quinta-feira, 21 de julho de 2005

ichi, impliquei


Às vezes passamos a vida toda sem perceber algumas coisas. Mas quando notamos é tarde demais. Vira implicância.
Implicâncias são complicadas porque não tem volta. Eu tenho algumas, por exemplo, detesto ouvir barulho de outras pessoas comendo coisas duras. Sabe quando a pessoa come amendoim japonês e faz aquele barulhão? Odeio esse barulho. Sou capaz de sair da sala quando ouço. Essa é uma típica implicância que duvido que um dia eu perca.
Implicâncias são para sempre, nem analista resolve.
Bom, nessas curtas férias adquiri mais uma. Impliquei com o café da manhã de hotel. Agora, nunca mais.
Um dos hotéis que ficamos na viagem era muito grande. Um mega hotel, com muitos quartos, cheio de gente até a tampa.
O lugar era infernal. Era criança correndo por todo lado, monitores infantis vestidos de urso panda cantando em microfones, monitores da melhor idade vestidos com trajes típicos, programação para adultos, um monte de babás, um monte de vovós e muitos argentinos. E a quantidade de hóspedes não cabia no salão do café da manhã. Era preciso fazer uma espécie de rodízio. Ou seja, você acordava e pimba, tinha que entrar numa fila.
Acredita nisso?
Pode acreditar. Eu devia ter fotografado.
Precavido, o Zé acordou e correu pro salão. Como era cedo, ele conseguiu, milagrosamente, pegar uma mesa. Um dos meninos voltou correndo para me chamar.
- Mãe. Corre. O papai conseguiu uma mesa, está lá sentado e pediu para você ir rápido. Se ele levantar para pegar um café, alguém pega o lugar dele. Precisa ver a fila que está do lado de fora, mãe.
Era verdade. Entrei no local e vi o Zé, de braços cruzados, guardando nosso lugar.
Engraçado.
- lúcia, repara numa coisa – ele me disse, apontando para a mesa buffet, antes de eu me levantar para me servir – Olha o que acontece com um país como o nosso, onde a economia gerou uma classe média tão grande.
- Como assim, Zé?
Ele tinha uma teoria. Ficou ali filosofando, claro.
- Perceba. A classe média vive muito apertada, muito sem dinheiro, na maior dificuldade para pagar as contas. Tudo é sempre contadinho, até o último centavo, sempre.
- Sim, Zé, e daí?
Ele apontou o buffet.
- E aí que todos chegam aqui e dão de cara com uma mesa farta dessas. Grátis. Você pode pegar o que quiser. Nada é contado. A classe média explode! É o gozo total. É a conseqüência do aperto que o governo faz à classe média. Sim, sim - ele falava, boquiaberto, balançando a cabeça.
Olhei para o lado. Uma moça bem arrumada, toda maquiada e com uns tênis novinhos passou por nós com um prato entupido de coisas. Tinha bolo de cenoura, rosca de coco, muffins de chocolate, croissants e pães de queijo.
- Acha que essa moça come tudo isso na casa dela? – ele apontou.
Passou um senhor de abrigo. O prato dele estava lotado: queijo, salame, pão, uma cumbuca de coalhada, ovos mexidos e salsichas.
- É um modo de se vingar de todas as contas que você paga o ano todo. As pessoas comem para compensar... – o Zé explicou a teoria, animado – ... e é impressionante como comem! Ninguém come assim em casa. Isso não é café da manhã. É vingança!
Ficamos todos olhando ao redor, eu o Zé e os meninos. Era realmente um avanço total, uma coisa maluca. Tudo que era colocado na mesa acabava em segundos. Os pratos sumiam, os copos idem. A senhora do meu lado implorava por uma faca. Os meninos da mesa em frente comiam bombas de chocolate sem parar.
Que coisa mais impressionante. E naquele instante, impliquei com café da manhã de hotel. Levantei e peguei só uma xícara de chá. Só uma. E chá de camomila. Bem sem graça. Credo.
Ainda observávamos aquela fúria matinal quando ouvimos uma voz baixinha.
- Paiê.
Era o João.
- Fala, filho.
- A gente é da classe média?
O Zé hesitou.
- Bom. Bem. Somos, né...
- Oba. Posso então pegar um monte de pão de queijo?

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