sábado, 26 de fevereiro de 2005

tic tac a bordo



- E ai, mãe. Gostou da viagem de navio?
- Horrível, filha.
- Horrível? Como assim, horrível? No telefone você disse que...
- Filha, eu disse que estava bom porque não ia reclamar da viagem durante a viagem, mas agora que eu cheguei eu falo. Foi ho-rrí-vel. Detestei essa coisa de viajar de barco.
- Porque? Não é divertido?
- Tinha gente demais, eram mais de duas mil e quinhentas pessoas num barco, quase não dava para andar. E o serviço era péssimo. Óbvio. Com tanta gente não tinha como.
- Você não foi na piscina? Não tomou sol? Tá branquela!
- No primeiro dia eu tentei. Coloquei o maiô, os óculos, peguei minha sacola e fui. Mas o lugar era tão cheio que eu não tinha onde ficar.
- Não tinha cadeira para sentar?
- Nem cadeira, nem lugar na água, nem lugar em pé, juro. Acho que as pessoas dormem por lá para conseguir uma cadeira espreguiçadeira na área da piscina. Daí eu desisti de piscina. Voltei para a cabine, troquei de roupa e não voltei mais.
- Hum. E você dançou? O cruzeiro se chamava “Dançando a Bordo”, não era?
- Lúcia, não dancei nem uma única vez. Eu e minhas amigas tentamos entrar na festa dos “anos setenta”, por exemplo, mas não conseguimos. Lotação esgotada. Uma delas até levou uma roupa alugada. Foi um desperdício, coitada.
- E as aulas de dança, mãe?
- Precisava se inscrever antes. Tentamos, mas quando chegamos não tinha mais vaga. Aliás, não tinha mais vaga para nada. Dançamos de outro modo.
- E as excursões?
- Também eram todas lotadas. Nem desci em alguns lugares. Para que? Para pegar mais fila?
- E a tua cabine? Era confortável?
- A cabine era boa, mas quando cheguei percebi que a privada estava entupida e a porta não fechava direito.
- E você pediu para arrumar?
- Pedi. A equipe de manutenção veio três dias depois.
- Três dias, mãe? E que banheiro você usou?
- Ah. Os do navio, do corredor. Que eu podia fazer?
- Mas e a comida? A comida era boa, né?
- Nossa, nojenta. Tivemos que até ir reclamar com o maitre. Peixe congelado por dentro, macarrão ao dente-dente-dente – e haja dente para mastigar aquilo –, carne de antes de ontem. Você podia escolher entre as comidas ruins e as péssimas. E os garçons jogavam os pratos me cima da gente. Mal-educados que só eles.
- E suas amigas, também acharam tudo horrível?
- Ah, no final até rimos. Uma delas ficou presa, de baby doll, para fora da cabine. Sabe quanto tempo ela teve que esperar no corredor para abrirem a porta? Uma hora e meia, coitada. Imagina você ficar uma hora, quase pelada no corredor, de baby doll e chinelo? Ainda bem que minha camisolinha era discreta, pensei. Se eu ficasse para fora não ia dar tanto vexame como ela.
- Viche.
- Já o seu Loreto, o único homem da nossa turma, se perdia o dia todo. Afinal, ele tem mais de oitenta anos... Vimos muito pouco o seu Loreto, coitado. Ele estava sempre perdido, rodando, procurando alguém. Nem sei se ele comeu direito.
- E aquelas mulheres que você conheceu, que levaram os próprios dançarinos? Aquelas que rachavam com as amigas o preço da passagem dos dançarinos?
- Nossa, coitadas. Estavam inconsoláveis. Acho que os rapazes se encantaram com o lugar, com aquela gentarada e não quiseram mais saber delas: su-mi-ram. Também, imagina se eles iam ficar dançando com umas velhinhas com tanta mocinha a bordo. Desapareciam o dia todo, deixando as mulheres indignadas.
- Mas mãe... mãe, o que era bom no navio?
- Hum. Acho que só a loja de relógios.
- Hã? Loja de relógios?
- É. Adorei a loja de relógios que tinha lá dentro do navio. Comprei um monte de relógios: dois para você, dois para sua irmã, um para cada neto, um para mim. Olha, até para a Maria eu comprei um relógio.
- Relógio, mãe?
- É. Relógio de pulso. O que é que tem? Vem, vem aqui pegar os seus. Cada relógio bonitinho, filha...

É assim que é minha mãe. Engraçada.

Nenhum comentário: