terça-feira, 8 de novembro de 2005

dona lampadinha


Era uma longa viagem de trabalho de dez horas, cinco de ida e cinco de volta. No carro estávamos eu, os engenheiros e uma arquiteta que trabalha numa loja que vende luminárias e que iria estudar a iluminação da casa que estávamos reformando. Eles iam ver a obra, a moça ia orçar a iluminação e eu ia coordenar os trabalhos.
No meio do caminho, a moça me diz que vai aproveitar para trabalhar um pouco.
- Trabalhar?
- É. Vou verificar um trabalho de outro cliente e conferir um orçamento - explicou.
Abriu uma planta imensa (um pouco em cima de mim), pegou lapiseira, régua e montou um escritorinho com o carro balançando. Aquilo me dava até tontura.
Uma hora ela começou a falar sozinha.
- Puxa vida, isso não vai dar certo. Esse cliente não sabe como a casa dele é grande, ele diz que não precisa de tantas luminárias e que não quer tanta luz. Imagina, vai ficar a maior escuridão.
Hoje em dia iluminamos demais tudo ao nosso redor – casas, escritórios, lugares públicos. Acabou-se a penumbra, pensei, ali ao lado da moça, que chamávamos de 'dona Lampadinha'.
Antigamente as casas eram escuras, principalmente no interior, nas fazendas, ou em lugares muito quentes, com muito sol. Eu lembro da casa dos meus avós, no interior de São Paulo. Era um alívio entrar lá dentro, era repousante para os olhos um lugar sem tanta claridade. Minha avó achava chique casa escura, inclusive colocava cortinas escuras e grossas na sala e nunca abria.
Depois houve um tempo, logo que eu me formei, que era bacana só acender abajur. As casas nem deviam ter ponto de luz no teto. Tudo iluminação indireta. De novo era chique demais ficar meio no escuro, penumbroso. Porém isso funcionava só para as salas, no resto da casa as pessoas nem mexiam: colocavam um globo e pronto. Imagina se alguém, naquela época, ia se incomodar com uma luminária de banheiro ou cozinha. E nos quartos sempre foi bom ter um abajurzinho para ler um livro, ou para escrever uma carta, estudar e só isso.
Mas de repente virou uma loucura essa coisa de iluminação. Alguns arquitetos se especializaram em projetos luminotécnicos. Hoje são colocadas, no mínimo, cinco luminárias em cada quarto, algumas embutidas, outras pendentes (detesto esta palavra), arandelas nas paredes, fora aquele monte de abajures com design importado. As salas então, viraram céus estrelados, com aquela lampadaiada que acende em diferentes circuitos. Aliás, não posso falar assim, aquilo são cenários, hoje em dia as pessoas precisam ter opções de iluminação.
Além disso, as luminárias modernas fazem coisas bem esquisitas. Lavam a parede com luzes especiais, varrem o espaço todinho da sala, se direcionam a pontos certinhos, se escondem e iluminam por reflexão, trabalham com filtros diferentes. As luzes de hoje são muito mais inteligentes que as do passado. Praticamente pós –graduandas em iluminação.
Olhei de solslaio para o projeto que a Dona Lampadinha estudava no colo.
- Que lugar é este aqui? - mostrei com o dedo.
- A garagem - ela respondeu.
- Uma, duas, três... oito, nove, dez luminárias? Você colocou dez luminárias numa garagem? Eu concordo com teu cliente – falei, impressionada - Acho que não precisa disto tudo. Vai ver que ele é um homem obscuro, que não gosta das coisas às claras. Vocês deveriam dar o direito de uma pessoa não se iluminar tanto.
Percebi que ela não gostou da minha opinião
- Olha - disse, séria - É bom ter bastante luz. Hoje em dia tudo tem luminária, sabia? Até carro.
E ela, exibida, apontou o teto. Numa espécie de forro rebaixado criado no capô, o carro tinha uma luminária bárbara para iluminar a parte de dentro. Um spot enorme, embutido, branco, com um design modernérrimo.
E com essa a Dona Lampadinha me desligou. Eu achei melhor ficar quieta, ou melhor, bem apagada.

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