segunda-feira, 10 de abril de 2006

o celular do garrafa



Foi na semana passada. Era de noite e estávamos indo, eu e o João, ao Shopping Villa Lobos comprar umas coisas quando percebi um objeto bem no meio da rua.
Não sei como um mísero olhar de um milésimo de segundo, à noite e com o carro andando me fez ver que aquilo era um celular. Mas era, e eu não podia atropelar um celular.
Brequei.
- Que foi, mãe?
- Tem uma coisa embaixo do nosso carro. Vou dar uma ré e você pega.
Quando recuei e o farol iluminou, vimos. Era um celular.
Olhamos ao redor. Vivalma. De um lado um muro, de outro casas. Poucos carros estacionados, nenhum guardinha.
- Vamos levá-lo conosco – decidi.
- Mas mãe. Não é nosso.
- Eu sei. Mas a gente não pode deixar no meio da rua. Vamos tentar, pelos contatos, achar o dono.
Chegamos no shopping. O João me olhou de lado, obviamente aflito por estar com um aparelho de outra pessoa. É muito estranho ter um celular de outra pessoa nas mãos. De um certo modo, aquilo tem uma porta que, se abrirmos, estaremos literalmente fuxicando na vida alheia. Mas naquele caso a fuxicação era permitida, o que me deixava animadíssima. Permitida não: absolutamente necessária. Se eu não fuxicasse, jamais aquele aparelho voltaria ao dono.
- João, o celular está ligado?
- Está.
- Veja se tem nome.
- Está escrito Nextel. Impossível o cara ter o mesmo nome do aparelho.
- Dãããr.
Eu comecei a falar o que fazer. Sei lá, me deu uma coisa. Era como se eu sempre achasse celulares no meio da rua.
- Primeiro, vamos ver o número. Disque do dele para o meu.
Era um número desconhecido, óbvio. Dããr pra mim. Mas em último caso era bom saber o número, expliquei para o João, pois a Telefônica deveria saber de quem era.
- Agora olhe os contatos - eu sugeri.
- Vou entrar nas ligações feitas – ele disse, apertando os botões – Mãe, ele ligou para um número fora de São Paulo e para o Fábio Colgate.
- Fábio Colgate?
- É.
- Deve ser um homem com um sorriso lindo, João.
- Ou um sorriso horrível, mãe. Apelido de amigo é sempre o contrário.
- Entra na agenda e procura “Casa”.
- Achei. Tem “Casa L1” e “Casa Campos”.
- “Casa L1”?
- Deve ser “linha um”, mãe.
Liguei, atendeu uma mulher. Eu fiquei completamente gaga.
- Errr. Boa noite. Aqui é uma pessoa que achou um telefone que tinha na agenda o telefone daí na palavra “Casa L1”.
- Hã?
Demoramos para nos entender, até que de repente ela teve um clic.
- Ah, você achou o celular do meu marido? Nossa! Ele está no clube... deve ter perdido na rua... puxa...
- Qual clube?
Era um clube bem no meio do meu caminho de volta.
- Olha – sugeri – ou te dou meu endereço e você vai buscar mais tarde na minha casa ou eu deixo na portaria desse clube. Que acha?
- Mas que ótimo - falou a mulher – se puder deixar na portaria está excelente, eu pego depois.
Foi quando ela falou a parte engraçada.
- E quando deixar, avise que achou o celular do “Garrafa”.
- "Garrafa"?
- É o nome do meu marido – ela explicou, seríssima.
O João me olhou com vontade de rir.
- Mãe. A gente achou o celular do... “Garrafa”? – ele me mostrou o telefone – E esse aqui é o celular do “Garrafa”?
- É...
- Tá na cara, com esse nome, porque ele deixa cair os celulares na rua, mãe. “Garrafa”, essa é boa. Ele deve tomar todas. Imagina o “Garrafa” e o “Fábio Colgate”, que dupla.
Engraçado. A questão é que o fato do celular ter um dono, ainda mais um dono com o nome de “Garrafa”, nos fez adquirir um grande respeito pelo aparelho. Agora a coisa tinha valor. Depois de cumprirmos nossos compromissos no Shopping, iríamos devolver o “celular do Garrafa”. Era quase como se tivéssemos uma missão.
- A gente podia ligar pro tio Beto, em Paris – sugeriu o João, rindo – Ligar para a China, para os Estados Unidos.
- Imagina fazer isso com o Garrafa, filho!
Depois de uma hora, chegamos em frente ao clube. Parei o carro e desci, acompanhada do João, animadíssimo. Na portaria havia uma porteira, ao seu lado um guardinha e do outro lado dois homens com sacolas de tênis. Expliquei o caso para a porteira e, quando pronunciei a palavra “Garrafa”, uma outra mulher, que acabava de chegar na portaria exclamou bem alto.
- Ah, foram vocês que acharam o celular do Garrafa? A mulher dele já ligou aqui e contou tudo! Que maravilha! Ele vai adorar, que bom!
Todo mundo ao redor nos olhou. A porteira, o guardinha, os homens das sacolas de tênis e a moça que falava alto que acabava de chegar sorriram, felizes. Por um instante, eu e o João ficamos absolutamente importantes naquele local. Éramos as tais pessoas que acharam o celular do Garrafa.
Ora.
A mulher que acabara de chegar deu uns pulinhos.
- Ele está lá dentro, vou avisá-lo para ele vir pegar – disse a moça, passando pela roleta e correndo.
Acho que o Garrafa é um tipo de líder daquele clube. Todo mundo ali conhecia o Garrafa e todos balançavam a cabeça ao pronunciar o seu nome. E provavelmente as pessoas ao redor achavam que eu e o João deveríamos estar muito felizes por sermos os sortudos encontradores do celular do Garrafa.
A porteira perguntou:
- Querem entrar e sentar para esperar o Garrafa?
Hã? Aquilo já estava exagerado demais. Esperar o Garrafa? Não, não, respondi, assustada. Afinal, São Paulo não é assim. Nunca vi esse excesso de cidadania, de boa vontade, de naturalidade.
- Não, obrigada... vamos para casa, tenho que jantar... só vim entregar...
Um dos sócios das sacolas de tênis ficou decepcionado.
- Hã? Não vão esperar o Garrafa?!?
Olhei o clube, com aqueles corredores enormes.
- Não, não é preciso... - eu disse, sem graça - Mande um abraço para ele.
Eu parecia a Cinderela, saindo correndo antes das badaladas. Que situação mais inusitada.
- Ei, ei... – gritou o homem da sacola de tênis – ... e como você se chama?
- Lúúúcia! – disse eu, correndo e entrando no carro.
Chegamos em casa rindo. Depois do jantar, tocou meu celular.
- Lúcia?
- É.
- Aqui é a mulher do Garrafa, aquela que você falou. Achei esse número discado aqui e imaginei que era o seu. Estou ligando porque o Garrafa pediu para te agradecer muitíssimo. Já estamos com o celular.
- Ah, de nada...
- Ele falou que foi muita gentileza sua.
- Quinada. Era caminho. Ele é muito popular, seu marido.
- Ah, eu sei. E obrigada mesmo – falou a moça.
Foi assim.
E pensando bem, que pena que não conheci o Garrafa...

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