domingo, 6 de março de 2005

uma abordagem autêntica



O Bernardo, o aparelho e a abordagem autêntica
(pequeno relato de um fato ocorrido)


Tirei o aparelho dos dentes há um ano. Usei durante três, para corrigir um defeito que eu tinha desde menina e que me incomodava muito. O tratamento foi feito em três fases, e em uma delas eu usei um aparelho lá dentro, no céu da boca, que não dava para ver por fora.
Aquele negócio me incomodava muito, pois não dava para falar ou comer direito, e me fazia falar embolado, com um chiado masishhh oushh menosshshs achhhimmm.
Um certo dia, fui com o Zé jantar fora. Fomos no restaurante do Carlos-meu-amigo, e eu me contentei com uma sopinha e uma taça de vinho. Comer em público com aquilo na boca seria desastroso.
O Carlos, quando nos viu ali, veio conversar.
- Sabe quem está aqui, lúcia? O Bernardo Carvalho, o escritor que você gosta tanto. Você quer conhecê-lo?
Fiquei super animada.
- Cshlaro Carrshlosss, clsharo!
- Vai lá conversar com ele, lúcia – o Carlos apontou uma mesa – Olhe ele lá no fundo.
Nessa hora o Zé me olhou feio. Bravo.
- Lúcia, não inventa. Fica calada ai.
- Porque, Zé? É o Bernardo.
O Zé me cochichou baixinho, para o Carlos não ouvir.
- Eu sei, mas uma mulher nunca aborda um homem. Nunca. Ouviu? É muito feio.
- Eu não posso ir falar com ele, então? - falei, decepcionada.
- De jeito nenhum.
Fiquei meio desiludida. Eu precisava contar para o Bernando um monte de coisas que eu achei do livros dele.
- Mas Zé... e se for de outro modo?
- Como assim?
- E se ele vier aqui, falar comigo, Zé?
- Aí tudo bem. Só não pode uma mulher abordar um homem. O contrário, ainda mais eu estando aqui, pode sim.
Tive, então, uma idéia. Pedi ao Carlos para nos avisar quando o Bernardo pedisse a conta. E, quando ele passasse perto da nossa mesa, o Zé ia falar bem alto o nome dele. Quando ele olhasse para nós dois, eu me levantaria e falaria com ele.
- Pode ser assim, Zé?
- Assim pode.
Tudo acertado. Um tempo depois, lá veio o garçon e avisou que o Bernardo estava saindo. Ele passou perto de nós, o Zé chamou o nome dele, ele olhou, a gente se levantou e...
Pimba, lá estava eu, cara a cara com o Bernardo.
Olha. Se o Zé não tivesse falado aquela coisa de abordar, se eu não tivesse feito aquela armação estranha, se tudo corresse normal, acho que eu estaria mais calma, pois o que tem de mais falar com o Bernardo? Mas foi uma confusão enorme e eu acabei me levantando toda atrapalhada da cadeira, meio sem graça e envergonhada.
O Zé me apresentou à ele, dizendo que eu tinha lido um livro dele e gostado. Ele sorriu, sem jeito, e me falou aquele tradicional “ah-oi-como-vai?”.
Era a deixa para a minha fala.
A minha animação era grande e minha agitação maior ainda. Eu resolvi sair falando um monte de coisas, logo de cara e...
- Oooii bernar...
Cussshps.
Cuspi nele.
Gente do céu, eu cuspi em cima do Bernardo Carvalho. Quando eu vi o meu cuspe ali, bem na minha frente, me senti imperdoável. Tudo por causa daquela droga de aparelho.
Olhei aquele cuspe branquinho na blusa preta dele, escorrendo devagarzinho. Como eu não tirava os olhos do ombro dele, ele também olhou. Na hora eu pedi mil desculpas e limpei com a mão. Ele não se mexeu. Afinal, ele não ia colocar a mão no meu cuspe, num cuspe de uma pessoa que ele nem conhecia.
Bom, apesar disso ele foi ótimo, falante, sorridente. Me deu o email para eu escrever tudo que eu quisesse, o que, óbvio, eu fiz na semana seguinte. Eu me respondeu em seguida, agradecendo a opinião e me chamando de “autêntica”.
Autêntica? Me deu vontade de rir. Bela saída para me relembrar sutilmente o ocorrido.
Gente, cuidado comigo: lúcia, aquela que cospe em escritores.

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