quarta-feira, 5 de outubro de 2005

o menino e o prato de comida


Vou falar sobre um assunto que me persegue há anos. A fome. Não a fome de comida, mas sobre uma fome que vem de lá de trás, do passado. Uma fome que não passa nunca.
Lembro de um menino que trabalhou com o Zé. O Zé tem um escritório grande, com muitos sócios e muita gente trabalhando. Hoje em dia os funcionários reivindicam muitos direitos, passes, vale alimentação, férias, plano saúde. Isso custava caro para a empresa, e eles procuraram algumas soluções mais baratas e alternativas. Resolveram que melhor que dar “vale refeição” era contratar uma cozinheira para fazer um belo almoço para todo mundo lá mesmo no escritório. A cozinha era espaçosa e eles tinham uma grande sala de reunião que serviria de refeitório.
Ficou estipulado que todos comeriam junto, secretárias, estagiários, funcionários, sócios. Seria um almoço democrático, como uma grande família.
Esse rapaz era o boy. Era um menino esforçado, calado e bastante tímido. Ficou extremamente envergonhado de ter que almoçar com os patrões, mas não havia outro jeito.
A mesa era colocada todos os dias. Salada, carne, arroz, feijão, farofa, batatinhas, macarrão. Era bastante gente e, portanto, bastante comida. O menino provavelmente nunca vira uma mesa assim, tão farta e totalmente grátis. Aqueles almoços eram, para ele, verdadeiros banquetes.
O Zé conta que no início ele era bastante comedido, mas conforme o tempo passava ele comia cada vez mais. Um, dois, três pratos imensos, montanhas de comida.
Bom, o escritório tinha um depósito ao lado da cozinha. Um dia o Zé entrou lá para pegar alguma coisa e tropeçou. Era o menino, no chão, deitado.
- Opa. O que você faz aqui?
- Eu...eu estou com dor de barriga - o menino falou, envergonhado - não consigo nem ficar em pé, acho que comi demais.
O Zé ficou impressionado. Para que comer tanto e ficar quase doente? Ele deveria comer menos, sem tanta pressa, disse ao garoto.
Mas acontece que aquilo não era apenas fome, e o menino não comia para se alimentar. Ele comia para alimentar sua família, comia para preencher o vazio da mesa da sua casa. Aquilo uma fome ancestral, uma fome que seus parentes carregavam durante anos. Uma fome de cada dia, uma fome de lá dentro, uma fome de medo. Isso é muito além da nossa fome diária. O menino comia e não agüentava ficar em pé.
O menino comia e quase morria.
Eu penso que todos temos nossas fomes ancestrais de diversos tipos de alimento. Fomes físicas, espirituais, de amor, de paixão, de convívio, de riso, de alegria, de entendimento, de empatia. Fome de sermos queridos, fome de sermos amados. A fome nos torna carentes, aflitos, famintos. A fome nos torna crianças assustadas.
E quando temos chance, engolimos todo o alimento que conseguimos e também precisamos nos deitar nos nossos depósitos, no escuro, para esperar aquela doída digestão.
Olha.
É a mesma coisa. A mesmíssima coisa.

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