domingo, 4 de novembro de 2007

violência é o medo dos ideais dos outros, disse Gandhi



Sexta eu fui assistir uma peça. O Francisco, um primo meu, me fez o convite: "Lúcia, é uma peça legal, só passa às sextas, topa ir?". Óbvio que adoro um convite desses. "É a peça do Rafael da Lourdinha", ele explicou. Como se eu soubesse quem é Rafael. Como se eu soubesse quem é Lourdinha. Mas o Francisco, esse meu primo, é de Belo Horizonte. E lá sempre alguém é de alguém e não se fala mais nisso. E o primo Francisco é meio difícil de explicar como é.
Fomos então, numa turma grande, prestigiar a peça do Rafael da Lourdinha do Francisco primo da Franka no Teatro Fábrica, com a intenção de jantarmos todos juntos depois no restaurante Tordesilhas, que é ali ao lado. A peça se chama “Topografia de um desnudo”, e está em cartaz às sextas as nove e meia da noite. O texto é do Jorge Dias, direção do Hugo Villacenzio e o grupo se chama “Conexion Latina de Teatro”.
Na porta, debaixo de uma chuva maravilhosa e esperando mais amigos, o Francisco começa a me explicar a peça. Quem era o grupo, quem era o Rafael, como era a história.
- Não, Francisco, pára – eu pedi – Assim você estraga tuuudo. Não gosto de ser pautada para assistir peças. Se a peça for boa, eu gosto, se não for, não gosto. Ouvir crítica antes não pode - pedi. Só me diz que personagem que é o Rafael dessa Lourdinha.
- É o cabo.
- Tá.
Ele riu e ficou calado. E lá fomos nós para o andar de cima do teatro para ver a peça.
Olha, adorei. Muito bacana mesmo. Sem entrar em muitos detalhes pra não estragar pra quem quiser ver, a peça conta a história de um mendigos que moram num lixão e que são expulsos violentamente de lá pois pretendia-se construir um empreendimento imobiliário no local. A história é real e conta um fato ocorrido nos anos 60 no Rio de Janeiro, quando mendigos foram mortos e jogados num rio, torturados com bastante crueldade. É uma montagem bem estruturada, bacana, com ritmo e tempo certo, com bons atores e boas interpretações. Uma peça sobre a violência, dolorida sem ser piegas, com texto inteligente e boa direção. A única crítica que eu faria seria sobre a idade de alguns atores, incondizentes com a idade do personagem. Imagem é tudo, confunde um pouco. E adorei. Uma peça boa. Sabe peça "boa", que, como diz minha mãe (que vive no teatro com a turma da van), que “te prende”? Pois a peça do Rafael da Lourdinha me “prendeu”. Na saida, aguém disse que o grupo tinha esse nome pois tem atores de diversos países da América Latina, inclusive alguns com sotaque, o que no começo parece estranho mas que no decorrer da montagem passa despercebido. Por falar nisso, o Rafael da Lourdinha tinha sotaque. Não era brasileiro, o Rafael-cabo, estranhei.
Saímos de lá, o Francisco me pede para ficar no saguão com ele.
- Vamos esperar o Rafael da Lourdinha – diz – quero te apresentar para ele.
Aguardamos um tempo até que surge o Rafael. Um homem provavelmente da minha idade, simpaticíssimo, que me comprimenta efusivamente, se espanta de eu ter blog, fica curioso por eu ser arquiteta. Conversamos muito, ele pega meu email, conto que escrevo peças, blá, blá, blá, ele me conta que adora arquitetura, que já construiu diversas casas, blá, blá, blá. Eu ainda não entendendo nada. Quem é Rafael, quem é Lourdinha, porque eu vim ver essa peça. Saímos de lá com chuvisco, depois do Francisco convidar o Rafael para jantar conosco e ele recusar por algum motivo, e, andando em turma até o restaurante, o Francisco nos explica.
Olha que divertido: a Lourdinha é uma amiga dele, de Belo Horizonte. O Rafael é marido dela, tem filhas adolescentes e tal. É um executivo de uma empresa, segundo o Francisco, um grande executivo, já foi até presidente num dos diversos empregos. Um cara importante. Tem família européia, mas nasceu e cresceu na Argentina, por isso o sotaque. Veio morar no Brasil e trabalha aqui há um tempo. Como gosta de teatro, resolveu estudar. Depois de concluídos os cursos, entrou nesse grupo, a Conexion Latina. Trabalha de segunda a sexta como executivo na tal multinacional, e todas as sextas feiras à noite risca qualquer coisa da agenda e corre para encenar o seu "Cabo São Lucas". Porque gosta de teatro. Apenas porque gosta de teatro, como eu. Porque a paixão da gente está além do que a gente faz. Porque estamos numa idade onde não vale a pena a gente esperar que tudo caia diante da gente. É preciso procurar, ir atrás, investir e pular as barreiras. Segundo o Francisco, o Rafael construiu até um pequeno teatro na super linda e projetada casa dele. Mas isso eu soube depois, bem depois, só no restaurante, onde comemos um delicioso bobó de camarão. E penso que ainda bem que eu não soube antes, pois senão eu ia assistir uma peça com o Rafael, o executivo argentino, e não uma peça com o Rafael da Conexion Latina, o que foi muito mais legítimo. Me identifiquei muito com o Rafael, gente. Eu, uma arquiteta que escrevo peças. Ele, um executivo que atua. O teatro está dentro da gente. É uma sina, um destino. Não interessa quem você é.

Tirei uma foto com o Rafael da Lourdinha e com o Francisco no saguão pra vocês verem que eu não minto. Olha que simpatia que é o Rafael.



aí, ó: o rafael da lourdinha, franka e o primo francisco (obrigada, bê)

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