sábado, 20 de novembro de 2004

A barata do Cícero


Melancolia, Cicero Dias

Conheço esse quadro, está na casa de um cliente. E adoro o termo "melancolia".
Em geral, cria-se muito sob sombras melancólicas. Eu mesma sou assim.
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Há um ano e meio atrás, morreu uma tia minha, historiadora. A tia Alice era irmã da minha avó, morava sozinha e tinha uma bela coleção de quadros. Depois da morte dela, eu e minha mãe fomos desmontar a casa para alugar, quando minha mãe achou um papel no armário. "É um quadro, lúcia, um desenho pintado" - ela disse, me mostrando o papelão. Era um quadro comprido e grande do Cícero Dias, de 1930 e pouco, da fase surrealista. Socado no armário, perdido. Um guache ou aquarela em papel. Estava todo fungado, amassado e em péssimo estado, e eu fiquei apavorada.
O quadro era muito maluco. No meio do papel existia uma enorme barata voadora de barriga para cima, voando, toda animadona. Não tinha dúvida nenhuma, aquilo era um baratão mesmo - não era avião, nem nave espacial, nem fantasma. Era barata e cheio de pernas, antenas, gosmas e cracas. Atrás dela, umas arcadas, ao redor um monte de gente minúscula: umas pessoas de bicicleta, carrocinhas, gente a cavalo, cachorrinhos, montanhas e arbustos, tudo minúsculo. E a baratona lá, dominando, voando sobre todos. Não estava nem ai com a humanidade, com a medíocre vida cotidiana. Era nojenta e aquilo não era problema de ninguém.
Sabe? O quadro era uma mensagem. Era sábio.
Me indicaram uma restauradora para restaurar o quadro, ficou bem bonito. Mas todo mundo desprezava a barata. Ninguém dava nada por ela. "É uma barata!", falava um, "ninguém coloca uma barata na sala!", "Uma baratona dessas não vale nada, é feia!", dizia outro.
Ninguém entendia a barata do Cícero. Acho que nem minha tia, pois trancafiou a coitada no maleiro.
Passei dias encasquetada com ela, como a Clarice Lispector. Barata. Que barata que nada. Aquilo era muito mais que isso. Pensa bem. Arte não é para colocar na sala e decorar. Arte é para interagir com você, para te cutucar, para te ensinar. É uma conversa, uma idéia.
Eu adoraria ficar com a barata para mim, mas foi vendida e eu nem sei para quem. Ela ia me inspirar muito nas horas que eu sou careta e sem graça. Ela ia iluminar minhas maluquices, e ia mostrar como somos sem graça perto desses insetos que tanto desprezamos.

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