domingo, 2 de abril de 2006

um pedaço de cena.



...

- Você está bonita, Léa. Legal quando você se arruma, se maquia, pinta os olhos.
- Eu sempre faço isso, Pedro, todos os dias. É você que nunca repara.
- Você não vai trabalhar maquiada.
- Vou sim. Sempre fui. Todos os dias.
- Nunca reparei.
- Está vendo? Você nem olha para mim.
- Eu fiz um elogio, atté com elogio você implica? Estou falando que você está bonita, arrumada. Podia colocar uma saia um pouquinho mais comprida, mas vá lá.
- Que é que tem minha saia, Pedro?
- Curta, né? Olha você sentada no carro. Dá quase para ver a calcinha.
- É que aqui só tem eu e você, Pedro, e eu me sentei de qualquer jeito. Você está cansado de conhecer a minha calcinha. Vou até levantar mais, para você ver tudo de uma vez. Olha só. Olha, Pedro. Minha calcinha.
- Léa, pára com isso que um tem ônibus passando aí do lado.
- Eles devem até estar gostando. Só você que acha ruim, sempre implica com tudo que eu falo.
- Abaixa a saia, Léa.
- Tsc. Pronto. Não fala bravo, eu estava só fazendo gracinha, Pedro. Você é sério demais, nem uma roupa eu posso colocar...
- Eu não falei que você não pode colocar. Falei só que está um pouco curta, chega de nervosismo.
- Nervosismo? Me vestindo bonita para você? Nervosismo?
- Está ótima a sua saia, adorei, ponto final - E onde vamos, Léa?
- Decide você. Qualquer coisa tá bom.
- Como assim? Não era você que queria jantar fora?
- Não, foi você que disse que estava enjoado da comida de casa. Eu dei a idéia e você topou - Vamos no japonês?
- Está sempre lotado, Léa.. Vamos em outro.
- Naquele italiano?
- Aquele, do teu amigo?
- Ele não é meu amigo. É um conhecido.
- A comida lá é horrível.
- É horrível? Ninguém fala isso. Saiu até no guia com um monte de estrelinha, é você que não gosta dele, do meu amigo.
- Não vou lá. Cara mais chato. Não vou dar dinheiro pra ele.
- Você pergunta e depois não aceita nada. Por mim eu ia no italiano do meu amigo e ponto final.
- Eu não vou nesse lugar, Léa, não ouviu?
- Não grita comigo que eu não estou gritando com você.
- Não estou gritando, só estou dizendo que lá eu não vou! Mas se é tão importante para você, eu te deixo na porta do restaurante italiano cheio de estrelas, você entra lá com essa sainha que vou comer sozinho em outro canto. Quer?
- Grosso.
- Grosso, eu? Te levo para sair, te digo que está bonita e sou grosso?
- Gritou comigo, é grosso - Chega, Pedro. Vamos no J.
- Lá é lanchonete. Não é restaurante.
- E o que é que tem?
- Tem que eu quero comer comida, e não sanduíche engordurado. Droga, já nem sei para onde estou indo, dirigindo sem destino.
- E eu estou com fome, Pedro.
- E aquele restaurante alemão que a gente ia quando namorava?
- Acho que fechou. E era longe para burro.
- Vou sempre reto, enquanto isso a gente vai pensando e resolve. Dá mais idéia, Léa.
- É. A vida é assim, Pedro. Sem muito destino mesmo.
- Como?
- A vida é igual a isso que está acontecendo conosco. Essa cena. Vamos andando, andando, sempre reto, sem sair da estrada, corretinhos. Mas no fundo não sabemos pra onde ir, não sabemos onde vamos chegar. Somos guiados só pela nossa fome. Não temos mais projeto junto, nós dois. Esse é nosso problema.
- Putz, e hoje que eu não fui na ginástica?
- Quê?
- Não fui na ginástica. Não deu tempo, bem na hora que eu ia sair o Celsinho me chamou no telefone e falou mais de quarenta minutos. Tem gente que não sabe ser claro e rápido. Não devia ter atendido, mas aquela secretária é uma anta.
- Pedro.
- Quê?
- Pedro, eu falei uma coisa importantíssima e você não respondeu.
- Falou o quê?
- Não ouviu?
- Ouviu o quê, Léa?
- O que eu falei.
- O que é que você falou? Eu que disse da ginástica e você não falou nada.
- Falei antes.
- Não prestei atenção, repete.
- Está vendo? Está vendo? Só ouve o que quer. Só ouve o que te interessa, só fala das tuas coisas.
- Não cria caso, repete, Léa, não ouvi. Juro.
- A questão é essa, você não me ouve nunca.
- Quando estou com muita fome não ouço mesmo.
- Não é só na hora da fome.
- Repete, ô Léa.
- Não repito mais, mas falo outra coisa. Sobre a sua seleção de assuntos. Tudo que te incomoda você não ouve. Fica surdo. Seleciona. E eu devo te incomodar, não? Devo te incomodar muito porque você não presta a menor atenção para o que eu falo.
- Ah, Léa, que coisa mais chata você de novo reclamando de mim, de tudo que eu faço, mais uma vez. Estava distraído, desatento, você sempre pegando no pé, eu não sou perfeito.
- Vê? é isso!
- É o que, Léa?
- É isso, eu falei de novo e você mudou de assunto, vê? Falei que você não presta atenção nas minhas conversas e você mudou de assunto, dizendo que eu só reclamo de você.
- Léa, eu só não quero brigar, só isso.
- Nem eu, Pedro, mas preciso te falar as coisas que me incomodam.
- Mas agora? Bem na hora que a gente sai para se divertir?
- Eu não estou me divertindo nada, rodando nesse carro. Estou até com enjôo.
- Quer parar?
...

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