sábado, 15 de outubro de 2005

o insulfilm e a depressão




O carro novo do Zé chegou uma semana depois da compra, por causa do emplacamento, licenciamento e colocação daquele monte de acessórios que o vendedor me deu.
Aquela coisa caipira. Saímos todos para dar umas voltas no quarteirão, felizes com a novidade, apertando todos os botões, abrindo e fechando os vidros, remexendo porta luvas e cinzeirinhos. O Zé bravo com os meninos, que entraram comendo biscoito.
- Ah. Já vão começar a emporcalhar o carro? Não começa jogando lixo, gente, por favor. Olha, novinho.
Bom, para pessoas que nem a gente, um carro novo sempre é aprovado. Acho tudo lindo, o máximo. Tive pouquíssimos na vida, é uma dureza comprar. Mas aquele carro estava estranho, diferente de todos os outros que já andei. Estava escuro para burro lá dentro.
- Que breu que é dentro desse carro, né Zé? – eu disse, esmigalhando o nariz no vidro para ver onde estávamos.
- É o seu insulfim... – ele arremedou – ... já estranhei isso o dia todo.
- Meu?
- Humpf. Fez tanta questão...
- Zé, mas foi grátis! A gente ia recusar? Só faltava essa. Ei, quanto custaria para colocar essa coisa? Olha a economia. E além de ser presente, está na moda colocar inlfilm nos carros. Somos gente da moda agora, dentro dessa chiquérrima bolha negra. Modernos. Os garagistas vão vir correndo pegar o nosso carro. É o fim do vexame.
- Modernos e cegos – ele retrucou.
- Olha, Zé, além disso é seguro. Uma vez me disseram que meu carro é um perigo, pois os bandidos me vêem lá dentro.
- Mas quem que você queria que vissem lá dentro? Será que os bandidos acham que nos carros com insulfim não tem ninguém?
Mas ele tem razão. É esquisito pra burro essa coisa de insulfilm. O filme faz tudo ficar escuro lá dentro, você não vê se está sol, se vai chover, se está nublado, se tem arco íris no céu. O pôr do sol da Marginal Pinheiros, que me acompanha a vida toda, estava marrom-pastoso, as pessoas se tornaram cinzas, e, mais um problema: não dava para usar óculos escuros. Perigosíssimo.
Resumindo. Andar num carro com insulfilm não tem graça nenhuma. Nada é cristalino, límpido, puro, e quem foi que inventou que a segurança está ligada à escuridão? A escuridão causa depressão, tristeza, melancolia, gente. Pessoas que vivem em países que tem menos sol, é sabido, tem temperamentos mais depressivos. Acho que até, no futuro, perceberemos que muitas pessoas passaram a ter problemas de depressão por causa do insulfilm. Pesquisas serão feitas: carros com filme versus compra de antidepressivos.
Mas o pior não é isso. Andar dentro de um carro escuro dá medo do que tem lá fora. Temos a sensação que dentro tudo está seguro, e lá fora, na escuridão, fica uma outra cidade, estranha, perigosa. O fora e o dentro ficam a quilômetros de distância.
Estamos a cada dia mais nos distanciando da cidade enquanto circulamos. O nosso ar é condicionado, o som é interno e agora perdemos até a luz. Saímos de uma célula para outra célula. A cidade é um tempo que não existe mais. Aquilo foi feito para dar medo na gente, não para proteger.
O carro do Zé é um filme de terror.
- Vamos jantar fora hoje para comemorar, lú?
- Sim, Zé, mas no meu carro. É menos deprê. Pode ser?

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