quarta-feira, 26 de outubro de 2005

A cozinha da tia Dorinha



- Alô. Ai é da casa da Lucinha?
Ninguém me chama de Lucinha há séculos.
- É. Quer dizer, sou eu, a Lúcia. Quem é?
A voz se animou toda.
- Oi Lucinha. Aqui é a tia Dorinha!
Tia Dorinha? Quem era mesmo a tia Dorinha? O Zé tem tanta tia, a família dele tem mais de duzentas pessoas. Falar com uma tia da família do marido, sem nenhuma dica, é judiação. Disfarcei.
- Oi tia, tudo bom? Quer falar com o Zé?
- Não, querida, quero falar com você mesmo.
- Comigo?
- Lucinha, é sobre a minha cozinha.Eu quero reformar a minha cozinha.
Pronto, entendi. Fria total. Sentei numa cadeira e suspirei.
- Ah, a senhora quer reformar a cozinha, tia Dorinha.
- Está muito velha. Quando eu comprei o apartamento os meninos ainda eram crianças, agora já vou ter um neto, imagina! E... como se chama esse acabamento mesmo dos armários?
- Fórmica?
- Isso. O acabamento fórmico está aqui desde que mudei. Imagina a velharia – ela mudou de tom – Escuta, Lucinha, você já veio aqui em casa, não foi?
- Eu... eu fui uma vez no natal, tia.
- Então diz uma coisa. Sabe aquela parede da frente da porta da copa? Aquela onde tem o calendário? Eu queria tirar aquela parede, trazer a copa para essa salinha onde está o telefone e aumentar a cozinha.
- Eu não sei, tia, porque eu não...
- Também pensei em trocar o fogão com a pia. Colocar o fogão do lado de cá e a pia do lado de lá. Daí aquela mesinha antiga que veio da fazenda ficaria do lado do fogão, na entradinha da área de serviços. O que você acha, você que é arquiteta?
Eu não estava entendendo nada. Fui na casa dela uma única vez e não sai da sala de estar.
- Acho que vai ficar bom, tia. A senhora mora ai há tantos anos e.
- Você lembra como a minha área de serviços é grande?
- Hum. Não me lembro muito bem não, tia.
- É gigantesca, não sei o que deu no arquiteto desse prédio pra fazer um negócio tão descomunal, Lucinha. Eu também queria tirar um pedaço da área de serviço para fazer uma despensa, você acha que fica bom?
- Tirar um pedaço como?
- Assim, cortar, mas tem a janela. Como eu faço com a janela, Lucinha? Eu falei com o meu Niltinho, o primo de vocês, ele mora agora lá em Porto Alegre, sabia? Ele que me disse: “mamãe, pede ajuda para um arquiteto ai de São Paulo, não pode mudar assim”.
- Tia, a janela é de correr?
- Sabe que eu nem olhei? – ela começou a rir – Hahaha. Esperai que eu vou ver e já volto.
Eu não sabia nem por onde começar. Que confusão.
- Iii, Lucinha, não vai dar – ela falou, suspirando. Eu acabei de perceber que bem ali tem meu varal. Se eu fechar, vou perder o varal.
- Ah, isso vai. Escuta, tia, a senhora não acha bom fazer um desenho?
- Ah... Eu falei com o seu Eliseu, o pedreiro aqui do andar de cima, e ele disse que não precisa de desenho. O que eu falei para ele é que eu ia ligar para a minha sobrinha para ela me dar umas dicas, isso eu disse. Eles respeitam muito mais quando a gente tem engenheira.
- Arquiteta, tia. Olha, a senhora já viu se tem pilar e prumada antes de derrubar a parede? Pilar é a estrutura do prédio.
- Vou falar com o seu Eliseu. Ele é ótimo, caprichoso. Mas olha, o motivo do telefonema é que eu queria que você desenhasse uns armários bem bonitos para mim.
- Eu?
- É. Vo-cê. Faço questão, Lucinha. Uma arquiteta, da USP.
- Ah. Brigada.
Ô meu Deus. Tava demorando.
- Que dia você pode vir aqui?
- Hummm, essa semana eu não posso, tia, uma pena. Na semana que vem eu também não posso e.
- Amanhã à tarde, que tal? Quatro horas. Isso, vem amanhã e eu faço um café e você vem desenhar os armários, está bom? Tem que ser logo que seu Eliseu começa na segunda.
- Eu...
- Lembra do endereço? É só embicar o carro que o zelador abre a garagem e você coloca na vaga dos meninos. É a vinte e dois a minha.
- Tia, eu...
- Ah Lucinha! Mais uma coisa, eu já ia me esquecendo. Que cores assim de cerâmica que você acha bonita?
- Branco, tia. Com piso preto.
- Pensei em bege, você acha bonito bege? E eu vou deixar o piso marrom mesmo, igual dessa pedra aqui. Que você acha, lucinha?
- Acho ótimo, tia Dorinha, ótimo.

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