sexta-feira, 18 de novembro de 2005

o hipoglós



Essa amiga minha adora teatro. Desde menina queria ser atriz, tentou fazer, cinema ou TV, mas um dia descobriu que não tinha voz. Tudo culpa de uma rinite alérgica.
Mas talento é talento, e quando a gente sabe que tem é complicado desencanar por causa de uma coisa tão... tão... ora, tão sem graça como uma ridícula rinite alérgica.
Ela cresceu e, embora não tenha se tornado uma atriz, ainda acha que a coisa vai dar certo. É só uma questão de oportunidade, ela diz.
Bem, um certo dia o marido, engenheiro, chegou em casa e avisou que receberia uma visita importante naquele dia.
- Acho que você já ouviu falar dele, é um conhecido diretor de cinema.
- Opa, tá pra mim! – ela se animou toda – Quem é?
Ele contou e ela dava pulinhos de alegria. Olha que maravilha.
- Mas... o que ele vem fazer aqui em casa, amor?
- Vem buscar um projeto, uns desenhos de uma estrutura de um cenário. Ele vai viajar e não pôde buscar no escritório.
Ela subiu correndo para se arrumar. Quem sabe não era aquela chance que ela precisava?
- E a que horas que ele vem, querido? – ela gritou de lá de cima.
- Agora. Se arruma que eu te apresento – falou o marido, rindo – Mas vai rápido. Se você demorar muito, ele entra, sai e você nem vê a cara dele. O cara é ocupado.
Ela estava animadíssima. Rapidamente trocou de roupa, penteou os cabelos, colocou um saltinho, um pouco de perfume, um batonzinho, deu três pulinhos para dar sorte e, quando estava descendo a escada, lembrou que não tinha escovado os dentes.
Ave. Um horror mulher de bafo podre, pensou, voltando para trás e ouvindo campainha. Um minutinho, eu escovo os dentes e já desço.
Entrou toda esbaforida no banheiro, encheu a escova de pasta e choc, choc, choo...
Ai. O que era aquilo?
Quando notou, não estava escovando os dentes com pasta. Na atrapalhação de andar rápido para cumprimentar o diretor e dar aquela exibida básica, ela, sem perceber, encheu a escova de dentes de ... Hipoglós.
Bom, para quem não sabe ou não lembra, Hipoglós é uma pomada multi uso para assaduras que a gente costumava passar nas bundas dos bebês. É um creme super pastoso, meio seco que tem um cheiro bem característico e fortíssimo de... Hipoglós.
Que terror. A coisa grudou na boca todinha. A língua aderiu no céu da boca, e como ela não queria engolir Hipoglós, começou a babar. Os espaços entre dentes ficaram tomados pela massa, os lábios grudaram e secaram. Céus. Fazendo um som gutural, ela passou a esfregar um monte de papel higiênico para retirar a pomada, mas o papel grudava em tudo: nos lábios, na gengiva, nos dentes. Ela passou a cuspir para retirar o papel, em vão: uma das vantagens do hipoglós é justamente não sair com a umidade. Como aquilo realmente não ia sair, ao menos ela precisava livra-se do cheiro. Assim passou a comer pasta de dente aos montes, compulsivamente.
Ouviu o marido gritando de lá de baixo. Querida! Benhê! Ora, onde ela estava? O homem já ia embora!
Ela suspirou. Não tinha jeito.
Desceu quase chorando, com a boca bem fechada. Diante da expressão atônita do marido, estendeu a mão para cumprimentar o homem, se recusando a dar beijinhos, pois o odor estava fortíssimo. Olhou o cineasta, muda, sorrindo sem graça com os lábios bem apertadinhos.
Não falou absolutamente nada.
Quando o homem saiu, o marido estranhou.
- Que foi, querida? E que cheiro horrível é esse? Que aconteceu com você?
- É Hipoglós, meu bem.
E ainda com a boca colada e bem fechadinha, ela completou.
- Bom, pelo menos ele não achou que eu tenho bafo podre...

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