sábado, 28 de agosto de 2004

a boate

Escrevi essa crônica há dois anos atrás. É engraçada porque é verídica.

- É aqui.
- Lugar esquisito. Não parece que tem festa nessa boate, Zé - falei, estranhando.
- Quem falou que é boate? Hoje em dia nem existe mais “boate”. É “casa noturna”. E não é festa. É balada - disse o Zé, decidido.
Era uma festa de um amigo do Zé, solteiro, animado e moderno. O prédio era numa zona industrial e decadente de São Paulo. Um lugar escuro, numa rua escura, com uma movimentação estranha, num bairro mais sombrio ainda. Porque boates têm que parecer tão perigosas?
- Está escuro, mas acho que é por aqui - ele disse, franzindo os olhos.
- Isso é um elevador, Zé.
- Elevador? Não enxergo nada, sou míope - ele continuou, encurvado feito um velhinho.
- O elevador parou. Parece um bar abandonado - eu olhei para ele - Ei, Zé, vamos desistir?
Ele foi categórico.
- Não senhora. Eu vim até aqui e vou nessa festa. Vem, vamos perguntar.
- Perguntar para quem? Tá na cara que aqui não tem festa nenhuma - olhei ao redor - Tem só... uma pista de dança vazia... um monte de papel no chão...
- Pára de falar, senta nesse sofá que eu já volto - ele resolveu.
- Isso é um sofá? Parece uma boca gigante com uma língua para fora.
- Shiu. Tem alguém ali. Uma moça de saia longa. Olha - o Zé apontou para a escuridão.
- Não é moça, Zé, é garçom.
- Iii. Ele está vindo para cá. Deixa que eu pergunto.
O moço chegou perto de nós dois sorrindo. Era irritante.
- Oiê... Vocês não preferem ficar lá embaixo, no bar? Aqui ainda... não abriu.
Quando eu ia responder, o Zé tomou a dianteira.
- Não, queremos ficar sozinhos - ele resolveu, falando bem alto e vendo o rapaz sair dali.
- Zé.
- Que.
- Você não perguntou nada para ele - falei devagar.
- Eu sei. Mas pelo menos me dei bem - ele respondeu, sorrindo.
- Como “se deu bem”?
- Lu, veja. Eu agi como se eu estivesse cansado de saber que aqui não tem ninguém a essa hora. Entende? Não como se eu estivesse num lugar errado, na hora errada, totalmente equivocado e morrendo de vergonha.
- Mas, Zé! - eu exclamei - A gente está num lugar errado, na hora errada, e estamos totalmente equivocados e morrendo de vergonha!
- Eu sei, shiu. Mas fica quieta - falou o Zé, tapando a minha boca.
- Mas cadê a festa, pombas?
- Acho que a gente chegou muito cedo pra esse tipo de festa - ele olhou o relógio - Onze horas... que acha?
- Onze horas para eles deve ser praticamente de manhã. Ah, Zé... - eu estava desanimada - a gente é muito desinformado, não entende nada de casa noturna. Devíamos ter ficado na nossa casa diurna, com os nossos filhos, no nosso bairro residencial...
Ele deu de ombros, turrão.
- Que tem? Me convidaram, eu vim, oras! Ninguém tem nada com isso. Pago minhas contas, tenho meu trabalho, minha família e estou numa festa.
Eu olhei em volta.
- Festa? Que festa? Tá maluco?
- Sei lá... - o Zé suspirou - Mas qual que é a deles, hein? Que lugar é esse?
- Eu vou saber? É teu, o amigo. Modeeerno...
O tempo passou e nós dois ali, fingindo que conversávamos.
- Lú.
- Oi.
- Esse garçom fica olhando - falou o Zé, disfarçando.
- Quer ir pro outro andar?- sugeri.
- Não! Nem pensar! É questão de honra - foi quando ele me olhou de um modo estranho. Parecia que teve uma idéia daquelas - Ah! Já sei. Vem aqui.
- Onde? - perguntei.
- Aqui. Bem perto de mim.Vamos dar uns malhos.
- Quê? - eu dei um pulo do sofá.
- Vamos dar uns malhos, eu disse.
Eu olhei para o meu marido, incrédula.
- Zééé... Dar uns... malhos? Eu e... você? Mas a gente é casado há mais de dez anos! Para quê?
Para ele parecia óbvio.
- Para o garçom parar de olhar, ué.
- Peraí, Zé - eu olhei fundo nos olhos dele - Nós dois, adultos, pais de três filhos, vamos ficar aqui, nesse sofá vermelho de vinil em forma de lábios carnudos... se agarrando feito dois adolescentes tarados? Num... como você disse mesmo? Num... “malho”?
Ele estava animadíssimo.
- É, não é uma idéia ótima? Ele vai achar que foi por causa disso que a gente quis ficar aqui, sozinho! Justifica! Yes!
Eu hesitei, mas acabei concordando.
- Bom... tá. Se é assim que você quer...
E lá veio o Zé com seus... malhos. Depois de cinco segundos ele me cochichou.
- Lú, olha lá. Ele ainda está olhando?
- Você nem tá com vontade de me beijar - reclamei.
- Para de falar e olha, vai.
- Ele parou de olhar, mas tá chegando mais gente... Acho que é o dono da festa - apontei.
- Não! - ele implorou, se escondendo - Então dá mais beijo e me esconde!
- Esconder?
- Ele, o dono, não pode me ver! Quer que ele perceba que cheguei antes dele? - explicou.
Bem, ficamos no sofá até a festa encher de gente, e a música e a luz se tornarem insuportáveis. Levantamos, demos um alô para o amigo dele e ele me puxou.
- Agora vem. Rápido.
- Onde? - respondi.
- Embora, vamos fugir daqui já! - ele sorriu.
E fomos embora correndo, sem entender patavina de baladas. Dali direto para uma pizzaria no Bexiga, daquelas bem familiares. Uma verdadeira... casa diurna.
- Zé - falei, enquanto esperávamos a pizza.
- Oi.
- Vamos dar uns malhos? - perguntei.
- Aqui? Nem pensar! Que vão pensar da gente?
***



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