terça-feira, 15 de fevereiro de 2005

a louca da louça



ou a louça da louca


Tem uma coisa que ela adora: lavar louça. Deixar a água escorrer entre os dedos e levar a sujeira, depois colocar tudo arrumadinho. Lado de lá, lado de cá. Sujo e limpo, igual nos encontros e desencontros, no certo e no errado, no bom e no mau, no prazer e no horror. Credo. Tem coisas que não devia pensar.
Tem panelas gordurentas e nojentas, que deixam óleo nas mãos, tem migalhas de pão nos pratos, tem comidas que grudam como cola. Uns são mais fáceis, outros mais difíceis, mas todos têm que ser lavados na mesma água que cai.
Ela precisa acabar o serviço, dizer ponto final, passar a limpo, reescrever. Doem as pernas, enrrugam-se as mãos, acaba-se a água, mas nada se acumula. Come-se a comida, lava-se a louça. É filosofia de dona de casa, mas é boa e alimenta a mente de toda mulher, mesmo aquelas mais modernas e chatas. Mas dane-se as convenções, com isso ela se sente levinha, como se pudesse alcançar o céu e voar.
Voar?
Não.
A água é a âncora que a guarda ali, naquela casa.
Vem muita gente ter com ela, muitos pedidos, chegam, pedem espaço. Ela abre todas as portas, todas as janelas, todas as frestas e vãos. E vem as sementes, que ficam no solo querendo crescer.
Entrem todos, entrem. A casa é sua, está às ordens. Ela aprende a receber, a deixar escorrer, pois esse é o único jeito. Filtrar a água limpa da suja, separar o óleo, as impurezas. Entrem aqui, diz, preciso que entrem. Quero que outros se plantem, preciso de mais sementes, preciso diminuir essa rotina, ela diz para o mundo. Entrem, entrem, ela fala nos finais de semana. Entrem que eu preciso descobrir onde estão todos. Entrem e me salvem desses horríveis finais de semana.
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Acho que se eu conhecesse essa mulher eu saia correndo, pois ela é completamente maluca.
Escrevi esse texto há cinco anos. Achei hoje e ele me comoveu. Não tenho a menor idéia do que eu queria dizer com isso na época. Mas agora me disse muito.

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