sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

finas varetas


Não pára de chover em São Paulo.
É impressionante a molhadeira que está nos assolando. Tenho até evitado sair, pois o trânsito está horrível, as ruas alagadas. Mas ontem resolvi enfrentar a água e fui no final da tarde comprar um livro.
Estava tudo empacado. Em cada farol o trânsito parava, lento, arrastado e a chuva continuava firme, ininterrupta. Num deles um dos meus filhos, distraído, apontou uma mulher que atravessava a rua.
- Olha mãe. Coitada.
Olhei através do para brisa chuvoso. Vi umas seis pessoas atravessando a rua, mas só uma era coitada, na minha opinião. Mas será que era aquilo mesmo que eu tinha entendido?
- Quem é a “coitada”, filho? – perguntei, para ver se falávamos da mesma coisa.
- Aquela moça ali – ele me mostrou - aquela, mãe, a do guarda chuva quebrado.
Exatamente. A mesma que eu vi.
A tal “coitada” era uma mulher encolhida sob guarda chuva quebrado. Olhei para ela com atenção. Uma mulher mais ou menos da minha idade, de vestido, cabelos presos claros num rabo de cavalo e óculos. Era uma mulher arrumada, digna, mas estava completamente coitada sob aquela estrutura cambaleante e desmontada sobre si. Andava devagar para não desestruturar ainda mais suas varetas tortas. O tecido fino tremia fora das pontas, balançando com o vento. Cautelosa, como se nem respirasse, ela equilibrava o que restava daquela proteção sobre a cabeça, molhando os braços, os ombros, a bolsa.
Coitada.
Olha. Não há nada mais triste do que uma pessoa de guarda chuva quebrado, pensei, no mesmo momento.
De todo o clima chuvoso do final de tarde, foi aquela imagem que ficou dentro de mim. Passei um tempão pensando nisso para ver se compreendia o que me incomodou tanto. Acho que entendo. Um guarda chuva quebrado dá sensação de desamparo, de abandono. É como se não estivésssemos devidamente abrigados, como se carecêssemos de proteção, de cuidado. Usar um sapato velho, uma roupa antiga não são tão marcantes e melancólicos como abrigar-se sobre um guarda chuva quebrado.
É possível entender as pessoas pelo seu grau de proteção. Uma pessoa sob um guarda chuva quebrado está frágil, carente. Precisa de acolhida, precisa de carinho. Fiquei muito tempo pensando naquela imagem. Um guarda chuva é um objeto tão comum, tão possível e pertencente à tanta gente... À primeira vista sempre parece sólido. O tecido esticado sobre a estrutura, inflado e confiante, nos mostra um espaço seguro, seco. Mas muitos desmontam-se no primeiro vento, na primeira tempestade. A fragilidade de uma guarda chuva está sempre diante dos nossos olhos. Acho que na verdade, a fragilidade da nossa vida está sempre diante dos nossos olhos também.
Todos nós temos nossos guarda chuvas para nos protegermos dos dias de chuva e do mau tempo e, embora não percebamos, muitas vezes estamos acolhidos sob estruturas que mal se agüentam. Vivemos sob estruturas quebradas, falsas, desmontadas, achando que estamos sob lajes sólidas e secas. E assim nos molhamos, nos resfriamos, adoecemos. Talvez existam nas nossas vidas existam muito mais delicados guarda chuvas do que coberturas. Nos resta tomar mais cuidado. Volta e meia somos coitados como a moça de rabo de cavalo e nem notamos, atropelados pela vida cotidiana. É assustador, como foi ontem, perceber a fragilidade dos nossos tetos.
Um guarda chuva é uma ilusão, assim como nossas valentias são ilusões.
Naquele momento eu me encolhi. Tive vontade de colocar a mulher no meu carro, de contar para ela tudo que eu descobri, secá-la, esquentá-la. Me senti mais molhada e desassistida que a própria chuva. Não, ninguém tem culpa, guarda chuvas quebram a toda hora. Não, niguém tem culpa, a chuva cai sobre todas as pessoas.
E assim eu entendi todas as vezes que, por algum motivo, me machuquei na vida. Eu estava com meus guarda chuvas quebrados e não percebi.

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