quinta-feira, 5 de novembro de 2015

o furinho da camisa


o furinho da camisa

Era noite e eu estava vendo tv. Trocando e destrocando o canal, de cá para lá.

Parei numa entrevista que um homem estava dando para um repórter. Porque parei ali não sei. Fico pensando o que leva a nossa mente a escolher um canal. Parece coisa pouca, mas não é. Esse negócio de controle remoto, já sabemos, é uma coisa ansiosa, nervosa. Existe uma pressa no controle remoto, uma urgência de definirmos nossos sentimentos internos. Captamos impressões, dores, amarguras, sorrisos, tristezas e temos que ser rápidos, ágeis nos dedos.

Bem, escolhi aquela entrevista. Achei interessante, não sei se pelo assunto que o homem abordava ou pela maneira dele falar, tão tranquilamente consigo mesmo. Esse homem ganhou o meu prêmio daquela noite. Era fácil ouvi-lo, simpatizar com ele. O controle remoto foi largado na mesa lateral.

Não sei o que ele fazia. Podia ser que fosse jornalista, roteirista de teatro, diretor de algum filme, escritor. Só sei que ele contava uma história. Era um homem mais velho, magro, de cabelos um pouco grisalhos. Simpático. Continuei ouvindo a falação dele.

Percebi que eu prestava mais atenção na pessoa dele do que no assunto em si. Sempre que assistimos à alguma coisa, ficam em nós resquícios, não propriamente do conteúdo literal. Às vezes o suco não é da polpa. É da casca. Depende de como está nossa pele aquele dia.

Numa certa altura, percebi um pequeno detalhe, bem pequeno, na camisa azul que ele usava.

Tinha um furinho perto da gola.

Um mini furinho.

Bem petitico.

Levantei do sofá e fui investigar pertinho da TV, franzindo o olho. Era uma coisa mínima, mas fixei meu olhar naquele furinho, uma camisa azul bem velhinha, gasta, e aquele buraquinho... Nossa. Era isso, verdade. Realmente tinha um furinho ali. E pior. Aquele buraquinho tinha sido remendado, cerzido e arrumado. Dava para ver. Estava muito bem feito, caprichado.

Um furo. Um furo na camisa do homem.

Depois desta hora eu não prestei mais atenção em nada do que ele falava. Afinal, pensa bem. Um moço vai dar uma entrevista para a TV e coloca uma camisa furada? Olha só que coisa, pensei. Furada. E ainda pior. Remendada.

Aquilo era demais, gente. Quem era aquele homem?

Primeiro achei bem simples. Vai ver que dar uma entrevista, para ele, era como falar com qualquer um, como se estivesse na casa dele, com uma roupa que ele gostava, confortável. Roupa velha, tinha até um furinho, mas estava consertado. E daí? Afinal, o importante era o que ele tinha a dizer, e era bom que ele se sentisse à vontade para dizer. Mas era só isso?

Olha, ninguém veste uma camisa com um furo para ir em algum lugar. As camisas com furos ficam nos armários, são reservadas aos dias de folga, aos melhores amigos, às noites que você sabe que não vai sair. Nunca são expostos, colocados à prova.

Aquele homem era diferente. Aquele furo dizia muito mais.

Aquele furinho começou a me dar tonturas. Foi crescendo diante dos meus olhos, ficando imenso. Já era uma enorme cratera que separava aquele homem dos outros homens, os homens sem furinhos. Um homem com furinho não é um homem qualquer. Precisa ser muito grande, muito gigante para usar um furinho. Não é para qualquer um. Os homens "qualquer um" jogam fora as suas roupas quando elas tem um furinho. Mas ele não. O conforto do tecido sobre a sua pele ia além do tempo que havia passado por ali.

Fiquei pensando que tipo de homem ele seria. Um homem que não joga fora. Talvez não jogasse também as pessoas que ele gosta. Um homem que tapa os furos dos erros que os amigos já fizeram. Um homem que conserva as mulheres da sua vida perto de si, pele com pele, próximas e ainda úteis, mesmo quando elas se esvaem por buracos. Um homem que deve conviver com as rugas que os dias trazem a todos nós. Com as manias, com as dores, com toda a mescla de imperfeições que vamos empilhando durante a vida. Sim, é preciso ser gigante, é preciso ser muito maior que todos os outros para carregar e expor à todos essa convivência tão natural, tão simples com a própria vida. Por onde andam no nosso mundo os homens de furinhos? Era pura poesia aquele furinho na camisa. Pura poesia.

É difícil mostrar as feridas abertas, os defeitos, os enganos. Os inúmeros furinhos. Mas essa talvez seja a mais maravilhosa saída para uma aproximação com o mundo feminino, faminto de doçura, de delicadeza, de compreensão. Pois choramos muito. Sangramos. Amamentamos. Falamos demais. Parimos. Temos sempre nossas carnes expostas, abertas, jorrando. Derramando. E achar às vezes um pequeno e frágil furo num homem nos mostra o quanto podemos ser iguais e, quem sabe, até compreendidas.

A entrevista continuou, e o encantador furinho se manteve, digno, firme, até o final da entrevista. Mas não foi embora. Ficou como poeira dentro da minha sala, dentro da minha mente. Alguns sentimentos internos são inalcançáveis pelos controles remotos. Perdem-se dentro dos furos.
Somente isso, um homem sem nome e... um furo.

Um comentário:

Agnes disse...

Acompanho seu blog há muitos anos. Gosto do estilo, da leveza do texto, mas não sou de comentar. Acho que este foi o melhor texto seu que já li, obrigada.