sábado, 28 de agosto de 2004

as calçadas de são paulo

- Olha só para aqueles dois - apontou meu amigo Paulo, sorrindo, enquanto comíamos um lanche no balcão da padaria.
- Estão arrumando a calçada, ué - respondi.
- Mas repara o jeito deles. É muito difícil, eles não vão conseguir... - retrucou ele.
Do balcão da padaria dava para olhar lá fora. Os dois eram funcionários de alguma empresa, tinham acabado um serviço na calçada e precisavam fechar o piso. Conversavam, mas não ouvíamos o que diziam. Meu amigo continuou, entretido.
- É... uma vez até parei para ajudar. É um quebra cabeça esse mosaico do piso de São Paulo, e a maioria está emendado errado. Mas, sabe duma coisa, Lúcia? Ninguém repara nisso.
Mosaico? Olhei para fora para lembrar como era. Não sei se é porque a cada dia andamos menos a pé, ou porque estamos sempre preocupados com outras coisas, mas a gente não repara mesmo nas calçadas da nossa cidade. Quando visualizei, fiquei impressionada. Aquela é uma idéia mais do que genial. Pensa, com apenas três ladrilhos, um branco, um preto e um preto e branco, é possível montar diversos mapas de São Paulo, ligados pelas suas pontas.
Mas ele tinha razão, aquilo só parece simples. Na verdade, é um quebra cabeças dificílimo, tem ordem certa para colocar e uma continuidade a seguir. Não é como a calçada de Copacabana, onde é só juntar o fim de uma onda com outra e o piso está prontinho, serpenteando as nossas pisadas e emoldurando a chegada do mar na areia. A calçada de São Paulo tinha que ser mais complicada.
Óbvio.
Bom, sempre tem o dia que é preciso quebrar o chão para fazer algum reparo. Passar cabos de tv, fazer uma saída de água, consertar tubulação de gás, ou sei lá mais o quê. Tanta coisa que existe por baixo dos nossos pés e a gente nem sabe.
Era essa cena que assistíamos de camarote no balcão da padaria. De um lado estavam os dois confiantes rapazes, e de outro os ladrilhos. Eles só tinham que emendar a parte nova da calçada nos mapas já existentes no piso antigo.
Os dois esfregaram as mãos, animados. Distribuíram as peças no piso e começaram a montagem. Êpa, não deu. Começaram a coçar a cabeça. O que houve? Tentaram de novo. Não, ainda não. Um olhou para o outro. Como era mesmo? Assim... não, assim... não. Melhor olhar de longe. Melhor olhar de lado. De frente. Um deles foi para o meio da rua, o outro gritou.
- E aí? Está certo?
- Não, errado ainda! - berrou o outro.
Retiraram todas as peças e retomaram aquela absurda empreitada cartográfica. Inverteram, emendaram, retorceram, viraram tudo de ponta cabeça, desviraram, repuxaram, subverteram, inventaram, transformaram.
- Deu?
Nada. Não dava. O negócio era complicado mesmo.
Largaram os braços, via-se que conjeturavam. Fazer um mapa só, vá lá, mas emendar tudo... De repente um deles se ilumina. Consegue pelo menos encaixar preto com preto e branco com branco. Sorri. Já é alguma coisa! Um centro avançado de estudos se instala, e eles, animados, conseguem completar o vão, no maior dos caprichos. Olham, satisfeitos, o trabalho. Ah, está muito bom. Um pouco diferente, mas, tsc; ninguém vai reparar nisso, concluem, já arrumando as coisas.
Fomos até o local, curiosos. Lá estava, acabada, na calçada da padaria, uma maravilhosa interpretação do estado. O nosso São Paulo se transformou, foi quase parar no Acre, brilhando como uma estrela. Comprido de um lado, largo de outro, criou diversas pontas, avançou no oceano Atlântico, cobriu delicadamente Minas Gerais como uma enorme mancha preta, deu uma cutucadinha no Rio de Janeiro com uma lança pontiaguda. Ou não, somente explodiu em pequenos caquinhos e se espalhou pelo Brasil.
Se pensarmos bem, aquela calçada se transformou em uma poética obra de arte, cimentada no meio da cidade. Pois São Paulo é aquilo mesmo. Uma cidade nada perfeita, emendada, corrigida, desencontrada, mas maravilhosamente caprichada. Uma obra feita por gente que faz o que pode diante de um mundo com peças tão simples, mas com encaixes tão complicados. São Paulo, realmente, avança em todos os outros estados, acolhe gente e sempre nos encanta com suas imperfeições.
A calçada errada está lá até hoje, e, se prestarmos atenção, está em muitos outros lugares da cidade, basta olhar para o chão. E meu amigo Paulo tem toda razão. Andar a gente anda, mas realmente, ninguém repara...

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