quinta-feira, 23 de março de 2006

o texto mais horrível que eu escrevi na vida


Desenho: Jim Atwell

Depois da história do meu amigo que ganhou mo porco preto de presente e depois que o Pecus postou uma foto de um porco ontem, lembrei de outra história.
De porco, óbvio.
Eu tive, num período, que fazer uma série e viagens para Angra dos Reis por causa de uma obra. Íamos de carro toda semana, eu e um empreiteiro.
A viagem demorava muito, cinco horas de ida e cinco de volta, e por mais que ele fosse calado, acabávamos conversando. Numa dessas conversas contei a história do meu amigo que ganhou um porco e não teve coragem de matar. Ele arregalou um olhão.
- Que absurdo uma pessoa não sabe nem matar um porco – ele disse, desprezando profundamente o pobre do meu amigo - Que homem é esse?
Como se matar porco fosse uma coisa normal, assim, tipo como ir à farmácia.
Aquele desprezo me deixou encafifada. Caramba. Eu também não sei matar porco. Aliás, eu não sei matar nada. Nem largartixa, nem porco, nem galinha, nem rato, nada. Matar não é comigo, digamos. Na hora, ali, ao lado daquele empreiteiro matador, fiquei incomodada e constrangida, me sentindo uma fresca de marca maior. Cheguei aqui em São Paulo e comentei com a Silvia, minha melhor amiga.
- Silvia. Você sabe matar algum bicho? Galinha, carneiro, porco?
- Eu? Eu não.
Contei para ela a minha conversa com o empreiteiro. Disse que era um absurdo que nós, mulheres modernas, que tivemos filhos, que somos estudadas, que trabalhamos e que somos sempre tão cheias de idéias, não soubéssemos fazer uma coisa tão simples.
- Matar um porco é simples? – ela perguntou.
- Para ele é.
Ela não se deu por vencida.
- É que eu não tenho um porco e nem a situação. Mas se eu precisasse mêêêsmo, Lúcia, matava.
- Sério?
A Silvia é corajosa. Falaverdade.
Ela continuou.
- Óbvio. Inventava um jeito, ué. Ainda mais se esse porco servisse de alimento para a minha família. Por um filho, minha cara, a gente faz qualquer coisa, civilizada ou não – e ela me olhou, seríssima – Ora, Lúcia. Você também faria.
- Eu? Tá, talvez... mas a pergunta é como.
- Como? Ah. Sei lá como.
- Não adianta ter só vontade. Precisa saber como fazer. Tem que ter um projeto.
- Projeto de matar porco?
Foi quando eu sugeri.
– Vamos supor que você está numa ilha deserta. Nessa ilha tem só você e um porco grande, preto e peludo. Você depende dele para viver. O que faria? Você consegue escrever essa história?
Pois foi assim que, num dia qualquer de semana, eu e a Silvia, cada uma no seu canto, resolvemos sentar na frente das nossas telas de computador e escrever um texto onde cada uma de nós mataria um porco. Combinamos tudo. O porco de cada uma tinha que ser preto, grande e peludo, e, como não entendemos de peso de porco, definimos um tamanho imaginário. Cada uma mataria à sua maneira, só não podia tacar fogo nem usar revólver. E o porco, depois de abatido, deveria servir de alimento – ou seja, não valia matar o porco de fome ou de doença. Depois leríamos os textos juntas, para comparar como cada uma resolveu o “ato”.
Olha.
Às vezes eu acho que minha vida não é lá muito normal.
Bom, mas nesse dia lá fui eu para o meu computador. Animadíssima. Avisei a família.
- Vou fazer uma coisinha ali já volto. Não me atrapalhem.
Olha, sério. Foi das coisas mais horríveis que eu já escrevi na vida. Não sei se a realidade não seria muito menos impressionante que a minha ficção. Sei lá, acho que matei o meu porco muito de perto, descrevi demais o bicho, me confundi toda com a coisa de matar. Eu resolvi enfiar uma faca no pescoço, mas para fazer isso eu tive que montar nele, o que me deu muito nojo. Tive que encostar naquela pele, cheirar aquele cheiro, lutar, era uma sangueira só. O pior é que ele quase ganhou de mim. Olha. Não me achei tão boa escritora nessa hora. Já a Silvia, mais esperta, fez uma lança de bambu e atirou meio de longe.
- Duvideodó que uma lança de bambu mate um porco.
- Era uma lança finíssima e afiadíssima – ela explicou.
Foi uma experiência horrível e inesquecível. O pior texto que já escrevi na vida. Mas mesmo assim aconselho a todas as mulheres civilizadas que um dia matem seus porcos.
O pior é que, depois dessa experiência, eu tenho certeza absoluta que matei um porco de verdade. Ahá. E esse empreiteiro que venha se exibir para o meu lado agora que ele vai ver o que é bom pra tosse.

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