quinta-feira, 24 de agosto de 2006

barcos a deriva




Gente, eu nunca saio sem bolsa. Preciso de bolsa. Bom, essa não é a primeira vez que eu falo dela.
Da minha bolsa.
Aliás.
Das bolsas de todas nós.
Se pensarmos bem, nossas bolsas tem dentro muito pouca coisa que se preze. Vejo pela minha. Antes de ontem, como eu ia viajar, resolvi trocar a minha por uma mochila, dessas de colocar nas costas. Despejei o conteúdo na mesa para separar e colocar na mochila só o que fosse necessário. Olhei bem aquilo tudo e avaliei. Olha. Quase nada dali precisaria realmente ser levado para a Bahia numa viagem de trabalho, mas acabei não abrindo mão de nada a não ser uma nota fiscal enorme de uma compra no Pão de Açúcar. O resto todo, cataploft, foi pra mochila e viajou comigo, até um caderninho azul com anotações inúteis e as duas carteiras falsas que eu uso pra enganar os bandidos. Isso fora algumas coisas que, sério, tenho até vergonha de contar. Uma fivela velha, uma pedra da sorte, uma imagem de santo, uma carteirinha com uma folha seca, uma tartaruguinha mínima. Não consigo tirar certas coisas de perto de mim, e, pior, voltei com mais coisas: lencinhos de avião e duas pedras lindas que peguei numa praia paradisíaca.
Eu acho que é uma coisa ancestral, que tem a ver com a idéia de ‘sair’ de casa. Se aventurar no mundo requer coragem, e no nosso inconsciente o mundo exterior é cheio de perigos e ameaças. Acho que é por isso que precisamos de bolsas - para nos armar contra esses perigos. E entendamos aqui que os perigos de hoje não são, certamente, como os das selvas, mas são até piores. Uma mulher que consiga sair de casa com uma identidade num bolso e dinheiro e chave no outro, gente, é uma mulher muito corajosa. Uma mulher que provavelmente não tem medo do seu cabelo descabelar, que não tem medo de andar sem batom, que não tem medo da menstruação chegar desavisadamente, nem das idéias ficarem sem anotação por causa da falta de um caderninho, nem dos lábios ressecarem por falta de lipstics, nem das unhas quebrarem por falta de lixas, nem de não poder pagar alguma coisa por falta de cheques, de cartões de banco. Uma mulher corajosa não precisa de cartão de farmácia, de locadora, de carteirinha de clube, nem de chiclete, nem de uma meia calça sobressalente.
Uma valentona.
Mas não são só as mulheres que precisam de âncoras para viver. Embora não fique muito claro, muitos homens também, por necessidade de aportar em um porto seguro e por ter medo de vagarem à deriva, usam ternos e gravatas. Sim, é ai que está a correspondência da bolsa feminina no mundo masculino. Sempre me pareceu estranho precisarmos de bolsas num mundo onde os homens não precisavam de nada. Mas isso não é verdade.
As gravatas, gente, as gravatas.
Homens precisam de ternos e principalmente de gravatas bem firmes que os amarrem à vida. Acho que as gravatas dos homens são, na verdade (e me perdoem os leitores engravatados), muito mais pesadas, aflitivas, amargas e significativas que as nossas bolsas, que podem ser esquecidas, colocadas de lado, e que, falaverdade, não enforcam ninguém. Podemos ser, depois de séculos de bolsas, mulheres meio tortas, mas nunca enforcadas a cada dia pela própria existência. Um homem que sai e volta para casa amarrado pelo pescoço é, ele mesmo, a sua âncora.
Obvio que eu quero, depois desse post, ser uma mulher-sem-bolsa, mas não sei se consigo. Uma mulher que não precisa se ancorar em lugar algum, uma mulher como uma barco a deriva, é isso que eu queria. Sair sem bolsa, com as duas mãos livres para o que der e vier.
Não sei aonde chego com essa conclusão. Às vezes acho que não é preciso chegar em lugar nenhum.
Aliás, com essa pesada bolsa que eu levo, fica difícil.

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