quarta-feira, 12 de novembro de 2014

perdendo pedaços


Venho sofrendo abusos dos filhos, que já estão grandes agora. Começou a acontecer bem devagar, há um tempo, mas o estalo deu só agora.
- Mãe, dá a havaiana.
- A minha? Essa que tou usando?
- É, vai, to com pressa!
Carro não tenho mais. Bastou eu parar de trabalhar que eles acham que eu ter um carro (mesmo pagando mensalmente as prestações, a gasolina e os consertos) é um verdadeiro absurdo.  Agora eu preciso pedir para usar. Além do meu carro estar adesivado e cheio de roupas.
Comprei uma alpargatas outro dia. Mostrei pra minha filha.
- Linda. Adorei. Obrigada.
E saiu andando com ela.
Entro no escritório. Chico no meu micro. Ele nem mora mais aqui.
- Filho. Vai ficar ai?
- Sim, meu micro quebrou.
- Sério?
- Só hoje e amanhã – ele respondeu, sem me dar a mínima. Dois dias depois, quando ele “liberou” meu micro, olhei o teclado e faltava uma tecla. Agora, pra digitar “z”, tenho que apertar um pino. Acabei trocando de micro por causa disso.
Outro dia sentei aqui e dei pela falta do mouse (sim, eu ainda uso).
- Gente, onde tá? Quem pegou?
A voz veio de longe.
- Eu! Emprestei pra Tereza! E ela esqueceu no sítio!
Ouvi uma conversa telefônica do João outro dia, que me fez dar um berro altíssimo de “nããão!”:
- A gente faz a fogueira e apaga com o extintor do meu carro.
Comprei um aparelhinho de som pra ouvir na cozinha. A cada dia encontro ele em um lugar da casa. Outro dia sumiu.
- Levei pro meu trabalho, mãe. Eu precisava.
A cada dia que não durmo em casa, chego e encontro alguém lá, espalhado na minha camona. Meus shampoos? Ora, a cada vez que o de alguém acaba, pega o meu. Cerveja nem se fala. Se quiser guardar uma pra mim, acho que preciso esconder no armário. O Chico, que foi morar sozinho, outro dia fez supermercado na minha despensa. Não sei se isso tudo não é uma socialização bacana ou se eu bobeei e eles andam abusando. Mas ando perdendo pedaços. 
Deve ser uma fase da vida.

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