imagem” que elas inventaram do “Papai Noel” nos outros natais. Todos ficavam mais intrigados com o mordomo enigmático ali dentro, petrificado feito uma estátua do que com a idéia do Papai Noel.
Assim, elas pegaram a fantasia, as botas, os travesseiros e uma máscara de plástico e montaram uma espécie de “boneco Noel”. Acho que elas pensaram que, assim que a família chegasse, todos ficariam muito felizes de ver que ainda existia um Papai Noel na celebração.
Não foi por mal. Tenho certeza.
Bom, a família foi chegando aos poucos.
E cada um que entrava e olhava para aquele canto dava um berro de horror. Pois parecia, na semi escuridão da sala, que elas tinham retirado o mordomo do caixão para revivê-lo ali, em plena noite de natal. Era aterrorizante. Um defunto em plena sala de estar. Ninguém percebia que era uma máscara, pois afinal, como ele nunca falava nada, nunca ninguém olhou realmente para a cara dele.
Uma das minhas primas minha gritou, algumas crianças choramingaram, ninguém entendia a graça mórbida daquilo. Era uma tensão quando tocava a campainha, pois lá vinha outra vítima.
Minha mãe resolveu ficar de uma vez na porta da entrada para advertir as visitas. “Cuidado”, ela avisava, “assusta, mas é boneco”.
Elas ficaram bastante decepcionadas. Ficamos mudos, o jantar foi tenso, com aquele homem ressucitado da tumba. Nós continuamos comendo nos lugares programados, ganhando presentes e cantando, mas tudo era assombroso com aquela alma penada rondando a sala.
Não era para dar medo ou ter graça, como achamos no dia seguinte, rindo dessa maluquice delas. Na verdade, para elas, a festa de natal, importante como era, não poderia mudar. Só seria boa se fosse completa, e manter a “tradição” era muito mais importante do que a morte do mordomo. Numa certa época ele pode ter sido um bom mordomo, ou, quem sabe, até um amante misterioso. Mas naquelas festas ele era somente um recheio de Papai Noel, sem mistério algum. Bom, foi a última aparição dele. Nos anos seguintes a cadeirona ficou lá, vazia, esperando por ele, que nunca mais voltou.
Mas bastava olhar para ela que, brrr, todo mundo via a imagem do mordomo.
Uia. Um mordomo.

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