terça-feira, 1 de novembro de 2005

o pilar da dona Wanda



- Que bom que você chegou – falou a minha mãe – A Wanda já me ligou umas dez vezes. Vamos? – completou, pegando a bolsa e me puxando para fora da casa dela.
Entramos no elevador.
- Que andar ela mora, mãe?
- Segundo.
Minha mãe me ligara uns dias antes. A vizinha de baixo estava reformando o apartamento e ela ficara impressionada.
- Deusmelivre. A maior doidice. Você precisa ver.
Tentou me explicar, sem sucesso. Diante das minhas perguntas, resolveu que eu deveria ir lá e olhar com meus próprios olhos. E obra em prédio é sempre um sucesso. Todos vão fuxicar, não entendo porque as pessoas acham que espaços em construção sempre são públicos.
- Daí você vê se os arcos da sala. Parece uma caverna, uma coisa fantasmagórica, filha. Ela fechou todas as janelas. Vai gastar uma fortuna de conta de luz.
Assim, tive que largar o escritório na hora do almoço para visitar a obra da dona Wanda. Ela adorou a visita, estava toda exibida para exibir seu talento arquitetônico.
O problema é que a dona Wanda se achava uma verdadeira artista. Além de arquiteta (contou que era sua terceira obra), ela fazia esculturas e pintava quadros. Gastou mais de meia hora me mostrando as pinturas que estavam empilhadas no hall por causa da obra.
Explicou que passou por diversas fases na carreira artística: palhaços chorando, paisagens de montanhas nevadas, vasos de flores e a mais incrível e horrível, da qual se vangloriava: a fase abstrata. Pareciam vômitos, os quadros dessa fase. O mais impressionante era sua assinatura: um enorme “w”, que se parecia com dois enormes seios.
Como os dela.
- Agora, tcham-tcham! – ela disse, levantando o plástico que fechava o pórtico da sala em reforma – A obra!
Levei um tremendo susto. A dona Wanda era completamente pirada. Aquela sala, que era idêntica à da minha mãe, fora transformada num tipo de porão de castelo medieval. Eram arcadas para todo lado, feitas de tijolos maciços e revestimentos de alvenarias em todas as paredes, inclusive em parte do teto. As janelas, ou melhor, o que sobrou delas, ficavam bem ao fundo dos inúmeros pilares falsos e profundos que rodeavam a sala. Uma loucura a arquitetura da dona Wanda. Eu não sabia o que falar.
- Nossa, dona Wanda, que... interessante a sua proposta.
O que leva uma mulher transformar um ótimo apartamento dos anos sessenta, nos jardins, com espaços claros e iluminados num... calabouço?
Ela estava eufórica, e eu, de queixo caído.Os desejos secretos dos imaginários das pessoas me assustam. Olhei a cara comum da dona Wanda e tive medo. Quem seria, realmente, essa mulher?
No meio da obra do cárcere, digo, da sala, a empregada entrou com um cafezinho.
- Raimundo, meu filho – ela falou para o pedreiro – Você pode parar um instante com essa quebração?
O rapaz parou de marretar e sentou no chão. Minha mãe passou a elogiar com uma voz fingida a reforma e eu olhei para os lados.
Foi quando eu vi.
Bom, o que o pedreiro estava martelando ali ao lado era um dos pilares do prédio. Ele já tinha cavado e destruído mais ou menos meio palmo para dentro e muitas das ferragens estavam expostas.
- Dona Wanda. O que é que a senhora vai fazer aqui? - perguntei, apontando o pilar.
Ela sorriu, toda exibida.
- Ah, com essa viga?
- Isso é um pilar, dona Wanda.
Ela deu uma risadinha safada.
- Hihihi. Eu sempre troco os nomes! Pois é, eu vou tirar esse “pilar” daí, ele está atrapalhando. Mas como é difícil! – ela olhou para a minha mãe – Olha como os prédios eram bem construídos na nossa época: eles colocavam até ferros dentro das paredes. Uma beleza.
Minha mãe ficou muda, eu idem. Como fazer para impedir aquela vândala de derrubar o prédio inteiro?
Comecei a berrar.
- Dona Wanda, a senhora não pode tirar isso daí! Isso é um pilar, é a estrutura do prédio! Se a senhora tirar esse pilar o prédio todo vai cair!
A mulher me olhou intrigada.
- Hã? Como assim?
- É a estrutura, dona Wanda, se a senhora tirar cai tudo no chão!
- Sério? Mas é um só... – ela argumentou.
Olhei para a minha mãe em pânico.
– Mãe, não tem nenhum engenheiro nesse prédio?
Minha mãe, que não é metida a artista nem a arquiteta e tem bom senso, percebeu a gravidade da coisa.
- Não mexe nisso, Wanda, vamos falar antes com o síndico – disse, prudentemente – ouça minha filha. Ela é arquiteta e entende de engenharia.
- É perigoso mesmo? – ela me olhou, confusa - E eu achando que era uma parede bem construída... – falou a dona Wanda, balançando a cabeça, enquanto eu ordenava ao pedreiro para parar com aquela doideira já.
Bom, depois de um tempo voltei à masmorra da dona Wanda para ver como ficou. O pilar de concreto, graças a mim, ainda estava lá, no meio da sala. Foi revestido de espelhos, uma idéia que tirou de uma revista italiana. O resto da sala naquela escuridão. Dona Wanda decorou o local em estilo indiano, o que me deixou mais confusa ainda sobre sua real personalidade.
E na hora de ir embora ela disse queria me dar um quadro da fase abstrata em agradecimento ao fato do prédio estar em pé.
Prometeu, mas nunca deu. Já essa promessa de presente, graças a Deus, não ficou em pé.

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