quarta-feira, 14 de setembro de 2005

bandidos e mocinhos


Ontem falei sobre pessoas chatas e a Anna, uma leitora, fez um comentário interessante. Ela levantou a questão da importância social dos chatos.
“... Tenho uma tese que os chatos de carteirinha são importantíssimos para o sucesso de uma festa, lógico que em número proporcional aos outros convidados: os bêbados, os engraçados, os tímidos, as gatonas, etc. Os chatos, quando chegam a uma rodinha, espalham todos, o que possibilita outras combinações humanas.”
A Anna tem toda razão. Para o equilíbrio de um grupo precisamos de diversificação, isso é saudável e inevitável. Se não convidarmos nenhum chato para uma festa, a pessoa menos legal da turma terá que fazer esse papel, porque todo bom grupo precisa de um chato para funcionar, assim comotambém precisa de um líder, de um bandidão, de um cafa, de uma gostosona, etc.
Lembrei-me de uma coisa que aconteceu comigo. Um dos meus trabalhos de arquiteta é gerenciar obras. Tenho que acompanhar o andamento e escrever relatórios a respeito para um cliente. No início eu apenas listava o que fora feito e comentava o cronograma. Eram textos chatérrimos, em forma de tabela, que percebi que meu cliente nem lia. Quando fazia reuniões com ele, tinha que repetir tudo de novo.
Horrível escrever coisas que ninguém lê. Comecei a escrever os relatórios de um modo diferente. Ao invés de citar o nome das empresas envolvidas, resolvi colocar os nomes das pessoas. O engenheiro fulano, a vendedora sicrana, o marceneiro tal, a arquiteta fulana de tal. Achei que o texto melhorou um pouco, mas não fiquei muito satisfeita.
Mudei mais uma coisa. Ao invés de escrever por tópicos, resolvi escrever como se cada item fosse uma pequena e curta história. Frases inteiras, com começo-meio-fim, onde os sujeitos executavam ações.
Na semana seguinte, notei que ele leu. Meus relatórios estavam menos chatos, portanto. Animada, resolvi me aprimorar. Além dos nomes e das curtas histórias, comecei a contar como eram as pessoas envolvidas, óbviamente sem me exceder. Era trabalho, não novela.
Comentei que o engenheiro estava estressado, que o mestre era meio baixo astral, que o pintor estava com problemas de saúde, que um dos marceneiros era gay, que a arquiteta coordenadora sabia comandar a equipe como ninguém. Descobri que ele leu mais ainda, afinal a obra dele tinha uma história, uma trama e personagens. Ele passou a me telefonar, curioso. O engenheiro não precisava de umas férias? Como era essa arquiteta líder? E o marceneiro gay, o que falavam dele? E ele percebeu que ele estava dentro da história também. As pessoas adoram ser personagens. E o dele era melhor ainda: o líder.
Foi quando aconteceu uma coisa engraçada. Inconscientemente ele passou a implicar com alguns dos personagens, sem mais nem menos. Como a obra corria bem, eu não entendi porque. Um dia tive um clic. Ora, a minha história não tinha nenhum bandidão. E gente, isso não tem a menor graça. Não existe boa ficção sem vilão, como eu não tinha notado isso?
Foi uma decisão bem difícil, mas tive que colocar uns bandidos na história. Ele se animou muito, pois ele, como líder, tinha a missão de exterminar o mal. Genial.
Pode ser que tudo isso seja imaginação minha, mas consegui o que eu queria: que ele entendesse a obra através dos meus textos. Funcionou. E bem.
Acho que temos um inconsciente ficcional muito maior que imaginamos. Querendo ou não, tendemos a criar personagens nos nossos imaginários. Precisamos de líderes, de bandidos, de gente engraçada, de mulheres gostosas, de chatos, de gente bege, exatamente como a Anna disse. E talvez a gente esteja fazendo exatamente isso aqui, nesse blog e nesse mundo virtual.
Só espero, mesmo, não ser a chata da turma.

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