segunda-feira, 14 de novembro de 2005

lugar DESmarcado



Era uma apresentação de final de ano dos meus filhos. O espetáculo seria no auditório do colégio, oito e meia. Cheguei um pouco antes, mas estava lotado.
Depois de alguma procura, achei dois lugares e sentei em um deles, esbaforida.
- Esse lugar está ocupado.
Olhei para o homem ao meu lado.
- Hã?
- Esse lugar está ocupado, moça.
Achei estranho, mas me levantei e me sentei na cadeira ao lado daquela.
- Esse também está ocupado – ele me disse, irritado.
- Como é?
- Minha mulher está nesse aqui e minha cunhada está sentada nesse outro, onde você está – ele declarou.
- Como assim? E eu me sentei em cima da sua cunhada?
Ele ignorou meu comentário engraçadinho.
- Elas ainda não chegaram, eu estou guardando lugar para elas.
Olhei ao redor. Tudo lotado.
- Moço, escutaqui. Está lotado o teatro. Eu cheguei antes de começar e bem antes da sua cunhada e da sua mulher. Você não acha que eu tenho mais direito que elas de assistir... sentada?
- A senhora não entendeu – ele falou, impassível – eu estou guardando lugar para elas! Cheguei antes para isso - ele me esnobou.
- Olha, o meu marido ambém não chegou - eu contei para ele - mas eu não vou guardar para ele, pois acho errado.
- Você vai querer criar caso? – ele ameaçou.
Eu tive medo. Levantei e me sentei no chão, na escadinha, ao lado das duas poltronas vazias. A mulher e a cunhada chegaram dez minutos depois que tudo começou. Viram tudo de camarote, muito melhor que eu.
Tem gente que é assim. Guarda aquele monte de lugar nas apresentações, nos cinemas, nos teatros. Acho que é uma mania, uma paranóia. Anos atrás uma senhora desmontou a bolsa toda para guardar lugar numa audição de uma escola de música. Numa cadeira ela colocou a bolsa, noutra uma carteira, noutra uma escova de cabelos, noutra uma caneta e assim até o final da fila. Óbvio que lá na ponta ela colocou apenas um batom, que eu não vi e me sentei em cima.
- Ai, ai, esse lugar está guardado, por favor, mocinha! – ela disse apavorada, correndo de lá do fim do corredor.
- Hã?
- Tem um batom ai, olhe, olhe, está guardado! Não viu?
- Ah, tome – disse, devolvendo o batom.
- Não, o batom está aí para guardar o lugar, senhora! Esses lugares são todos meus – falou a mulher, com cara de quem quer briga.
Eu continuei fingindo que não tinha entendido. Veio o marido da velha. O homem repetiu que aqueles lugares eram das filhas e dos genros, que ainda não tinham chegado.
- Eu cheguei antes deles, senhor – disse para ele.
O velho ficou nervoso.
- A senhora saia daí já que eu estou guardando.
- Ora. Se as cadeiras fossem mesmo do senhor, o senhor podia guardar. Mas as cadeiras são do teatro – eu respondi, disposta a criar caso.
Pensei que, se eu ficasse ali, firme, fixa e imutável, o homem esqueceria de mim. Que nada. Ele e a mulher ficaram ao meu lado, em pé, me intimidando. Comecei a ficar com medo. Caramba, não acham que deveria existir uma associação de defesa dos espectadores?
Uma hora as filhas e os genros chegaram. Todos começaram a me apontar, como se eu fosse uma criminosa. Uma das filhas veio até mim, indignada. Como eu tinha me sentado no lugar dela? Falta de educação a minha, absurdo!
Resolvi usar o método da mudez. Eu não ia sair dali e nem abrir a boca. Mas não vi nada da apresentação da minha filha, pois passei o tempo presa naquela cadeira, aflita e preocupada em não ser assassinada pelo casal de velhos nervosos e suas filhas. Não me atrevi nem a ir ao banheiro, olha que loucura.
Olha. Poucas coisas me deixam tão furiosa como pessoas que guardam lugar. Não sei de onde vem isso, acho que não é por mal, as pessoas estão acostumadas a pagar caro pelas coisas e querem o melhor. Além disso, homens vivem em grupo, em família. Nada mais natural que marcar o território e querer ter os seus ao seu lado. Mas existe um exagero. Um ódio contido que deságua exatamente ali, nas filas cheias de poltronas de um auditório. Muita gente quer descontar ali as suas frustrações.
Isso é coisa de gente que nunca conseguiu achar seu próprio lugar na vida. Nem na família, nem no trabalho, nem entre os amigos. São pessoas carentes, deslocadas, perdidas, sem ter para onde ir nem onde parar. Só um homeless de alma precisa segurar uma cadeira com tanta força.
Decidi que nunca guardaria lugar. É ótimo se sentir livre nessas horas de corre corre e pânico por uma coisa tão mesquinha como um assento para a sua bunda. Hoje em dia olho com dó os guardiões de poltronas. Coitados. Que vida pequena.
Bom, o resultado? Assisto muita coisa em pé, no chão, de lado, ou torta, mas feliz. Sou uma mulher de lugar desmarcado.
Nada como a liberdade, gente, nada como a liberdade.

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