Foram os últimos a entrar no avião. A mãe usava um saião jeans até os pés, todo pintado a mão com flores púrpuras, carregava diversas sacolas artesanais, tinha cabelos pintados estilo ruivo-alaranjado e estava acompanhada por dois filhos adolescentes. Um menino, grandão e desajeitado, com a tradicional bermuda-caindo e uma menina com uma blusa toda cheia de fiapos pendurados, segurando um violão com capa jeans também pintada à mão com motivos ‘musicais’. Obviamente o violão era da mãe, uma vez que tinha capa pintada como a saia jeans.
Que família engraçada.
Sentaram-se nas três poltronas ao meu lado, mas até se acomodarem entraram e saíram do espaço mínimo umas... setenta vezes. Ela não sabia o que fazia, pois os maleiros lotaram e não havia lugar para eles colocarem a tralha que carregavam. Chamou a aeromoça. O que faço? A senhora pode tentar um maleiro lá na frente. Ela olhou desanimada para o restante do avião. Lotadaço. Assim, falando sem parar, suspirou e ajeitou tudo em volta dela e dos filhos.
Imagine como ficaram.
Como ela falava muito alto, todo mundo ao redor ficou sabendo que o violão ficaria ao lado da filha “Pati”, na janela, e que as duas sacolas com os presentes - cuidado que quebra - ficariam em baixo dos pés do “Bruninho”. Pô, mãe, ele protestou, e aonde eu coloco a minha mochila? Com ela, a mãe, ficariam a sacolona de couro e a bolsa. Ela repetiu essa distribuição umas três vezes, remexendo as coisas aqui e ali, e sempre falando sem parar. Depois de todos acomodados e entulhados, ela mandou os filhos afivelarem os cintos e olhou ao redor.
Sorriu para mim.
- É a primeira viagem deles, entende?
Eu assenti e fiquei muda. Percebi que ela queria papo, mas não era a hora e nem o lugar. Aliás, morro de receio de iniciar uma conversa num avião e ter que falar (ou ouvir) por duas horas a pessoa.
O problema é que a mulher falava. E falava. E muito. E sem parar. E meio alto. Assim, todo mundo em volta passou a ouvir – e acompanhar – tudo que ocorria naqueles três bancos com ela e com a família. Eram um tipo engraçado de "família buscapé", encabeçados pela mulher de cabelo laranja e voz rouca, que só dava foras. Ela começou explicando para os filhos (tudo errado) como ia funcionar o vôo, quando uma voz disse ao microfone.
“Atenção tripulação, preparar para decolagem”.
- Quem é tripulação, mãe? – perguntou o moleque.
- Ah. Tripulação somos nós, filho – ela respondeu, sabida, fazendo sinal da cruz.
Todo mundo ao redor riu. Decolamos.
E ela estava apenas começando.
Ai, ai, ela disse, feliz. Os filhos deveriam agradecer a tia Rita por ela ter pago as passagens deles todos para eles para São Paulo. E olha. Eles não deveriam dar trabalho para a tia Rita, peloamordeDeus, hein?. A tia Rita trabalhava, não ia poder ficar saindo com eles pra lá e para cá. Que arrrumassem a cama e lavassem a louça que usassem. Puxa. Ainda bem que ela trouxe presente pra Rita e para os outros, ela falou, pegando uma das sacolas embaixo das pernas do Bruninho. Quero a sacola transparente, Bruninho. Colocou no colo e tirou uma série de vasos de flores falsas. Em cada vaso pintado a mão havia uma margarida de papelão e plástico. E em cada miolo de margarida, um carinha desenhada. Um sorridente, um triste, um bravo, um gargalhando, um chorando. Qual você acha melhor para dar para tia Rita, ô Pati? A flor sorridente, mãe. Gosto mais da tristinha. Mãe, melhor dar a flor feliz, não acha. Pati, a tristinha está mais bem acabada. Olhaqui. Foi a última que eu fiz, olha os olhinhos dela, como brilham. Coloquei purpurina, vê? Dá essa então, ô mãe. Pô, filha, que desinteresse. Daqui a pouco tem lanche, ela explicou. Podem abaixar a mesinha. Assim, ó. Se quiserem tem um banheiro ali atrás. Avião tem banheiro, é apertadinho mas tem. Sim, filho, o ouvido entope mesmo. Pati, teu ouvido entupiu também? Iii. Vai entupir. E logo você que tem "otiti". Se entupir a gente pede chiclete. Aeromoça, tem chicleti? Ah, não? Achei que tinha. Pati, na volta a gente lembra de trazer chicleti. Ixi. Tá doendo o ouvido, Pati? Pra que eu fui lembrar? Tivesse ficado calada você não lembrava. Enjôo, Pati? Iii. Olha o lanche. Chegou. Quer lanche, Bruno? Pega, lanche Pati, é grátis, eles dão. Suco ajuda enjôo. Não entendo porque você enjoa, Pati. Você vai ao parque a toda hora, roda e roda naquele barco viking e não tem enjôo, vem aqui no avião, e nem roda e tem enjôo? Não inventa moda, Pati. Aeromoça. Se não tem chicleti, tem protetor de ouvido? A minha filha tem otiti. Ah, não tem? Que pena, achei que tinha. Filha, Pati, não tem. Toma o suco que passa. Ai, eu preciso ir ao banheiro, mas com esse carrinho no meio do caminho, não dá pra passar, né aeromoça? Da próxima vez eu vou antes do carrinho. Pati, melhorou? Pati, se você não quer a barra de cereal dá para o seu irmão. Aeromoça. Escuta, dá para dar mais uma barra de cereal e uma revista para os meus filhos levarem de lembrança? É a primeira viagem deles, a tia que deu as passagens. Obrigada. Ah, agora vou ao banheiro. Ah, ainda não dá. Outro carrinho. Bruno, como assim "o que você vai fazer na casa da tia Rita"? Deixa de ser mal agredecido, que coisa, a tia Rita dá a viagem, você nunca andou de avião e fica reclamando. Gente. Tou preocupada se a Rita vai estar lá mesmo esperando a gente. Pati? Como assim, enjôo? Ai meu deus. Usa o saquinho. Aeromoça. Preciso de mais saquinho, a Pati vomitou. Ela tem otiti, deve ter piorado com o vôo. Não sabia, tem que tomar dramim? Nem passou pela minha cabeça dar dramim, ela vai no barco viking e não enjoa. É a primeira viagemn deles, a tia que deu. Se eu soubesse traria chiclete e dramim, Pati, melhorou? Não? Vai ao banheiro que a agora não tem carrinho. Vai , filha, vai. Ah, dá o violão e as sacolas. Bruno, ajuda, não vê que sua irmã tá vomitando? Como assim, já vai pousar? Agora sentam os dois que é uma hora importante. Vocês não vão esquecer nunca dessa viagem. Como assim Pati, está "detestando"? Foi presente da sua Tia Rita, sua mal agradecida, e depois você quer ir pra Disney, é muito pior e demora mais ainda. Ah, me dá até desgosto de pensar que você falou isso. Deve ser porque você ainda tá doente, essa otiti não sara, que coisa. Agora prestem atenção que vai pousar em vinte minutos. Será que dá para eu ir ao banheiro? Aeromoça!
Foi assim a viagem toda. Ela não parou de falar um minuto, e todos nundo soube de tudo: da otiti da Pati, da tia Rita, dos vômitos, do barco Viking, do chiclete, da primeira viagem, dos vasos tristes. Desci rindo, não é todo mundo que escancara a vida toda assim na nossa frente.
Ô mulher engraçada, gente. Nossa, e eu também falo muito.
Será que algum dia já dei uma dessas?