quarta-feira, 30 de novembro de 2005

o lava jato


Nunca acontece, mas ontem o Zé veio almoçar em casa.
- Ô que tarde linda. Queria ficar a tôa hoje, sem trabalhar.
- Como assim?
- Pensei em ir para o clube.
- Vergonha, Zé. Imagina um 'pai' no clube no meio da tarde. Os meninos e os amigos deles todos vão estar lá, fazendo esporte.
- Eu sei. Mas que seria bom, seria.
- As pessoas iam te recriminar. Você deveria fazer um descanso mais escondido, aqui dentro de casa mesmo.
- Não ia adiantar. Eu devia tirar férias duma vez.
- Isso mesmo.
- ... ou então levar o carro para lavar no lava jato.
- Como assim 'levar o carro no lava jato', Zé?
- É que lavar o carro no lava jato descansa a gente. Uma delícia levar o carro no lava jato.
- Descansa?
- Descansa, relaxa, ué.Eu notei isso outro dia.
- Eu não estou entendendo patavina, Zé.
Diante da minha cara atônita ele explicou.
- Escuta só. Lembra aquele dia que eu saí com os meninos e eu te disse que resolvemos lavar o carro? Bom, quando entramos no lava jato, eu estava muito cansado. A semana tinha sido de lascar. O homem mandou colocar o carro ali naquele lugarzinho, fechar os vidros e deixar o carro parado, que as esponjas e vassouras iam andar por cima dele. Você sabe como que é naquela hora. Bom, ficou tudo escuro, a água batia no carro, as escovas escovavam, as esponjas esfregavam. Vrum, chuá, chuc, chuc, chuc... Tudo bem devagarzinho. E depois ainda tinha o enxágüe e depois ainda o ventinho que vai e volta. E, quando eu vi...
- Você dormiu.
- Isso mesmo.
- Não acredito, Zé.
- Pergunta pra os meninos. Eles que me acordaram.
- Mas é tão rápido. É a jato. Lava – jato.
- Que nada. Dura mais de quinze minutos o processo todo. Dá pra dar uma soneca rapidinha numa boa, sem culpa nem nada.
- Afe, Zé. Você deve estar muito estressado mesmo.
Ele nem ouviu o que eu falei, de tão sonhador que estava.
- Desde então eu sonho com lava jatos. Ô delicia para desestressar que é um lava jato. E barato, pensa, lu: onze reais. Muito mais barato que massagem, acupuntura, sauna ou dry martini.
Eu não consegui responder nada.
- Acho que vou dar um jeito de ir hoje de novo. O carro já sujou um pouco e eu estou muito estressado.

terça-feira, 29 de novembro de 2005

trauma de natal


Eu queria entender exatamente porque, no início de dezembro, eu tenho que dar dinheiro para as duas equipes de lixeiros que passam à noite na minha rua, para o carteiro que me presenteia com um cartão cheio montanhas de neve, para o homem da Eletropaulo que me deixa um bilhete com letras azuis, para o entregador de jornal da madrugada com sua Kombi velha sem escapamento, para o moço da Sabesp, para o entregador de gás, para o padeiro. Noto que o vigia me olha ansioso, o jardineiro aparece sem mais nem menos em casa e me conta que minha vizinha já deu a ele uma cesta de natal, o guardinha da rua da minha mãe me cumprimenta pelo nome e o homem da banca de jornal coloca um aviso de “boas festas” dentro da revista. Hummm. Que estranho. O entregador do Pão de Açúcar me diz “feliz natal” duas vezes e as moças do caixa da farmácia usam chapéus de papai Noel.
É um complô, com toda certeza.
Ô santo. Depois de amanhã chega dezembro e, mais uma vez eu tenho que fugir de todos eles. O natal me ronda como se fosse me assaltar a qualquer instante. Podem me achar insana, mas confesso que tenho medo de natal. A época natalina me deixa psicopata, passo dias me escondendo deles, dessa gente que me segue, que quer meu dinheiro e que jamais vai acreditar que eu não ganho décimo-terceiro nem férias nem patavina nenhuma e não existe época que sou mais pobre no ano.
Anos atrás, ao invés de fugir, resolvi me entregar aos leões. Juntei dinheiro o ano todo e em dezembro passei a dar dinheiro para todo mundo que aparecia. Era aquela envelopaiada o dia todo saindo da minha bolsa. Além disso, comprei cestas, vinhos, caixas de bombom. Não me esqueci de nenhuma professora, nem secretária de médico, nem de nenhuma mãe de melhor de amigo de filho. Achei que estaria salva, mas não. Fiquei paupérrima, cheia de dívidas em janeiro e a culpa... não passou.
É uma culpa geral, eu acho. Presentear, que sempre é um prazer, virou obrigação, virou programa, virou lazer necessário. Quem não faz é visto com maus olhos. Meio amladiçoado.
Eu não gosto do natal por outros motivos. Perdi meu pai no natal quando era menina, nessa época sempre me lembro dele. Naquele primeiro natal sem pai, eu e minha irmã sequer sabíamos se podíamos ser felizes. Quando se perde um pai todos os sentimentos se embaralham. Resta olhar as peças e pensar como colocar aquilo em ordem. Mas não há quem ensine. Um pai, assim como uma vida, não volta. Nada cabe naquele vazio. É como perder um braço, um membro. Ele sempre vai faltar. A perda do meu pai me deixou sem a felicidade natalina. E não há o que colocar ali, naquele vão da festa.
Nos anos seguintes passamos a viver bem apertados em casa. Tivemos que aprender a fazer contas, cálculos, a controlar o dinheiro, a trancar a porta da casa. E os natais, que antes eram festas, se transformaram em ralos sugadores do pouco que tínhamos. “Vamos ver como vou comprar os presentes esse ano”, anunciava a minha mãe. Sempre achei esse lado do natal uma coisa absolutamente má. O natal veio, tirou meu pai e ainda dava despesas. Tudo que era antes generoso, largo, dadivoso, virou restrito, apertado.
Acho que traumatizei.
Achei que quando crecesse e tivesse filhos, as coisas seriam diferentes. Imagina. Piorou. O mundo passou a consumir e exigir muito mais. A máfia do natal agora fala olhando nos olhos. Olha. Se eu tivesse outra personalidade, mandava tudo as favas. Se fosse mais decidida, não compraria um único presente. Mas não. Mais um natal que chega e eu, mais uma vez, me escondo atrás da porta, fecho meus olhos e reclamo feito uma velha chata.
Eu sou uma refém do natal. Alguém quer dar alguma idéia?

domingo, 27 de novembro de 2005

MIMUS



Isso não é um post. É uma propaganda da MIMUS.
A MIMUS é uma idéia muito bacana. É um site de venda de presentes que um amigo meu acabou de fazer e inaugurar, e que vende lembranças muito bacanas para você mimar quem você gosta.
Bom, e dentro dessa propaganda eu vou fazer outra propaganda. Além da MIMUS ser de um grande amigo meu amigo da FAU, o Passarinho (Passarinho éapelido, o nome dele é José mas ninguém conhece ele pelo nome), alguns dos objetos- esculturas que são vendidos na MIMUS foram desenhados pela Sílvia B., minha melhor amiga: os Beijas e os Toca Aqui.
Não precisa falar mais nada, tá tudo escrito, fotografado e explicado lá. Vale a pena ir olhar.
Beijas e Mimus a todos e boa semana.

sábado, 26 de novembro de 2005

chapeuzinho acabou de entrar



- Mãe.
- Oi João.
- Conversa comigo pra eu dormir?
- Quer que conte uma história?
- Quero. Mas história legal, não historinha de nenê.
- Você tem onze anos, e onze anos ainda é criança.
- Nem vem. Sou mais alto que você. Vai, conta logo.
- Era uma vez uma menina linda chamada Chapeuzinho Vermelho.
- Ah, mãe que saco.
- A mãe dela fez uma cesta linda cheia de doces, pães e bolos pra ela levar pra avó dela.
- Mãe, pára. Conta uma história de rappers, de adultos, de bandidos, vai.

“Filhinha, pega essa cesta e leva na casa da sua avó”


- Eu já sei, mãe. E daí ela colocou aquela touca ridícula e...
- Não senhor. Ela não ouviu o que a mãe disse.
- Como não ouviu?
- Ouve a história.

“Filha. Filhaaa, onde você está? Ora, onde está essa Chapeuzinho?”.


- O lobo apareceu na casa dela e comeu a menina?
- Não. É que a Chapeuzinho estava no computador.

“No computador de novo, minha filha? Sai daí, vamos”.
“Já saio, mãe.”
“Filha, sai desse MSN e leva esses doces pra sua avó”
“Já vai mãe. Tô indo".


- Ela foi?
- Ah, agora quer ouvir a história, é?

“Filhaaa. Não está ouvindo não? Leva esses doces para a sua avó, será que eu vou ter que repetir de novo?”.
“Mãe, eu tou indo”
“Como está indo se você nem saiu daí?”
“Já disse, eu tou indo. A gente não precisa sair do lugar para estar indo. Você é muito tosca. Dois minutinhos, mãe”.
“Tá, dois minutinhos.”


- Tá gostando?
- Não aconteceu nada nessa história.
- Bom. Depois de dois minutos a mãe voltou.

“Filha, já acabou? Mas filha... o que é isso, um jogo medieval? Mas porque você começou a jogar isso se eu te pedi para sair do MSN e levar esses doces na...”
“... na casa da vovó, eu sei mãe, mas espera que eu não posso sair agora, você não vê?”
“Sai daí Chapeuzinho, que coisa!”
“Eu preciso salvar. Dois minutinhos, eu já salvo e saio. Perai,mãe!”
“Vamos Chapeuzinho, já está escurecendo, menina!”
“Mãe, já disse, tô indo! É que eu não posso salvar ainda. Você não quer que eu morra, né?”
“Chapeuzinho, se precisar morra, minha filha! E vai logo levar esses doces para a sua avó que eu não agüento mais!”
“Tô indo, mãe! Tô indo!”
“Chapeuziiiiinho!”
“Tô iiiiiiiiiindo!”


- É chato assim, mãe?
-É, João.
- E como continua?
- Bem. Ela não leva os doces e não tem história. Tudo por causa do computador. Olha. Se fosse hoje em dia essa Chapeuzinho não ia encontrar o lobo e nem ser comida por ele.
- Se fosse hoje ela podia ser assaltada ou seqüestrada. Imagina uma menina pequena sozinha numa estrada deserta. Você não me deixa nem voltar da escola sozinho.
- Imagina trocar uma avó por um computador. Isso que seria absurdo.
- Ah, mãe. Absurdo é largar um jogo no meio sem salvar. Não dá, você sabe. E também ela podia mandar um e-mail pra avó avisando que ia demorar, pronto.

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

as tantas possibilidades da vida



Ontem eu falei sobre as nossas carências e as possibilidades. Meio que sem querer, inventei uma teoria onde, quando não sabemos que existe uma coisa, não queremos a coisa. Depois que existe a possibilidade, desejamos. Por isso as pessoas numa sociedade de consumo como a nossa são tão mais carentes que a turma de amigos da minha avó em 1940: porque hoje em dia a oferta de possibilidades é imensa.
Esse é um grande assunto. E pensem. Quando não pensamos na possibilidade, não queremos nada. É como se ela não existisse.
Como são felizes as pessoas que não sabem de nada.
É mais ou menos como o seguinte. Eu escrevo porque gosto muito de escrever. Escrevo desde pequena, adolescente, jovem. Escrevo também porque preciso colocar para fora as histórias e idéias. Se eu não colocar para fora escrevendo, explodirei de outro modo. Acredito que é preciso desaguar idéias velhas para surgirem mais idéias novas. Quem já foi mãe vai entender minha comparação: é preciso amamentar o filho para ter mais leite. Se você não amamenta, o leite empedra, você passa mal.
Acho que é isso, só que no meu caso o leite é crônica. E sinto informar a todos que isso aqui é um enorme processo de amamentação. Engraçado isso que eu escrevi.
Sempre vivi muito bem nesse ciclo: escrever, desaguar e andar para frente escrevendo mais ainda. É uma coisa necessária que faz parte da minha vida diária. Ninguém me manda fazer isso, ninguém me obriga a escrever.
Mas um dia alguém sugeriu.
- Nossa, Lúcia. Quanto texto. Você precisa publicar.
Eu nunca tinha pensado nisso. Publicar?
Bom, nesse instante publicar virou uma possibilidade. As possibilidades sempre são vendidas com estrelinhas brilhantes, lotadas de mágicas e encantamentos. Comecei a sonhar. Publicar. Logo me vi numa badalada noite de autógrafos na livraria Cultura, eu de preto, abafando. Fui mais fundo. Na fila dos autógrafos, muitos famosos aguardavam, e eu ali com minha "bic" para dar um toque ‘blasé’. Depois me imaginei dando entrevistas para jornais e revistas, logo em seguida pensei numa coluna no Estadão. Ora, Jabor, Marcelo Paiva, Inácio de Loyola, Veríssimo, Ubaldo, Daniel Piza e eu, por que não? Depois o cinema e o teatro. Já li na manchete do jornal: “nova revelação na dramaturgia nacional: peça inédita de lúcia carvalho, com Antônio Fagundes”. Nessa hora eu já estava gargalhando de satisfação, no auge do sonho da possibilidade. Depois, ainda pensei num romance. Um romance sempre demora um pouco para ser escrito, é o ápice. E depois...
E depois o quê, cara pálida?
Bom, depois de pensar tudo isso, olhei ao redor. Eu, minha mesinha, meu computador, o “frankamente...”, minhas crônicas diárias, minha peças de teatro que nunca foram além do espiral e do xerox e...
Ai que ódio, tudo me pareceu tão reles e mixuruco que me senti um verme. Imediatamente me deu uma depressão profunda. Eu deveria tomar uma atitude urgente, como eu nunca pensei em algo maior e mais produtivo, como uma publicação? Como eu pude viver assim até agora?
Pimba. Fiquei carente.
Isso tudo é para provar como são perigosas as possibilidades. Tenho pavor de entrar tão a fundo no mundo criado pela minha própria imaginação, onde a realidade se confunde com a ficção. É perigoso, é irreal. Temos que gostar das nossas vidas, nos bastar no que nos dá prazer. Se você sobre no octuagésimo andar de um prédio, você não distingue as pessoas que andam na rua. Isso dá vertigem. O quinto andar precisa bastar.
Depois de muito pensar, conclui algumas coisas. Eu não escrevo aqui para publicar nada. Muitos escritores não gostam de escrever em blogs porque “gastam” os textos. Eu não gasto, eu deságuo. Eu não faço um blog para que ele seja publicado, faço apenas para ele ser blog. Essa é a minha possibilidade e ela é real. Aliás, blogs são possibilidades em essência. São as profundezas das probabilidades, são as sementes delas. O tempo e a rapidez do post não permite que seja diferente.
Fazer um blog e desaguar todos os dias é como viver, trabalhar, escrever e fazer poesia. Não devemos querer mais que isso. Isso é legítimo, real, simples. Isso é a hora do extravasamento. Isso basta.
Só esse nome, que, Deus me livre, é muito feio.
Blog.
Blog deveria se chamar Artur. Cláudio. Roberto. Ou Pedro. Tanto nome masculino bonito, tanta possibilidade, e colocam esse nome tão feio no lugar virtual.

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

... nam nam nam...



Era um cliente meu. Um senhor, meio gordinho, cabelos e bigodes brancos. Ele me chamou para fazer a reforma de um escritório onde ele era diretor.
Não sei se ele queria realmente reformar o escritório. Às vezes eu acho que ele queria apenas alguém para conversar. Ele encompridava demais as conversas, aquilo não era normal.
Tem gente que é assim, carente por natureza. A Bela, minha cachorra, também nunca se contenta com os carinhos que a gente dá. Ela quer mais, mais e mais. Quanto mais você dá, mais ela quer. E mesmo depois de quarenta minutos de brincadeira, se você pára ela geme, mais desesperada que antes.
Analisando a Bela, acho que carência tem a ver com a memória. Quando você não se lembra que existe a possibilidade, é menos carente. Quando percebe a possibilidade, bate um desespero. É isso. O problema da carência é a percepção da possibilidade.
Mas vou voltar ao dr. Marco Antônio. Ele era o diretor encarregado de fazer as reformas do prédio. Ele, como diretor de uma empresa privada, deveria ser objetivo, mas não era. Gostava de reuniões ao vivo, demoradas. Eu ia sempre depois do almoço, pois uma vez eu marquei de manhã e demorou tanto que tive que almoçar sanduíche do América com ele e continuar a tarde.
O pior é que obra que é bom, nada. Eu levava projetos e orçamentos, ele conversava, me enrolava e lá eu estava eu na semana seguinte com mais projetos e orçamentos. Acho que foi porque eu estava de saco cheio que eu falei aquilo pra ele. Não devia, foi meio mal educado, ainda mais para um homem carente.
É que ele era gordinho e eu fiz um comentário sobre isso. Foi coisa boba, mas ele ficou espantado. Acho que ele não se sentia gordo e o que eu disse foi chocante. Com meu comentário, fulminei o dr. Marco Antônio.
- lúcia... mas você acha mesmo?
- Acha o quê?
- Que eu sou... gordo?
Olha, embora eu ficasse horas, dias e anos em reunião com aquele homem, nunca falamos de um assunto, digamos... íntimo. Na hora achei meio constrangedor. E se alguém entrasse ali e me ouvisse comentando sobre o... corpo do diretor da empresa?
- Não. Sim. Não, Marco Antônio, acho que você está ótimo. Quéisso.
- Não, não. Você está mentindo. Eu estou gordo, lúcia, e eu não tinha pensado nisso – ele disse, arrasado.
A reunião acabou e eu saí dali com aquela estranha sensação que sentem as pessoas que dão foras. Não existe um verbo pra isso. Dar um fora é como comer pano, eu acho. Uma coisa estranha e sem gosto, que não digere.
Depois de dois dias ele me chamou de novo. Achei que ele tinha esquecido, mas não. Na primeira oportunidade voltou ao assunto.
- Resolvi tomar uma atitude – ele disse, sacando do bolso uma caixa de remédio - vou emagrecer.
Ó céus. Tudo culpa minha.
O meu martírio estava apenas começando. Se ele era carente antes, imagina depois de se tornar um... gordo. Além de arquiteta, companhia e interlocutora de conversa mole, eu me tornei uma musa emagrecedora e confidente. Ele passou a me segredar as agruras do emagrecimento, que eram terríveis, pois o dr. Marco Antonio gostava muito, mas muito de comer.
- Mas esse remédio é bom porque eu posso comer o que quiser. Ele acaba com todas as gorduras.
Bom, eu já tinha ouvido falar do Xenical, mas nunca tinha... ouvido o Xenical em ação. Como as minhas reuniões eram logo depois do almoço, ele se sentava na minha frente, tomava o remédio e... bom, ele eu não sei, mas eu ficava desesperada esperando o treco entrar em ação. E quando entrava, gente do céu, o homem levantava como um foguete da cadeira e corria para o banheiro.
Bom, digamos que ele ia queimar as gorduras.
Eu suspirava fundo, tapando o nariz. Que nojo. O pior é que a sala era tipo suíte, com banheiro dentro, e eu tinha também que tapar os ouvidos e falar ... nam nam nam... até a porta abrir, para não ouvir o remédio em... ação.
Olha. O que a gente não faz para arrumar trabalho.
Se deu certo? Ele nunca reformou aquele escritório, que droga. Mas sabiam que ele emagreceu?

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

os engasgos jedáis



Uma vez eu engasguei feio. Foi no dia da festa de 40 anos do Zé. Eu estava tão animada que nem comi naquele dia. Uma hora coloquei a mão no bolso e achei umas pastilhas ‘garoto’. Aquelas quadradinhas, esfarelentas, de menta.
Não tinha ninguém da família em casa. Os filhos estavam na casa da minha mãe, o Zé tinha ido buscar as bebidas e eu estava arrumando a sala ao lado do dijei, que instalava o som. Coloquei a balinha na boca, ela esfarelou e quando eu vi, estava totalmente engasgada.
Ia pedir ajuda pra quem? Fiquei com vergonha do dijei desconhecido, fiquei com mais vergonha ainda do moço do toldo e das empregadas ajudantes. Assim, corri com meu engasgo pro lavabo.
- AimeusãoBenedi. AimeuDe. Vou morre. Ai que engasga...
A sensação era péssima. Eu só queria ar, naquele resfolegar de louca revirando os olhos e urrando com a alma. Enfiei a boca na torneira, me atirei na parede, me deitei no chão, berrando a seco. Não morri, mas passei uns bons 10 minutos ali, chorando. Foi uma experiência assustadora.
Acho que isso deve ser muito comum nas mulheres doismilianas. Queremos fazer tudo ao mesmo tempo, ser mães, profissionais, donas de casa, donas de festas, malhadas, inteligentes, famosas e modernas. Óbvio que os cérebros, mesmo os mais modernos, tem limitações. O corpo não agüenta, a respiração não agüenta, a vida não agüenta. Não conseguir respirar é o limite do essencial. Se você não conseguir respirar, foi-se. Acho que é o aviso mais sério que o corpo pode te dar.
Depois desse engasgo, mudei minha vida. Fiz a festa, mas passei a deixar muitas coisas darem errado. Era melhor continuar viva. Imagina o Zé, viúvo, com quarentinha.
Bom, domingo foi aniversário do meu sobrinho e minha irmã teve uma experiência parecida. O aniversário estava um exagero. Filho único, sabe como é. Mágico, cama elástica, bolo de Jedái caprichadamente feito pela minha mãe, balões de gás no teto, mais de cem pessoas mais pra adultas que crianças, aquele monte de salgadinho e garçon. Minha irmã estava completamente lelé no meio dos convidados, sorrindo sem parar.
- Ângela. Quer ajuda?
- Eu... – ela disse, com voz de filme de terror.
- Ei, que voz é essa?
Ela tentou falar, mas não conseguia.
- Que foi, falou demais?
- Não.. é que eu quase morri...
- Quando, agora, na festa? Não percebi – eu disse, achando que era brincadeira.
- Não faz gozação. É verdade – ela disse, com voz sepulcral - Fui comer uma bala de coco e engasguei. Fiquei roxa, sem ar, tive que sair da sala correndo. Subi as escadas e fiquei tentando tirar ar de dentro do meu quarto, me segurando nas paredes. Pensei. Gente. Vou morrer aqui, agora, com toda a certeza. Não tenho ar nenhum. Imagine que tristeza alguém morrer no aniversário do filho. O Luís vai ficar triste, ainda bem que ele ganhou um monte de presente e terá uma lembrança bonita de mim, afinal fiz escova no cabelo e estou arrumada. E as pessoas vão demorar para saber porque eu morri. A bala de côco dissolve logo e engasgos não deixam vestígios.
Minha irmã é muito engraçada.
- Iam achar que fui assassinada! – ela disse, falando rouca e abrindo um olhão.
Além disso, ela adora um teatro. Quem conhece, sabe.
- Envenenamento. Iam achar que foi um envenenamento, Ângela – eu disse, rindo.
- Nossa. Todos os convidados seriam interrogados... – ela pensou.
- Aquele seu amigo hippie velho seria suspeito, Ângela. O nosso tio, que observa todos de longe e fala muito pouco, também seria grande suspeito.
- Os garçons seriam suspeitos – ela falou, assustada – Coitados, e logo eles que são tão bonzinhos.
- Todas essas mães, tão inocentes, seriam muiiito suspeitas...
- E onde iam desconfiar que estaria o veneno?
- Ora. No bolo de Jedái da mamãe – eu disse, rindo - É a coisa mais poderosa e esquisita da festa.
- Que é que tem meu bolo? – interrompeu minha mãe.
- Nada, mãe, nada – falou minha irmã – Mas você escapou de uma boa, mãe. De uma boa. Você nem imagina.

terça-feira, 22 de novembro de 2005

o reloginho



Como eu sempre encontrava aquela mãe na porta da escola, nas festas infantis e na porta da casa dela por causa dos filhos, ficamos conhecidas. Depois de uns meses, ela sugeriu.
- Que acha de um dia sairmos à noite, sem filhos? Uma vez por semana eu e o Haroldo sempre vamos jantar fora. Você e seu marido não querem ir com a gente?
- Ah, legal... vamos sim – respondi, pensando na reação do Zé quando eu contasse que a gente ia sair com um casal desconhecido.
Não que isso seja um problema. Eu ainda tenho muito espaço na minha alma para conhecer muita gente, e acredito que vou conhecer. Mas tenho, assim como sei que o Zé também tem (acho que por isso que a gente casou) uma certa preguiça de fazer programas com gente que a gente não conhece. É que tivemos muitas experiências de sair com gente chata, careta, sem graça, sempre com as mesmas conversas básicas, maridos falando de futebol e mulheres reclamando de filhos. O resultado sempre é a sensação de pouca intimidade e muito sono às 11 e meia.
- Vai ver que dessa vez será diferente , Zé.
- Você conhece o marido? – ele perguntou.
- Não. Só sei que chama Haroldo e trabalha com turismo.
Mas fomos surpreendidos. O casal era muito bacana, ela era alegre, ele engraçado, os dois inteligentes. Estávamos adorando o jantar, imagina, e eu achando os dois uns chatos, pensei ao ver o Zé conversando animadamente. Mas de repente aconteceu uma coisa. E essa coisa, bom essa coisa fez desmoronar toda a imagem ligeiramente simpática que tínhamos do casal.
Sem mais nem menos, ele, o Haroldo, disse que não podia dormir tarde porque tinha um treinamento de manhã com seu personal. E começou a contar sobre a sua rotina.
Disse que depois do treinamento voltava para casa, tomava um café da manhã com frutas, iogurte, café e torradas, tomava um banho e ia ao banheiro, pois o intestino dele funcionava como um reloginho.
- Como é? – eu me assustei.
- Como um reloginho – ele disse animado – Nunca tive problemas de prisão de ventre.
Gente, eu mal conhecia aquele homem. Gente, estávamos comendo a sobremesa, pô.
Ele foi além. O fato do intestino dele funcionar feito um reloginho, que, para mim era uma nojeira, para ele era um grande trunfo. Ele se gabava daquilo, era como se ele viesse de uma família com ancestrais prisões de ventre e tivesse sofrido muito com isso durante toda a sua infância.
- Olha, eu funciono todos os dias no mesmo horário há anos. Graças a Deus nunca falhei. Nem nas viagens, que geralmente deixam a Rê com altas prisões de ventre, eu falho. É impressionante – e ele olhou para a Regininha, que assentiu com a cabeça, orgulhosa.
Olhei para o Zé constrangida. Deveríamos... cumprimentar? O que se fala depois de um comentário desses? Que maravilha?
Ave Maria. A nossa noite praticamente acabou. Que casal era aquele que expunha, na hora da sobremesa, as façanhas intestinais? Além de saber que todos os dias as 8 e meia da manhã o Haroldo ia ao banheiro, nós tínhamos que saber que a Rê tinha prisões de ventre horríveis nas viagens?
Ai que nojo.
Olha, desculpa. Se tem uma coisa que eu acho que não deve ser comentada nunca é essa. O funcionamento do fígado, do estômago e dos intestinos de cada um é coisa que interessa só a própria pessoa. Tenho muita vergonha, aflição e sem graceza de saber qualquer coisa sobre a funções intestinais de desconhecidos. É um assunto que me deixa embaraçada, perturbada. Acho que prefiro ver o casal completamente nu na minha frente do que saber esses detalhes escatológicos. E noto que tem muita gente que nem liga de falar, como se fosse um assunto normalíssimo. Deve ser uma coisa de família, de formação.
Aquele homem estragou a minha noite e a minha sobremesa, pois eu praticamente “vi” a sobremesa que ele comia sair na hora do reloginho. Até hoje as oito e meia eu lembro do cara. Olha gente, perdões até pelo post tão asqueroso, mas achei que era necessário comentar.
E toda a vez que temos que nos referir a eles, eu ou o Zé, nós falamos.
- Aquele lá, lú. O do cocô reloginho.
- Ah, sei. O das oito e emeia!

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

havia necessidade?


Éramos recém casados. Na época tínhamos um único carro, um Fiat 147 bem velhinho que dava muito trabalho. Ele morria a toda hora, tinha problemas na caixa de câmbio e depois de uma troca de correia nunca mais foi o mesmo. Começou a bater pino e precisava de uma retifica no motor.
Óbvio que era hora de vender. Colocamos um anúncio no jornal, mas como não tínhamos telefone em casa, demos o telefone da minha sogra e passávamos o final de semana lá, ao lado do telefone.
Que engraçado que eram os tempos pré-celular.
Bom, no começo apareceu muita gente para comprar. Mas todos que vinham ver o carro desistiam. Por mais que a gente fingisse que estava ‘ótimo’, tava na cara que não estava. Assim se passou uma semana, duas semanas e nada do carro ir embora. Resolvemos baixar o preço, veio mais gente, mas ainda assim todos olhavam e desistiam. Olha. Morro de pena que coisas que ninguém quer. Eu estava com tanta pena que quase desisti de vender. Tadinho. Era só velho.
Porém como sempre tem um pé cansado para um sapato velho, apareceu um moço ótimo para ficar com o carro velho: o rapaz era irmão de um mecânico e, para ele, o conserto saia barato. Uma vez que a lataria estava ótima e a quilometragem razoável, era um bom negócio. Ele veio no sábado, olhou e no domingo apareceu com a mulher, o irmão mecânico, a irmã melhor e o cunhado motoqueiro. E resolveu que ia comprar.
O Zé subiu para o apartamento da mãe dele todo animado.
- Ele falou que vai comprar!
- Só acredito vendo – eu disse.
- Eu vou fazer um café para comemorar – resolveu minha sogra.
Subiram todos. O comprador, a mulher dele, o irmão mecânico, a irmã menor, o cunhado motoqueiro. Tomaram café, fizeram piadinhas, pagaram o sinal. O carro seria entregue no dia seguinte depois da transferência bancária.
Bom, nos despedimos no hall do elevador, sempre naquela conversa mole. Olha, é um bom carro, já estou com saudade, nossa eu precisava muito, adoro FIAT, essas coisas. Chegou o elevador, todos embarcaram.
O Zé fechou a porta e olhou para mim.
- Eu – não – acredito!
- Zé, conseguimos! – eu gritei – Viva!
- Eba! Conseguimos mesmo! Não é possível! Sai uruca! Até que enfim! - ele estava eufórico – Eu achei que a gente não ia se livrar desse estorvo nunca mais!
Começamos a pular pela sala, na maior gritaria. Minha sogra entrou assustada.
- Vendi aquela espelunca velha, mãe! Nem acredito, viva!
- Shiu, fica quieto Titine – ela pediu – Escuta...
Ela ficou parada e nós também. Notamos um barulho diferente. Eram uns gritos finos e umas batidas.
- Que é isso? – estranhou o Zé.
- Não sei... - disse minha sogra.
Mas no fundo sabíamos, não queríamos era acreditar. O barulho vinha do hall. Tinha alguém preso no elevador.
Vergonha.
Eram eles, todos.
O Zé me olhou.
- Ai, não...
Sim, era verdade. Eles ficaram presos no elevador exatamente ali, na porta da casa da minha sogra, a menos de dois metros da nossa gritaria carnavalesca de “até que enfim, até que enfim...”! Nem chegaram a descer. Óbvio que tinham escutado tudinho.
- Vamos salvá-los, Zé.
Eles estavam apavorados. Chamamos o zelador, o elevador foi desligado e a porta aberta. Quando eles saíram, o Zé olhou seríssimo para todos.
- Tudo bem com vocês?
- Tudo – falou o comprador, branco.
- Então, até logo – ele disse, seco – A escada é ali, melhor vocês descerem por ela.
Os compradores não falaram nada. Achei que no dia seguinte eles desistiriam do negócio, mas não. E quando o Zé entrou de novo no apartamento a minha sogra, que é mineira, olhou para nós dois e falou uma única frase.
- Havia necessidade?

sábado, 19 de novembro de 2005

O bolo da Lú



A doceira estava vazia naquele começo de tarde. Eu estava lá para encomendar o bolo da Luciana, minha filha, que fez 15 anos antes de antes de ontem e fará uma festa hoje.
Um bolo, para mim, é sempre um grande assunto. Na minha família bolos são importantíssimos. Desde pequena aprendi que fazer bolos é absolutamente necessário, que bolos bons tem receita de família, que é preciso ter mão e que é absolutamente ridículo comprar um bolo. Na minha familia, as mulheres são vistas através de seus bolos. Os bolos e rocamboles da minha mãe sempre foram imbatíveis. O de nozes da minha avó é fantástico, e muitas conversas giram em torno disso.
- A Dulce é faz um bolo de claras maravilhoso.
- A tia Rita? Está velha-caduca, mas o bolo de chocolate dela ainda é um espetáculo. Não perdeu a mão.
Bati inúmeros bolos na vida, tenho as receitas e a mão. Quando aprendi a fazer bolos, existiam duas verdades. Não se pode bater um bolo na batedeira, um bom bolo se bate com a mão, e não se deve bater para o lado contrário – se você começa batendo para um lado tem que bater desse lado até o fim. Já levei altas broncas por causa disso.
- Não está tão bom, a Lúcia bateu ao contrário. Uma pena.
Mas com a vida que eu levo não tenho quase tempo de fazer bolos. Essa acaba sendo sempre uma incumbência da minha mãe. Todo aniversário nos falamos de manhãzinha.
- O Zé quer bolo branco ou de nozes? Chocolate com aquela cobertura fina para o João?
Assim, no dia do aniversário da minha filha do meio, liguei para ela.
- Mãe. O bolo da Nana. Em vez de fazer hoje, que é quarta, faz no sábado?
- Não dá. Sábado eu não posso porque domingo é aniversário do filho da tua irmã, que é criancinha e me pediu um bolo em formato de espada Jedái. Dá muito trabalho fazer bolo de espada de Jedái.
- Como assim? Quer dizer no sábado eu vou ter que... comprar?
- É uma vergonha, filha, mas vai. Estarei ocupadérrima.
Bom, como mãe é mãe, e eu sabia que não ia ter tempo, fui arrasada para a doceira.
- Boa tarde. Quero encomendar um bolo para sábado – pedi à atendente.
- Um momento.
Nesse instante chegou ao meu lado um senhor magrinho, de barbinha. Depois que a moça me pediu para esperar, o homem apontou os bolos da vitrine para a vendedora.
- Moça. Esses bolos são de aniversário?
- São bolos de qualquer coisa – falou a moça – o senhor que decide.
- Qual é melhor para um aniversário?
Como a moça não falou nada, eu intervim.
- De criança ou adulto?
- Adulto.
- A pessoa gosta de nozes? Chocolate? Chantili?
Ele hesitou.
- Hum. Não sei.
Ele me olhou sem graça.
- Olha. É que sempre é minha mulher que faz isso, mas hoje ela me mandou comprar e eu estou inseguro.
- É aniversário de alguém próximo? – perguntei, curiosa.
Ele hesitou.
- Sim. Não. Sim. Não. Bom, médio.
Diante do meu silêncio, ele desabafou.
- É meu aniversário.
Era engraçado o homem da barbinha.
- Mas meus parabéns! – exclamei - Então escolhe o que você gosta mais!
O homem ficou vermelho que nem um pimentão.
- Não! – respondeu, sério - não pode ser o que eu gosto mais... Tem que ser o mais certo para um aniversário.
Estava na cara que ele tinha muito, mas muito medo da mulher. O bolo, na verdade, era para ela. Bolos são sempre das mulheres, acho eu. Que idéia mandar o marido na doceira. E o pior é que ele sabia disso - se ele errasse ia dar a maior briga.
Dei de ombros e resolvi não palpitar. E se eu escolho um bolo por ele e a mulher dele detesta? Quem sou eu para me meter num assunto tão... íntimo? Ficou o maior silêncio. Diante do impasse a gerente, que não sabia que ele era o aniversariante e nem imaginava que a mulher era brava, sugeriu o bolo de nozes. Ele, encurralado, concordou.
Antes dele sair veio se despedir.
- Até logo, obrigado, viu?
- Parabéns, moço. Espero que sua esposa goste do bolo.
- O aniversário é meu – ele explicou.
- Eu sei, mas isso é de menos. O bolo é sempre das mulheres, moço. Sempre.

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

o hipoglós



Essa amiga minha adora teatro. Desde menina queria ser atriz, tentou fazer, cinema ou TV, mas um dia descobriu que não tinha voz. Tudo culpa de uma rinite alérgica.
Mas talento é talento, e quando a gente sabe que tem é complicado desencanar por causa de uma coisa tão... tão... ora, tão sem graça como uma ridícula rinite alérgica.
Ela cresceu e, embora não tenha se tornado uma atriz, ainda acha que a coisa vai dar certo. É só uma questão de oportunidade, ela diz.
Bem, um certo dia o marido, engenheiro, chegou em casa e avisou que receberia uma visita importante naquele dia.
- Acho que você já ouviu falar dele, é um conhecido diretor de cinema.
- Opa, tá pra mim! – ela se animou toda – Quem é?
Ele contou e ela dava pulinhos de alegria. Olha que maravilha.
- Mas... o que ele vem fazer aqui em casa, amor?
- Vem buscar um projeto, uns desenhos de uma estrutura de um cenário. Ele vai viajar e não pôde buscar no escritório.
Ela subiu correndo para se arrumar. Quem sabe não era aquela chance que ela precisava?
- E a que horas que ele vem, querido? – ela gritou de lá de cima.
- Agora. Se arruma que eu te apresento – falou o marido, rindo – Mas vai rápido. Se você demorar muito, ele entra, sai e você nem vê a cara dele. O cara é ocupado.
Ela estava animadíssima. Rapidamente trocou de roupa, penteou os cabelos, colocou um saltinho, um pouco de perfume, um batonzinho, deu três pulinhos para dar sorte e, quando estava descendo a escada, lembrou que não tinha escovado os dentes.
Ave. Um horror mulher de bafo podre, pensou, voltando para trás e ouvindo campainha. Um minutinho, eu escovo os dentes e já desço.
Entrou toda esbaforida no banheiro, encheu a escova de pasta e choc, choc, choo...
Ai. O que era aquilo?
Quando notou, não estava escovando os dentes com pasta. Na atrapalhação de andar rápido para cumprimentar o diretor e dar aquela exibida básica, ela, sem perceber, encheu a escova de dentes de ... Hipoglós.
Bom, para quem não sabe ou não lembra, Hipoglós é uma pomada multi uso para assaduras que a gente costumava passar nas bundas dos bebês. É um creme super pastoso, meio seco que tem um cheiro bem característico e fortíssimo de... Hipoglós.
Que terror. A coisa grudou na boca todinha. A língua aderiu no céu da boca, e como ela não queria engolir Hipoglós, começou a babar. Os espaços entre dentes ficaram tomados pela massa, os lábios grudaram e secaram. Céus. Fazendo um som gutural, ela passou a esfregar um monte de papel higiênico para retirar a pomada, mas o papel grudava em tudo: nos lábios, na gengiva, nos dentes. Ela passou a cuspir para retirar o papel, em vão: uma das vantagens do hipoglós é justamente não sair com a umidade. Como aquilo realmente não ia sair, ao menos ela precisava livra-se do cheiro. Assim passou a comer pasta de dente aos montes, compulsivamente.
Ouviu o marido gritando de lá de baixo. Querida! Benhê! Ora, onde ela estava? O homem já ia embora!
Ela suspirou. Não tinha jeito.
Desceu quase chorando, com a boca bem fechada. Diante da expressão atônita do marido, estendeu a mão para cumprimentar o homem, se recusando a dar beijinhos, pois o odor estava fortíssimo. Olhou o cineasta, muda, sorrindo sem graça com os lábios bem apertadinhos.
Não falou absolutamente nada.
Quando o homem saiu, o marido estranhou.
- Que foi, querida? E que cheiro horrível é esse? Que aconteceu com você?
- É Hipoglós, meu bem.
E ainda com a boca colada e bem fechadinha, ela completou.
- Bom, pelo menos ele não achou que eu tenho bafo podre...

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

tempo doido


Nesse feriado fiquei super resfriada. Agora que passou dá para falar, mas quando a gente está resfriada é impossível escrever sobre isso. A gente nunca sabe qual é o ápice de um resfriado e se é para escrever sobre ele, o ideal é escrever sobre a sua culminância, sobre o auge da constipação. Um bom resfriado é daqueles que a gente pode descrever exageradamente. E imagina se você escreve as agruras de um mega-resfriado e piora no dia seguinte, que desperdício?
A culminância foi domingo. Se fosse para me gabar, eu podia me gabar de todos os sintomas: coriza, espirros, tosse, nariz escorrendo, dores pelo corpo, febre. Tive tudo, sem tirar nem pôr. Além dos sintomas básicos, passei duas noites sem dormir direito, me sentindo mal e no maior mau humor. Um sucesso meu resfriado. Depois de três dias tudo passou. Perdi o feriado, mas hoje estou bem melhor.
Mas não era exatamente isso que eu ia contar. Já falei aqui da minha implicância com gente que fala anasalado e piora os resfriados para se exibir.
- Oi, Daniela, tudo bem?
- Quê nâhda, thoum pêssema hohgê, beguêi a baiôr gribê.

Mas as pessoas adoram fazer isso, pois um resfriado é um grande assunto e um dos principais estopins de conversa mole do mundo. É incrível. Se você quer arrumar amigos e conversar com qualquer um, basta falar que está ou esteve resfriado. Além de pequenas observações e tons de comiseração, as pessoas receitam remédios, contam suas próprias agruras e falam sem parar.
Já eu evito falar nos meus resfriados. E se é inevitável falar, tento disfarçar.
- Que voz, lúcia. Você está resfriada?
- Eu? Bâgina. Tou ótiba.
Bom, ontem pela manhã eu tive uma reunião. Minha voz e minha cara não estão das melhores ainda, mas no geral estou bem. Cheguei um pouco antes e fui para uma sala de reunião onde eu deveria esperar os demais. Depois de uns minutos, entrou uma copeira com um cafezinho.
- Bom dia. A senhora aceita um café?
- Aceito, claro – respondi.
- Açúcar ou adoçante?
- Só uma gotinha de adoçante – respondi.
Obviamente que eu devo ter dito “ãceidu, clahhro" e "só ubá godinhahh de adossâhnde”, pois a moça logo me olhou com dó e falou num tom compadecido.
-Nossa... a senhora está resfriada, é?
Ô raiva. Não estava fazendo fita nem nada, não era o caso dela notar.
- Ah, só um pouco - respondi, sem graça.
Foi quando a copeira soltou uma pérola da conversa mole do mundo moderno. O motor de arranque da ladainha constipativa. Sabe aquelas frases prontas que servem para iniciar uma conversa mole? Exatamente isso. A moça sorriu e declarou.
- Ah, é esse tempo doido, né?
Era a deixa para a minha fala, onde eu deveria contar a ela todo meu sofrimento, ação que eu brilhantemente desempenhei.
Fazer o quê?
Mas gente, pensa. O que tem a ver o “tempo doido” com o meu resfriado? Porque uma pessoa como eu, que não trabalha na rua, ficaria resfriada com o... tempo doido? E o que é um tempo doido? Doido é alucinado, insano, demente. Não me lembro de ter nevado ou ter passado por um calor de 40 graus aqui na cidade. E se eu fiquei resfriada, foi muito mais por causa de algum vírus do que por causa de um... tempo doido.
Mas o que importa é que moça ficou feliz da vida com os cinco minutos de conversa onde eu e ela éramos iguais diante do tempo doido. O resfriado da Sueli (até sei o nome dela) foi muito pior que o meu, porque ela teve até que ir para o hospital.
- Ah, é esse tempo doido, Sueli, você tem razão - eu retruquei.
Olha, que saber? Não liguem para o que eu falo, façam voz de gripe e culpem o tempo doido. Eu é que sou uma chata implicante e que tenho essa mania insuportável de reparar nas coisas que pouco importam. Se eu fosse menos implicante com certeza ia ser muito mais feliz.
Aliás, que tempo doido que tem feito, não acham?

terça-feira, 15 de novembro de 2005

o meu avô benjamin



Se meu avô estivesse vivo, hoje completaria 100 anos.
Como ele nasceu no dia da Proclamação da República, o pai dele resolveu dar um nome em homenagem a data.
- Coloca 'Deodoro da Fonseca' – sugeriu alguém do cartório.
- Já colocaram esse nome em alguma criança hoje? - ele perguntou.
- Sim – falou o escrivão – mas podemos colocar o nome de 'Benjamim Constant'.
- Ótimo - resolveu meu bisavô - Benjamin Constant!
E assim, sem mais nem menos, meu avô virou o vovô Benjamim.
Não sei essa história é verdade ou invencionice da minha cabeça. O tempo passa, minha mãe sempre falou muito, eu sempre inventei muito, vai saber.
Hoje acordei pensando nas lembranças que eu tenho dele. Ele era um homem muito bravo, autoritário, que falava muito alto. Foi, sem dúvida nenhuma, o líder da família, com suas verdades e decisões. Mas não é assim que eu me lembro dele. De um certo modo, o meu avô me ensinou a cuidar dos outros.
Ele era médico. Morou a vida toda numa pequena cidade do interior, tinha o consultório em casa, ajudou a edificar a cidade e o hospital. Como toda pessoa que faz o que gosta, ele morria de orgulho de tudo que construiu: a família, a cidade, do fato de ser o primeiro médico do local e do hospital que ele próprio levantou.
Eu era a neta mais velha, ele adorava passear comigo pela cidade e pelo hospital. Hoje em dia, duvide-o-dó que qualquer avô possa levar um neto para passear num hospital. É errado expor uma criança aos males e aos vírus dos pacientes internados, mas naquela época acho que não passava pela cabeça de ninguém, muito menos do meu avô. Ele tratava os pacientes em casa e sempre levou os netos ao hospital.
Assim, convivíamos com as doenças, enfermidades e indisposições dentro de casa, fora de casa, nas visitas, sem problema nenhum. Uma pessoa doente, para ele, não era um foco de contaminação: era alguém que precisava de cuidados, de carinho, de um médico.
Quando ele me chamava para ir com ele, eu corria, toda feliz. Era um mundo mágico aquele hospital antigo com aqueles corredores encerados. Percorríamos os corredores de mãos dadas, andando de enfermaria em enfermaria, olhando um por um todos os pacientes deitados.
- Seu Ambrósio, boa tarde, seu Ambrósio. Essa é a minha neta Lúcia, que hoje veio fazer as visitas comigo.
- Ô dona Madalena, bom dia, dona Madalena. Eu trouxe aqui a minha netinha para ver a senhora hoje, dona Madalena. Lúcia, fala bom dia para a dona Madalena.
- Como vai o senhor, seu Brás? Lúcia, cumprimente o seu Brás. Ele gosta tanto daqui que voltou duas vezes. Seu Brás, essa aqui é a Lúcia, minha neta.
Eu cumprimentava todo mundo, me sentindo muito importante. Eles me davam a mão, davam beijos, sorriam, batiam na minha cabeça. Afinal eu era a neta do dr. Benjamin. Meu avô tirava os curativos, olhava as feridas, os cortes, me pedia o estetoscópio, o termômetro. Avaliava os gânglios, tirava a pressão, apalpava os inchaços, tudo comigo ao lado. A visita sempre terminava na cozinha do hospital, onde as freiras me davam leite e biscoitos no meio daquelas panelas enormes.
Sempre tive uma relação muito diferente com hospitais. É uma certa familiaridade, uma intimidade e nenhuma aflição das doenças da carne, que, no final das contas, quase todas tem a sua cura. Não me incomodo ao olhar feridas, não ligo para choros de dor, não fico aflita com pessoas doentes. É como se eu soubesse que, de um certo modo, sempre existirá um médico, um avô, um carinho.
Talvez essa tenha sido a sua maior herança. Cuidar dos outros. Não somos melhores que ninguém, essa é a questão. E cuidar é apenas isso: mostrar as coisas que você gosta e prestar atenção às dores, medos e alegrias alheias. Meu avô cuidava de mim e cuidava dos seus pacientes da mesma maneira. Acho que éramos igualmente importantes na vida dele.
Quando penso nos meus escritos hoje, penso no meu avô. Eu gostava dele, e mostro agora ele a vocês. Apenas isso.

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

lugar DESmarcado



Era uma apresentação de final de ano dos meus filhos. O espetáculo seria no auditório do colégio, oito e meia. Cheguei um pouco antes, mas estava lotado.
Depois de alguma procura, achei dois lugares e sentei em um deles, esbaforida.
- Esse lugar está ocupado.
Olhei para o homem ao meu lado.
- Hã?
- Esse lugar está ocupado, moça.
Achei estranho, mas me levantei e me sentei na cadeira ao lado daquela.
- Esse também está ocupado – ele me disse, irritado.
- Como é?
- Minha mulher está nesse aqui e minha cunhada está sentada nesse outro, onde você está – ele declarou.
- Como assim? E eu me sentei em cima da sua cunhada?
Ele ignorou meu comentário engraçadinho.
- Elas ainda não chegaram, eu estou guardando lugar para elas.
Olhei ao redor. Tudo lotado.
- Moço, escutaqui. Está lotado o teatro. Eu cheguei antes de começar e bem antes da sua cunhada e da sua mulher. Você não acha que eu tenho mais direito que elas de assistir... sentada?
- A senhora não entendeu – ele falou, impassível – eu estou guardando lugar para elas! Cheguei antes para isso - ele me esnobou.
- Olha, o meu marido ambém não chegou - eu contei para ele - mas eu não vou guardar para ele, pois acho errado.
- Você vai querer criar caso? – ele ameaçou.
Eu tive medo. Levantei e me sentei no chão, na escadinha, ao lado das duas poltronas vazias. A mulher e a cunhada chegaram dez minutos depois que tudo começou. Viram tudo de camarote, muito melhor que eu.
Tem gente que é assim. Guarda aquele monte de lugar nas apresentações, nos cinemas, nos teatros. Acho que é uma mania, uma paranóia. Anos atrás uma senhora desmontou a bolsa toda para guardar lugar numa audição de uma escola de música. Numa cadeira ela colocou a bolsa, noutra uma carteira, noutra uma escova de cabelos, noutra uma caneta e assim até o final da fila. Óbvio que lá na ponta ela colocou apenas um batom, que eu não vi e me sentei em cima.
- Ai, ai, esse lugar está guardado, por favor, mocinha! – ela disse apavorada, correndo de lá do fim do corredor.
- Hã?
- Tem um batom ai, olhe, olhe, está guardado! Não viu?
- Ah, tome – disse, devolvendo o batom.
- Não, o batom está aí para guardar o lugar, senhora! Esses lugares são todos meus – falou a mulher, com cara de quem quer briga.
Eu continuei fingindo que não tinha entendido. Veio o marido da velha. O homem repetiu que aqueles lugares eram das filhas e dos genros, que ainda não tinham chegado.
- Eu cheguei antes deles, senhor – disse para ele.
O velho ficou nervoso.
- A senhora saia daí já que eu estou guardando.
- Ora. Se as cadeiras fossem mesmo do senhor, o senhor podia guardar. Mas as cadeiras são do teatro – eu respondi, disposta a criar caso.
Pensei que, se eu ficasse ali, firme, fixa e imutável, o homem esqueceria de mim. Que nada. Ele e a mulher ficaram ao meu lado, em pé, me intimidando. Comecei a ficar com medo. Caramba, não acham que deveria existir uma associação de defesa dos espectadores?
Uma hora as filhas e os genros chegaram. Todos começaram a me apontar, como se eu fosse uma criminosa. Uma das filhas veio até mim, indignada. Como eu tinha me sentado no lugar dela? Falta de educação a minha, absurdo!
Resolvi usar o método da mudez. Eu não ia sair dali e nem abrir a boca. Mas não vi nada da apresentação da minha filha, pois passei o tempo presa naquela cadeira, aflita e preocupada em não ser assassinada pelo casal de velhos nervosos e suas filhas. Não me atrevi nem a ir ao banheiro, olha que loucura.
Olha. Poucas coisas me deixam tão furiosa como pessoas que guardam lugar. Não sei de onde vem isso, acho que não é por mal, as pessoas estão acostumadas a pagar caro pelas coisas e querem o melhor. Além disso, homens vivem em grupo, em família. Nada mais natural que marcar o território e querer ter os seus ao seu lado. Mas existe um exagero. Um ódio contido que deságua exatamente ali, nas filas cheias de poltronas de um auditório. Muita gente quer descontar ali as suas frustrações.
Isso é coisa de gente que nunca conseguiu achar seu próprio lugar na vida. Nem na família, nem no trabalho, nem entre os amigos. São pessoas carentes, deslocadas, perdidas, sem ter para onde ir nem onde parar. Só um homeless de alma precisa segurar uma cadeira com tanta força.
Decidi que nunca guardaria lugar. É ótimo se sentir livre nessas horas de corre corre e pânico por uma coisa tão mesquinha como um assento para a sua bunda. Hoje em dia olho com dó os guardiões de poltronas. Coitados. Que vida pequena.
Bom, o resultado? Assisto muita coisa em pé, no chão, de lado, ou torta, mas feliz. Sou uma mulher de lugar desmarcado.
Nada como a liberdade, gente, nada como a liberdade.

sábado, 12 de novembro de 2005

as mulheres, os casamentos, o futuro do pretérito



Nós, mulheres, morremos de vontade de casar.
Passamos a adolescência com medo de ficar solteironas, temos pavor de encalhar, atravessamos dias, noites e madrugadas da juventude pensando em homens, moços, meninos, rapazes, coroas, humanos do sexo masculino.
Um dia, afinal, casamos.
E depois, só reclamamos.
Não é que é ruim ser casada, nada disso. Eu só queria entender é porque o casamento, a coisa que mais queremos durante a juventude, dá tanto tédio nas mulheres depois de uns poucos anos. Acho que para nosso cérebro, que passou anos e anos tentando conquistar um homem atrás do outro, mudar de idéia de repente deve ser esquisito. É como quando descemos de um barco que sacode por causas das ondas – mesmo em terra firme a cabeça ainda balança por um bom tempo.
Os casamentos inutilizam os miolos responsáveis pela sedução? A monotonia da vida de casada que cria monstros carentes? Sei que vão me achar exagerada, mas acho que na verdade as mulheres casadas vivem num tipo de limbo. Quando somos mocinhas, nos ensinam a ser sempre lindas para seduzir e encantar. Depois de casadas, temos que continuar lindas, mas não podemos seduzir ou encantar ninguém, em hipótese alguma, pois afinal de contas, você é uma mulher casada, ora.
Coisa mais maluca.
Olha, na minha estrambótica opinião, talvez os casamentos devessem durar, no máximo, cinco anos. E pela lei, depois desse tempo você seria obrigada a se separar do seu marido. Se fosse assim, tenho certeza que muitas mulheres implorariam ao juiz, de joelhos. Tudo que é proibido tem um gosto melhor.
- Me deixa ficar com ele, senhor juiz, eu amo esse homem.
Não existem muitos romances nas nossas vidas, essa é questão. Precisamos dessas proibições para amar. Um verdadeiro romance é carregado, denso, arrastado. Durante nossas existências cabem muitas crônicas, muitas poesias, alguns contos e, se as condições climáticas forem favoráveis, uns poucos romances.
O que eu noto é que, muitas vezes, não são desses romances que saem os casamentos. É como se, inconscientemente, quiséssemos deixá-los intocáveis, puros, para que pudéssemos vivê-los em sonhos, em fantasias. É como se nossa natureza precisasse dos amores não solidificados, para poder usufruir da beleza da solidão. Dos nossos romances ficam histórias que contamos em segredo para as amigas no final da noite, fica a melancolia dos dias tristes, fica a lágrima de não ser reconhecida, fica a saudade depois de beber um pouco a mais. Em algum lugar lá no fundo sabemos que a união vulgariza a mágica de uma verdadeira paixão. O futuro do presente, quando vivido intensamente, enterra os sonhos. O bonito está nas coisas que não acabam nunca.
No final das contas, precisamos do tempo verbal do impossível. A mágica de um romance é o futuro do pretérito.
Eu gostaria.
Eu desejaria.
Eu me entregaria para sempre.
Ahá. Eu, hein? E quem eu para resolver esse enrosco mundial?

sexta-feira, 11 de novembro de 2005

os capacetes e a casa dos anões



Como disse ontem, a obra da ilha está no começo, nas fundações. Foram construídos dois escritórios, um na ilha e outro no continente. Geralmente escritório de obra é a maior bagunça, com amostras de material e pilhas de plantas empoeiradas, além do velho problema de banheiro que nunca é decente, principalmente para as damas.
Mas nessa obra não. Entrei no barracão dei de cara com a maior arrumação. Nas paredes, estantes com plantas dentro de plásticos, banheiro feminino e masculino, mesa impecável, computador com mouse que funciona, copos descartáveis para café.
Olhei para os lados. Numa das paredes um monte de ganchinhos com os capacetes com o nome em cima, inclusive o meu. Na outra parede, mais ganchos com capas de chuva pra andar de barco. E no meio a minha, que eu tirei para usar.
Gente, que escritório organizado.
Não que eu ache ruim essa coisa de organização, mas aquilo me pareceu extremamente infantil. Tive vontade de rir, acho que lembrei da história da Branca de Neve. Sete camas, sete canecas, as sete cadeirinhas, sete tigelinhas de sopa e sete casaquinhos. Dunga, Zangado, Atchim, Dengoso, Mestre, Soneca, Feliz e a arquiteta Lúcia.
Engraçado.
Olhei para a cara do engenheiro. Quem seria ele?
- Esses ganchos, etiquetas, capacetes, capas. Quem fez isso? - perguntei, cautelosa.
- Eu – ele respondeu, orgulhoso – tenho mania de organização. Minha mulher implica um pouco, mas eu sou assim.
Passei a olhar o engenheiro Mestre com outros olhos. Um engenheiro digno de uma Branca de Neve. Apesar de eu estar implicando um pouco, acho que entendo o cara. No passado eu era uma excelente organizadora de gavetas, mesas, estantes. Era uma coisa disfarçada, eu ‘escondia’ essa mania com medo de me acharem obsessiva e compulsiva.
A obsessão desapareceu de um dia para outro. Não me perguntem porquê. Sem mais nem menos a coisa inverteu e eu me tornei a maior bagunceira, dez bilhões de vezes maior do que eu jamais imaginei que fosse. Hoje eu vivo soterrada num pântano de papéis que volta e meia coloco em pilhas ligeiramente lógicas.
E só.
Sinto que minha vontade de organizar é contrária ao pensamento, à criação, à paixão. Preciso do caos extremo para crescer. O meu ex-professor da FAU, o Paulo Mendes da Rocha, dizia que uma mente em criação é como uma águia em pleno vôo, se debatendo toda e soltando penas para todos os lados. Não devemos ter medo da bagunça, do caos, da confusão. São essas coisas que nos acendem. A felicidade da desordem é sempre ligeiramente maior que a da organização. Reparem. Vai entender a natureza humana.
Sei lá se fica claro o que eu quero dizer. Acho que aprendi, um dia, que ganchinhos com capacetes e nomes não significam eficiência, eficácia ou talento. Aliás, não significam nada a não ser que você vai pegar mais rápido o capacete e a capa.
Mas não tive coragem de expor essa teoria ao engenheiro Mestre. Talvez ele faça isso para contrapor a bagunça da sua vida, e, se ele não pode arrumar tudo, arruma ao menos os capacetes e as capas. Quem sou eu para julgar.
Um dia ele descobrirá, assim como eu, que os contos de fadas não são as melhores histórias.

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

a pedra rachada



Ontem tive que viajar a trabalho. Fui até uma ilha onde coordeno uma obra de uma casa, em Angra dos Reis. Os serviços estão começando, o local estava coberto de lama, garoava fininho e todo mundo trabalhava sem parar.
Percorri a obra toda para ver como andavam os trabalhos de limpeza do terreno e fundações. E, sem mais nem menos, eu reparo numa enorme pedra ao lado da piscina.
Bom, todo mundo sabe que eu adoro pedras, que tenho coleção de pedras-coração, que cato um monte em todos os lugares que vou e que adoro ganhar de presente.
Mas essa pedra me pegou de surpresa.
É uma pedra imensa, que até então estava escondida no meio das plantas. Ontem olhei para ela e levei um susto. Não tanto por causa do tamanho, em praias as pedras em geral são grandonas. O problema é que descobrimos que ela, em algum momento da sua existência, rachou ao meio e partiu-se em dois.
Olha só.
Crac.
Os engenheiros, mestres e técnicos deram mil explicações: foi por causa da água que desce do talvegue, foi por causa da movimentação do solo, o material da pedra que é permeável, blá, blá, blá. Eu olhava embasbacada. O problema não é entender porque aquilo aconteceu, e sim conviver com ela. É curioso como a natureza nos pega de surpresa. Não temos domínio algum sobre as rachaduras da vida. Nenhum.
Eu percebi também outra coisa. A floresta, a mata, a vegetação, de um certo modo, estavam cuidando daquele machucado ao longo dos anos. Mas nós, seres superiores, formados em universidades e cheios de poder, retiramos sem dó as plantas, a terra, a roupa, a sua proteção. E a enorme cicatriz surgiu no meio de todos, escancarada, fendida, machucada. Como se estivesse nua. Como se sangrasse.
Olhar para aquele gigante partido me deu uma enorme agonia. É como se a pedra não tivesse agüentado, é como se não fosse forte o suficiente. Aquilo é marca da fraqueza, da derrota. E quem morar ali terá que conviver com essa dor.
Isso mostra que nada é eterno, pois mais que seja sólido. Se uma pedrona dessas racha ao meio, imagine como é fácil rachar a nossa vida, como se fragmentam os nossos relacionamentos, os nossos casamentos. Aquela pedra rachada foi, para mim, uma lição de vida. Conviver com ela e com a sua feiúra incômoda é algo que eu precisaria aprender.
Porém, claro, ontem ninguém percebeu tudo isso. Sabe como é engenheiro e gente de construção. O que eles gostam são piadinhas infames sobre o governo, sobre portugueses, loiras e casamentos. E assim eu fui, voltei e não peguei nenhuma pedra. Voltei com as mãos abanando, mas com uma pedra enorme na cabeça.
Un corazòn partido.

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

heitor penteado


Gente, hoje não tem crônica que eu vou viajar e volto só de noitão. Mas deliciem-se com a a amiga da Anna, a mulher-crônica-viva.
"... Lúcia, essa minha amiga é uma crônica viva. Um dia pegou um táxi para a avenida Paulista e o motorista perguntou:
- Pego a Heitor Penteado?
Ela emudeceu e olhou para o cara pelo espelhinho. Ele insistiu na pergunta e ela respondeu, constrangida e passando mão no cabelo dele:
- Olha, moço, tá bom, mas aqui tá meio despenteado..."

terça-feira, 8 de novembro de 2005

dona lampadinha


Era uma longa viagem de trabalho de dez horas, cinco de ida e cinco de volta. No carro estávamos eu, os engenheiros e uma arquiteta que trabalha numa loja que vende luminárias e que iria estudar a iluminação da casa que estávamos reformando. Eles iam ver a obra, a moça ia orçar a iluminação e eu ia coordenar os trabalhos.
No meio do caminho, a moça me diz que vai aproveitar para trabalhar um pouco.
- Trabalhar?
- É. Vou verificar um trabalho de outro cliente e conferir um orçamento - explicou.
Abriu uma planta imensa (um pouco em cima de mim), pegou lapiseira, régua e montou um escritorinho com o carro balançando. Aquilo me dava até tontura.
Uma hora ela começou a falar sozinha.
- Puxa vida, isso não vai dar certo. Esse cliente não sabe como a casa dele é grande, ele diz que não precisa de tantas luminárias e que não quer tanta luz. Imagina, vai ficar a maior escuridão.
Hoje em dia iluminamos demais tudo ao nosso redor – casas, escritórios, lugares públicos. Acabou-se a penumbra, pensei, ali ao lado da moça, que chamávamos de 'dona Lampadinha'.
Antigamente as casas eram escuras, principalmente no interior, nas fazendas, ou em lugares muito quentes, com muito sol. Eu lembro da casa dos meus avós, no interior de São Paulo. Era um alívio entrar lá dentro, era repousante para os olhos um lugar sem tanta claridade. Minha avó achava chique casa escura, inclusive colocava cortinas escuras e grossas na sala e nunca abria.
Depois houve um tempo, logo que eu me formei, que era bacana só acender abajur. As casas nem deviam ter ponto de luz no teto. Tudo iluminação indireta. De novo era chique demais ficar meio no escuro, penumbroso. Porém isso funcionava só para as salas, no resto da casa as pessoas nem mexiam: colocavam um globo e pronto. Imagina se alguém, naquela época, ia se incomodar com uma luminária de banheiro ou cozinha. E nos quartos sempre foi bom ter um abajurzinho para ler um livro, ou para escrever uma carta, estudar e só isso.
Mas de repente virou uma loucura essa coisa de iluminação. Alguns arquitetos se especializaram em projetos luminotécnicos. Hoje são colocadas, no mínimo, cinco luminárias em cada quarto, algumas embutidas, outras pendentes (detesto esta palavra), arandelas nas paredes, fora aquele monte de abajures com design importado. As salas então, viraram céus estrelados, com aquela lampadaiada que acende em diferentes circuitos. Aliás, não posso falar assim, aquilo são cenários, hoje em dia as pessoas precisam ter opções de iluminação.
Além disso, as luminárias modernas fazem coisas bem esquisitas. Lavam a parede com luzes especiais, varrem o espaço todinho da sala, se direcionam a pontos certinhos, se escondem e iluminam por reflexão, trabalham com filtros diferentes. As luzes de hoje são muito mais inteligentes que as do passado. Praticamente pós –graduandas em iluminação.
Olhei de solslaio para o projeto que a Dona Lampadinha estudava no colo.
- Que lugar é este aqui? - mostrei com o dedo.
- A garagem - ela respondeu.
- Uma, duas, três... oito, nove, dez luminárias? Você colocou dez luminárias numa garagem? Eu concordo com teu cliente – falei, impressionada - Acho que não precisa disto tudo. Vai ver que ele é um homem obscuro, que não gosta das coisas às claras. Vocês deveriam dar o direito de uma pessoa não se iluminar tanto.
Percebi que ela não gostou da minha opinião
- Olha - disse, séria - É bom ter bastante luz. Hoje em dia tudo tem luminária, sabia? Até carro.
E ela, exibida, apontou o teto. Numa espécie de forro rebaixado criado no capô, o carro tinha uma luminária bárbara para iluminar a parte de dentro. Um spot enorme, embutido, branco, com um design modernérrimo.
E com essa a Dona Lampadinha me desligou. Eu achei melhor ficar quieta, ou melhor, bem apagada.

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

dentes e parentes



Foi apenas uma coincidência.
O Zé teve que tirar o dente do siso, mas que era para ser uma coisa simples, complicou. O dente espatifou na hora de sair, e a operação arranca-dente, que era para durar menos de uma hora, durou quase três. No dia seguinte ele acordou inchado e com uma enorme mancha roxa-esverdeada que cobria a bochecha. Parecia que tinha levado uma surra, e, de um certo modo, levou. Resolvemos ficar o final de semana em casa, quietos, para não ter que explicar para Deuseomundo.
Bom, o Zé é daquele tipo de pessoa que se impressiona com coisas de doença. Eu não ligo, fui filha e neta de médicos, mas ele se olhava de meia em meia hora no espelho com uma espécie de sofrimento deslumbrado, reparando em minúcias, preocupado.
- Olha que esquisito. Está roxo no meio, verde em volta. E esse gosto na minha boca? Deve ser sangue.
- Zé, não tem sangue nenhum na sua boca – respondi, investigando.
- Nossa. E se for pus?
- Credo, Zé. Não é pus, você está cicatrizando direitinho.
Ele voltava ao espelho.
- Agora está amarelo nesse cantinho.
Achei que passaríamos o final de semana assim, ele atormentado e eu abrandando os seus pânicos, quando o telefone tocou. Era alguém da família dele, avisando sobre a morte de uma tia. O velório seria naquela tarde.
- Ichi. Será que eu vou?
- Se está doendo não vai, a gente avisa que você tirou o dente.
- Não é isso. Velório é velório, eu devo ir.
Concordei. O Zé perdeu o dente, mas a família perdeu uma tia. Uma tia não se compara com um dente. Nos arrumamos. Fomos.
Claro que o Zé estava bizarro com o inchaço e a cara roxa. Sabíamos que teríamos que explicar para todo mundo que ele tirou o dente, que foi uma cirurgia complicada, mas achamos que aquilo, perto da morte, era uma coisa ínfima, pequena, que passaria despercebida. Afinal, uma morte.
Adentramos no recinto e passamos a cumprimentar as pessoas. O Zé na frente, eu atrás. O clima era de consternação, de pêsames. Porém, de repente ouvi murmúrios bem exacerbados. Parecia que alguém estava tendo um ataque. A voz, obviamente feminina, dava berros estridentes num tom de voz exaltado. Velório sempre tem isso, a morte deixa algumas mulheres com nervos a flor da pele.
Assustei. Seria alguma prima, filha ou mãe desesperada? Todo mundo olhou ao redor, preocupado.
Era uma das irmãs da falecida. Mas ela não berrava por causa da morta. Ela berrava por causa do... Zé.
- Titine! Você está tooodo deformaaado! Que é isso, Titine! Defooormaaado!
Titine é o apelido de infância do Zé. Olhei para ele e ele estava, além de roxo e inchado, vermelho igual a um pimentão. A tia, na emoção e tristeza de ver a irmã morta, olhou instintivamente para o Zé, viu seu rosto roxo e, sem pensar, pensou imediatamente na falecida. Acho que as pessoas, quando estão transtornadas diante da inevitabilidade da morte, não pensam como a gente pensa. Falta um tanto de lógica e bom senso. Óbvio que a morte da tia não tinha nada a ver com o dente do Zé, mas como a tia morreu de repente, sem sofrimento, sem doença e sem inchaço, a irmã, no seu inconsciente, achou que faltava alguma coisa. E quando viu o Zé cheio de hematomas horríveis, entendeu. A morte súbita da irmã se completou com a visão do rosto inchado e roxo do sobrinho.
Acho que o Zé, com seu hematoma, de um certo modo fechou o ciclo da vida e morte da tia.
Coitado.
Tudo que ele queria era sumir, mas depois do grito “titine-você-tá-todo-deformado” todas as pessoas vivas olharam para ele para ver o grau da deformidade que fizera a tia berrar tão alto. Devia ser tão horrível quanto a morte, obviamente. Os que sabiam quem era “Titine” olhavam diretamente para ele, e os que não sabiam procuravam uma pessoa “bem” deformada. O local, que já tinha ares sepulcrais, adquiriu um real silêncio de morte, e as palavras “titine-deformado” ecoavam no salão sem parar.
Era impossível salvá-lo daquele pesadelo.
Foi ele mesmo que encerrou a questão. Olhou bravo para a tia e disse num tom seco.
- Não exagera, tia. Eu só tirei o dente do siso, coisa de nada – falou, irritado.
Voltamos para casa e ele não reclamou de mais nada. E como vida continua, o inchaço desapareceu mas a frase ficou na nossa vida até hoje. Toda vez que alguém se desespera ou que sentimos um clima de pânico por perto, ele me olha e brinca:
- Titine, você tá todo defooormaaado!

sábado, 5 de novembro de 2005

falando dentro das mesas



Fui na Bienal de Arquitetura no domingo. Além do Zé, tenho muitos colegas expondo lá e adoro ver as exposições internacionais.
Sempre achei estranhas as Bienais. É coisa demais. Qual a graça de entulhar um monte de coisas dentro de um lugar? Saio sempre frustrada, como se tivesse perdido uma parte.
- Ah, mas são todos os artistas ou arquitetos do mundo.
- Ah, é bom porque você pode ter um panorama geral da arte ou da arquitetura.
- Ah, é uma oportunidade única.
Eu vou, senão fico sem assunto, mas que é um exagero, é. Imagine se existisse uma Bienal de comida, onde você tem que comer todas as comidas do mundo, ou uma Bienal de cinema, onde você precisa ver todos os filmes do mundo ao mesmo tempo, um ao lado do outro? Porque temos que ter arte e arquitetura em overdose de dois em dois anos?
Depois de respirar fundo, comecei a andança. E notei uma coisa estranha. Bem, a minha leitura da Bienal não é arquitetônica, mas para isso existem os críticos e estudiosos. A minha leitura foi de uma coisa que não tem nada a ver com arquitetura. Eu encasquetei com as televisões.
Caramba, porque diabos uma Bienal de Arquitetura tem tanta... televisão?
Quase todos os estandes tinham televisão. É impressionante. Podiam nem ter projetos, mas sempre existia um monitor. Todas as televisões ficavam ligadas o tempo todo, ininterruptamente, e, em cada uma delas um arquiteto falava sobre seus projetos e obras.
Existiam monitores nas paredes, em totens, em tetos. Num dos estandes, o arquiteto falava numa mesa: dentro da mesa estava uma tv deitada, e dentro da tv o arquiteto tagarelava. Olha, tinha até amigo meu falando.
Achei estranho demais aquilo. É como se uma coisa que nunca teve voz, a arquitetura, começasse a emitir sons. Mas o problema é que pouquíssima gente ouvia. As televisões ficavam ligadas para o nada, falando, berrando, discorrendo, repetindo sem parar aqueles monólogos. Aquilo começou a me afligir. Talvez isso seja bem representativo de um mundo onde tão pouca gente respeita a nossa profissão. Pode ser, não sei.
Só sei que eu, que sou a maior caipira, passava pelos corredores e quando via um arquiteto falando, parava para ouvir. Não conseguia ir onde queria, me dispersei toda. Dava pena, entende?
Fiquei pensando porque isso me incomodou tanto. Talvez eu, assim como muita gente, também fale sozinha, repetindo sem parar as coisas que eu acredito. E talvez muitos de nós, as pessoas que falamos sozinhas, nunca tenhamos a sorte de ser ouvidos por alguém que passa. Não que o que é dito não seja interessante, importante ou poético, mas apenas porque o nosso estande é no fundão, é escondido, é pobre, é fora do caminho ou tem pouca propaganda. São essas coisas da vida, do acaso. São acidentes que nos empurram para o destino. É essa casualidade que nos coloca onde bem entender que me deixa completamente angustiada. Eu olhava ao redor naquela Bienal, confusa, como se eu não pudesse fazer nada, absolutamente nada diante de todas aquelas vozes sem interlocução.
Foi isso o que ficou da Bienal para mim. Uma coisa meio triste. Não ficou arquitetura, não ficou urbanismo. Ficou a idéia da inevitabilidade do acaso diante das nossas vontades e desejos. Fiquei pequena demais ali, como aquele homem-mesa falando para o nada e não tendo a sorte de passar alguém ali naquela hora para ouvir.
Dentro de uma mesa. Coisa esquisita.

sexta-feira, 4 de novembro de 2005

a cirurgia



A segunda vez que tive que encenar por causa de um projeto foi muito pior. Também envolveu um médico e um projeto para uma outra clínica. Quando você faz um projeto de uma coisa e dá certo, você acaba arrumando outros projetos parecidos para fazer. Acaba especializando, mesmo sem querer. Nessa época eu fiz muitos consultórios e clínicas.
Bom, o dr. Brandão fazia implante de cabelo. Tinha viajado para o exterior e aprendido diversas técnicas para transformar homens carecas em cabeludos maravilhosos. Nunca entendi exatamente qual a diferença entre seu método e um implante tradicional, mas ele dizia que o dele era melhor e mais rápido.
- Eu preciso de um espaço adequado para as cirurgias. Como a intervenção é moderna e inovadora, preciso de um espaço moderno e muito inovador.
- Onde podemos ver um centro cirúrgico como esse que você imaginou? Alguma clinica, hospital? – perguntou meu sócio.
- Tem um lugar que tem, mas vocês não podem ir.
- Porque?
- Ora, porque é a clinica do meu concorrente. Embora ele seja um colega, não posso pedir a ele para vocês irem lá.
Concordamos. Não pegava bem. Ele ficou de achar outro lugar.
Depois de uma semana, recebemos um telefonema do dr. Brandão.
- Consegui.
- Conseguiu o que?
- Uma visita na clínica do médico concorrente. Vocês vão poder conhecer o centro cirúrgico e tudo mais. Só não vão poder tirar medidas, só olhar.
- Ah. E ele vai estar lá? – perguntei.
- Sm, mas quem vai mostrar tudo é uma moça da equipe dele, a Patrícia.
Meu sócio foi logo avisando.
- Nem vem. Em centro cirúrgico eu não entro. Você sabe que eu não posso ver sangue nem sentir aquele cheiro.
Suspirei. De novo? Tudo eu?
A Patrícia me ligou no dia seguinte. Combinou de me pegar no escritório às três.
Era uma moça loira, cabelos encaracolados, falante, e, depois de um pequeno papo, descobri que a coisa não era exatamente como o doutor Brandão dissera.
Ela ia mostrar a clinica, mas eu iria escondida e teria que me fingir de... prima.
- Como é, Patrícia? Sua prima?
- Que tem de mais? Você será a minha prima que veio de Cuiabá, que fez enfermagem também e está aqui comigo essa semana.
- Patrícia, eu...
- Fica fria – ela disse – Responde só ‘sim’ ou ‘não’ e sorria. Ah, e se alguém perguntar, fala que fez enfermagem na Federal e que acabou no ano passado. O resto eu me viro.
Sei lá, tive vergonha de desistir naquele instante. É dessas coisas que me dão na hora “h” e que eu fico sem ação e me deixo levar. É um eterno medo de falar não e jogar tudo para o alto. Um dia eu aprendo a ser mais esperta e descolada, pois eu sou uma verdadeira panaca.
Ô coisa.
Fui.
A coisa era bem pior do que eu imaginei. A Patrícia estava indo para a clínica do médico concorrente porque estava escalada para fazer uma cirurgia. E eu, para conhecer o local, teria que entrar com ela.
Na cirurgia.
E mais.
Eu teria que assistir a cirurgia.
Na verdade, era pior ainda. Ela tinha dito para o médico que eu nunca tinha visto um procedimento daqueles e que estava curiosa. Prima do interior, sabe como é. E ele resolveu me explicar tudo.
- Você desmaia?
- Não, mas...
Entramos no local. Conheci as salas de espera, as salas de consulta, as salas de exame, a copa. É minha prima, ela dizia a todos, toda pirilampa. Depois subimos ao andar superior, onde eu tive que me paramentar toda com uma roupa de operação, touca e pantufas. O médico, o concorrente do Dr. Brandão, chegou e me disse que, como eu estava interessada no procedimento, ia me explicar passo a passo. Nojento. Asqueroso. Repugnante. Ainda bem que eu estava com a máscara, pois ninguém via minha expressão de asco e minhas caretas. Eu tremia da cabeça aos pés. Não sabia para onde olhar, não conseguia entender patavina do projeto da sala cirúrgica e estava morta de medo do médico descobrir que eu era uma farsa a chamar a polícia. Eu poderia ser expulsa dali a qualquer instante. Ou sei lá. Presa.
Depois de uma eternidade, a cirurgia acabou. Consegui ser mais rápida que todos, peguei minhas coisas e dei no pé. Correndo. A prima falsa fugida. Cheguei no escritório branca de pânico. Raiva que me deu desse doutor Brandão.
- E ai, como foi? – perguntou o meu sócio – deu para entender o centro cirúrgico?
Meu sócio era completamente careca. E eu estava furiosa.
- Não. Mas sei direitinho como implantar uma floresta na sua cabeça. Quer que eu faça isso?

quarta-feira, 2 de novembro de 2005

franka, a espiã


São frias que a gente se mete apenas porque quer arrumar trabalho.
Não é por mal. É por trabalho, eu juro.
Uma vez o Zé me disse que quem tem escritório próprio é um eterno desempregado. Concordo. Sempre vivi assim, o tempo todo tentando arrumar trabalho, e quando consegue já é hora de arrumar outro.
Bom, um dia fomos chamados para fazer o projeto de uma clínica de dermatologia, eu e meu sócio. A clínica era comandada por uma médica, uma mulher muito rica com pouco talento para a medicina, que tinha um sócio não tão rico mas com muito talento. Eles iam transferir o consultório para um local maior e mais bem equipado. Era trabalho para burro.
Numa das primeiras reuniões ela tentou explicar o funcionamento da clínica e esquematizar um fluxograma.
- Temos muitos pacientes e precisamos de muitas salas interligadas - ela explicou - E os pacientes não podem se cruzar das sala de consulta para as salas de exame ou para os centros de pequenas cirurgias, que serão três.
- Faremos alguns estudos – sugeri.
- Tive uma idéia melhor – disse a médica, a maluca da médica – Porque um de vocês não passa o dia aqui para entender o funcionamento? Se for o caso, vocês podem até acompanhar algumas das consultas.
Concordamos, sempre é melhor ver no local. Mas eu não imaginava aonde ia parar a coisa.
- Vou eu ou vai você? – perguntou meu sócio, já sabendo a resposta.
Ele jamais iria, nunca teve paciência para essas coisas. E no dia combinado lá fui eu me meter a detetive.
Céus. Que absurdo.
Bom, cheguei às nove horas e encontrei com o médico, o sócio da médica rica. Ele era um doutor jovem e bem bonitão, com uma pele lisa e brilhosa, digna de um dermatologista. Quando entrei na sala, ele me cumprimentou e me deu um jaleco branco onde se lia no bolso: Dra. Jaqueline.
- Dra. Jaqueline?
Ele sorriu, travesso.
- É uma das minhas assistentes no hospital. Acho que com esse avental você chama menos atenção dentro da sala.
- Mas eu preciso ficar dentro da sala?
- Claro! É bom, assim você vê a minha movimentação.
Achei estranho, mas tudo bem. O médico estava todo exibido para ser olhado o dia todo. Vesti o jaleco e ele chamou a secretária. Explicou quem eu era, pediu segredo e orientou-a a chamar-me de "Dra. Jaqueline".
Eu intervim.
- Doutor, eu sou arquiteta. Não acha que seria melhor eu...
Ele interrompeu, decidido.
- Não. Os meus pacientes não ficariam a vontade com uma arquiteta dentro da sala.
- E se algum dos seus pacientes for parente meu? Ou conhecido?
- Hum, não tinha pensado nisso... – ele disse, chamando a secretária de novo – Aline, traga a listados pacientes de hoje, por favor.
Li todos os nomes. Ninguém conhecido. Sentei-me na cadeira ao lado dele e peguei meu caderno para anotar.
- Olha, é melhor você usar um receituário meu para anotar. Chama menos atenção.
Deusdocéu.
A primeira paciente era uma senhora magrinha, de cabelos brancos. Tinha descamações no pele.
- Essa é Jaqueline, minha assistente, dona Miriam. Está fazendo um estágio aqui na clínica.
Eu sorri sem graça para a D. Miriam.
- Que sorte a sua, querida – me disse a mulher – ele é um médico e tanto – completou, dando uma piscadinha e sugerindo que ele era um verdadeiro galã e que eu devia aproveitar.
Fiquei ao lado dele por mais de seis horas, acompanhando todas as suas consultas, seguindo-o até a sala de exames, retirando pintas e manchas nas salas de cirurgias, arrancando fios de cabelos e observando seu vai vem nas diversas salas. Realmente ele atendia de dois a três pacientes ao mesmo tempo sem que nenhum percebesse. E não aprava quieto.
Assim foi com todos pacientes da lista e mais os de retorno. Ele na frente e eu sempre atrás, com o jaleco da dra. Jaqueline e com o receituário nas mãos, segurando um ataque de riso.
Claro que aquilo foi anti ético da parte dele e completamente anti profissional da minha. Claro que também era completamente desnecessário. Mas eu fui, e sei que muitos colegas também iriam se dependessem disso para pegar uma obra e um projeto. No final, fizemos o projeto e a obra, mas meu trabalho de espionagem foi em vão. O médico bonitão brigou com a médica rica e foi substituído por outro que usava as salas de modo totalmente diferente.
Mas até hoje, toda vez que vou a um hospital, leio atentamente o nome das médicas nos uniformes. Quem sabe um dia eu ainda dou de cara com a verdadeira a dra. Jaqueline?

terça-feira, 1 de novembro de 2005

A FAL


Atenção, isso aqui não é uma crônica, é apenas uma perguntinha. Favor responder, eu estou pedindo e não custa nada. A Fal, aquela, que tem o blog com o drops e tal, vai lançar um livro novo e está orçando gráficas. Só que para saber se a empreitada vai funcionar, ela precisa conhecer a quantidade de interessados.
O livro da Fal, "O Nome da Cousa", custa 25 reais na pré-venda. Se você quiser um, escreva pra livronovodafal@gmail.com . Se quiser mais de um, escreva também e diga quantos.
Blogueiro e leitor de blog é assim.
Um ajuda o outro, sempre.
beixos.

o pilar da dona Wanda



- Que bom que você chegou – falou a minha mãe – A Wanda já me ligou umas dez vezes. Vamos? – completou, pegando a bolsa e me puxando para fora da casa dela.
Entramos no elevador.
- Que andar ela mora, mãe?
- Segundo.
Minha mãe me ligara uns dias antes. A vizinha de baixo estava reformando o apartamento e ela ficara impressionada.
- Deusmelivre. A maior doidice. Você precisa ver.
Tentou me explicar, sem sucesso. Diante das minhas perguntas, resolveu que eu deveria ir lá e olhar com meus próprios olhos. E obra em prédio é sempre um sucesso. Todos vão fuxicar, não entendo porque as pessoas acham que espaços em construção sempre são públicos.
- Daí você vê se os arcos da sala. Parece uma caverna, uma coisa fantasmagórica, filha. Ela fechou todas as janelas. Vai gastar uma fortuna de conta de luz.
Assim, tive que largar o escritório na hora do almoço para visitar a obra da dona Wanda. Ela adorou a visita, estava toda exibida para exibir seu talento arquitetônico.
O problema é que a dona Wanda se achava uma verdadeira artista. Além de arquiteta (contou que era sua terceira obra), ela fazia esculturas e pintava quadros. Gastou mais de meia hora me mostrando as pinturas que estavam empilhadas no hall por causa da obra.
Explicou que passou por diversas fases na carreira artística: palhaços chorando, paisagens de montanhas nevadas, vasos de flores e a mais incrível e horrível, da qual se vangloriava: a fase abstrata. Pareciam vômitos, os quadros dessa fase. O mais impressionante era sua assinatura: um enorme “w”, que se parecia com dois enormes seios.
Como os dela.
- Agora, tcham-tcham! – ela disse, levantando o plástico que fechava o pórtico da sala em reforma – A obra!
Levei um tremendo susto. A dona Wanda era completamente pirada. Aquela sala, que era idêntica à da minha mãe, fora transformada num tipo de porão de castelo medieval. Eram arcadas para todo lado, feitas de tijolos maciços e revestimentos de alvenarias em todas as paredes, inclusive em parte do teto. As janelas, ou melhor, o que sobrou delas, ficavam bem ao fundo dos inúmeros pilares falsos e profundos que rodeavam a sala. Uma loucura a arquitetura da dona Wanda. Eu não sabia o que falar.
- Nossa, dona Wanda, que... interessante a sua proposta.
O que leva uma mulher transformar um ótimo apartamento dos anos sessenta, nos jardins, com espaços claros e iluminados num... calabouço?
Ela estava eufórica, e eu, de queixo caído.Os desejos secretos dos imaginários das pessoas me assustam. Olhei a cara comum da dona Wanda e tive medo. Quem seria, realmente, essa mulher?
No meio da obra do cárcere, digo, da sala, a empregada entrou com um cafezinho.
- Raimundo, meu filho – ela falou para o pedreiro – Você pode parar um instante com essa quebração?
O rapaz parou de marretar e sentou no chão. Minha mãe passou a elogiar com uma voz fingida a reforma e eu olhei para os lados.
Foi quando eu vi.
Bom, o que o pedreiro estava martelando ali ao lado era um dos pilares do prédio. Ele já tinha cavado e destruído mais ou menos meio palmo para dentro e muitas das ferragens estavam expostas.
- Dona Wanda. O que é que a senhora vai fazer aqui? - perguntei, apontando o pilar.
Ela sorriu, toda exibida.
- Ah, com essa viga?
- Isso é um pilar, dona Wanda.
Ela deu uma risadinha safada.
- Hihihi. Eu sempre troco os nomes! Pois é, eu vou tirar esse “pilar” daí, ele está atrapalhando. Mas como é difícil! – ela olhou para a minha mãe – Olha como os prédios eram bem construídos na nossa época: eles colocavam até ferros dentro das paredes. Uma beleza.
Minha mãe ficou muda, eu idem. Como fazer para impedir aquela vândala de derrubar o prédio inteiro?
Comecei a berrar.
- Dona Wanda, a senhora não pode tirar isso daí! Isso é um pilar, é a estrutura do prédio! Se a senhora tirar esse pilar o prédio todo vai cair!
A mulher me olhou intrigada.
- Hã? Como assim?
- É a estrutura, dona Wanda, se a senhora tirar cai tudo no chão!
- Sério? Mas é um só... – ela argumentou.
Olhei para a minha mãe em pânico.
– Mãe, não tem nenhum engenheiro nesse prédio?
Minha mãe, que não é metida a artista nem a arquiteta e tem bom senso, percebeu a gravidade da coisa.
- Não mexe nisso, Wanda, vamos falar antes com o síndico – disse, prudentemente – ouça minha filha. Ela é arquiteta e entende de engenharia.
- É perigoso mesmo? – ela me olhou, confusa - E eu achando que era uma parede bem construída... – falou a dona Wanda, balançando a cabeça, enquanto eu ordenava ao pedreiro para parar com aquela doideira já.
Bom, depois de um tempo voltei à masmorra da dona Wanda para ver como ficou. O pilar de concreto, graças a mim, ainda estava lá, no meio da sala. Foi revestido de espelhos, uma idéia que tirou de uma revista italiana. O resto da sala naquela escuridão. Dona Wanda decorou o local em estilo indiano, o que me deixou mais confusa ainda sobre sua real personalidade.
E na hora de ir embora ela disse queria me dar um quadro da fase abstrata em agradecimento ao fato do prédio estar em pé.
Prometeu, mas nunca deu. Já essa promessa de presente, graças a Deus, não ficou em pé.