quinta-feira, 5 de novembro de 2015

o vestido e o sapato

Claro que eu falo muito aqui da Ângela. Afinal, irmã. A gente vive muito tempo do lado de irmão. E quando se vive muito tempo ao lado de alguém a gente tem muita intimidade.

Uma coisa que acontecia muito comigo e com a Ângela era um lance de roupa. Numa casa que só tinha mulher, como a nossa, claro que eu, ela e a mamãe, a gente emprestava roupa umas pras outras. A gente era menina e jovem, e a mamãe, viúva e novinha de tudo, muito mais nova que eu e ela hoje.

 Mas o problema é que a Ângela ela não tomava o menor cuidado com as roupas dos outros. Nunca tava nem ai, e geralmente a roupa que ela emprestava voltava toda ferrada. A mamãe não ligava, mãe sempre perdoa filha, mas eu, irmã, ficava puta. Ora, eram as minhas roupas que ela simplesmente... destruía.

Os meus super sapatos, por exemplo, um dia voltaram sujos de barro. Os mais lindos, chiques, mais caros.Barro!

- Ângela, onde você foi?

- Putz, pisei numa poça de lama. A festa foi num sítio, quer o que, Lú?

- Lama? Isso é barro seco, esterco!

- Esterco não é. Pode cheirar.

Teve um dia que eu fui madrinha de um casamento. Dai a mamãe comprou pra mim um vestido bonito, modernoso, estilo assim... hummm... meio New Age, David Bowie. Bem cafona hoje, mas na época era mega legal. O vestido era um tipo de tubo que era fino em baixo, acima do joelho, mas bem largo em cima, assim no seio.  E que abotoava todo atrás. Era cinza e todo meio durinho, estruturado. Tipo um cone. Vestido cone total. Lindíssimo, eu achava.

Ela me pediu, eu emprestei. Um casamento de uma amiga dela, como o que eu fui. E usou o vestido junto com o sapato que voltou cheio de barro, que eu vi quando ela chegou. Bom. Quando eu vi o "resto" da roupa no fim da festa dela, todos os furos de botões da parte de trás estavam rasgados. Dilacerados. Destruídos. A carne tinha sido praticamente comida. Nossa, eu fiquei puta.

- Ângela! Além de estragar meu sapato com barro e cocô de vaca, você estragou o vestido mais chique que eu tinha! Ângela! Você rasgou tudo, sua retardada! Olha!

(A gente adorava se xingar de "retardada". Isso hoje é mega politicamente incorreto, mas na época num era).

- Porcaria de vestido, Lúcia - ela emendou - Eu apenas me "sentei" no chão e os botões estouraram, porque o vestido era mais fino em baixo que em cima. Como alguém pode fazer vestido que uma mulher não pode sentar no chão?

- No chão? Você sentou no... chão, Ângela?

- É claro - ela retrucou - Queria que eu, no meio daquela chuva, daquela lama, daquele mato, me sentasse onde?

É, Angie, naquela época eu eu trouxa, mas hoje tem  tudo a ver.

Claro.

Porcaria de vestido e de sapato, óbvio.

o furinho da camisa


o furinho da camisa

Era noite e eu estava vendo tv. Trocando e destrocando o canal, de cá para lá.

Parei numa entrevista que um homem estava dando para um repórter. Porque parei ali não sei. Fico pensando o que leva a nossa mente a escolher um canal. Parece coisa pouca, mas não é. Esse negócio de controle remoto, já sabemos, é uma coisa ansiosa, nervosa. Existe uma pressa no controle remoto, uma urgência de definirmos nossos sentimentos internos. Captamos impressões, dores, amarguras, sorrisos, tristezas e temos que ser rápidos, ágeis nos dedos.

Bem, escolhi aquela entrevista. Achei interessante, não sei se pelo assunto que o homem abordava ou pela maneira dele falar, tão tranquilamente consigo mesmo. Esse homem ganhou o meu prêmio daquela noite. Era fácil ouvi-lo, simpatizar com ele. O controle remoto foi largado na mesa lateral.

Não sei o que ele fazia. Podia ser que fosse jornalista, roteirista de teatro, diretor de algum filme, escritor. Só sei que ele contava uma história. Era um homem mais velho, magro, de cabelos um pouco grisalhos. Simpático. Continuei ouvindo a falação dele.

Percebi que eu prestava mais atenção na pessoa dele do que no assunto em si. Sempre que assistimos à alguma coisa, ficam em nós resquícios, não propriamente do conteúdo literal. Às vezes o suco não é da polpa. É da casca. Depende de como está nossa pele aquele dia.

Numa certa altura, percebi um pequeno detalhe, bem pequeno, na camisa azul que ele usava.

Tinha um furinho perto da gola.

Um mini furinho.

Bem petitico.

Levantei do sofá e fui investigar pertinho da TV, franzindo o olho. Era uma coisa mínima, mas fixei meu olhar naquele furinho, uma camisa azul bem velhinha, gasta, e aquele buraquinho... Nossa. Era isso, verdade. Realmente tinha um furinho ali. E pior. Aquele buraquinho tinha sido remendado, cerzido e arrumado. Dava para ver. Estava muito bem feito, caprichado.

Um furo. Um furo na camisa do homem.

Depois desta hora eu não prestei mais atenção em nada do que ele falava. Afinal, pensa bem. Um moço vai dar uma entrevista para a TV e coloca uma camisa furada? Olha só que coisa, pensei. Furada. E ainda pior. Remendada.

Aquilo era demais, gente. Quem era aquele homem?

Primeiro achei bem simples. Vai ver que dar uma entrevista, para ele, era como falar com qualquer um, como se estivesse na casa dele, com uma roupa que ele gostava, confortável. Roupa velha, tinha até um furinho, mas estava consertado. E daí? Afinal, o importante era o que ele tinha a dizer, e era bom que ele se sentisse à vontade para dizer. Mas era só isso?

Olha, ninguém veste uma camisa com um furo para ir em algum lugar. As camisas com furos ficam nos armários, são reservadas aos dias de folga, aos melhores amigos, às noites que você sabe que não vai sair. Nunca são expostos, colocados à prova.

Aquele homem era diferente. Aquele furo dizia muito mais.

Aquele furinho começou a me dar tonturas. Foi crescendo diante dos meus olhos, ficando imenso. Já era uma enorme cratera que separava aquele homem dos outros homens, os homens sem furinhos. Um homem com furinho não é um homem qualquer. Precisa ser muito grande, muito gigante para usar um furinho. Não é para qualquer um. Os homens "qualquer um" jogam fora as suas roupas quando elas tem um furinho. Mas ele não. O conforto do tecido sobre a sua pele ia além do tempo que havia passado por ali.

Fiquei pensando que tipo de homem ele seria. Um homem que não joga fora. Talvez não jogasse também as pessoas que ele gosta. Um homem que tapa os furos dos erros que os amigos já fizeram. Um homem que conserva as mulheres da sua vida perto de si, pele com pele, próximas e ainda úteis, mesmo quando elas se esvaem por buracos. Um homem que deve conviver com as rugas que os dias trazem a todos nós. Com as manias, com as dores, com toda a mescla de imperfeições que vamos empilhando durante a vida. Sim, é preciso ser gigante, é preciso ser muito maior que todos os outros para carregar e expor à todos essa convivência tão natural, tão simples com a própria vida. Por onde andam no nosso mundo os homens de furinhos? Era pura poesia aquele furinho na camisa. Pura poesia.

É difícil mostrar as feridas abertas, os defeitos, os enganos. Os inúmeros furinhos. Mas essa talvez seja a mais maravilhosa saída para uma aproximação com o mundo feminino, faminto de doçura, de delicadeza, de compreensão. Pois choramos muito. Sangramos. Amamentamos. Falamos demais. Parimos. Temos sempre nossas carnes expostas, abertas, jorrando. Derramando. E achar às vezes um pequeno e frágil furo num homem nos mostra o quanto podemos ser iguais e, quem sabe, até compreendidas.

A entrevista continuou, e o encantador furinho se manteve, digno, firme, até o final da entrevista. Mas não foi embora. Ficou como poeira dentro da minha sala, dentro da minha mente. Alguns sentimentos internos são inalcançáveis pelos controles remotos. Perdem-se dentro dos furos.
Somente isso, um homem sem nome e... um furo.