sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

horizonte basculante



Assim como só se repara algumas coisas da cidade quando se anda a pé, algumas coisas só se vê do banco do passageiro. Estava sem carro e cansada ontem no final da tarde e peguei um táxi para voltar para casa. Para cortar caminho, o motorista entrou numa rua residencial, pequenina e cheia de casas que liga a av. Faria Lima com a marginal Pinheiros. Numa das esquinas o carro parou e olhei para o lado. Um sobradinho desses normais, tão comuns em São Paulo. Sala em baixo, janela de quarto e janela do banheiro em cima, garagem na frente, grade alta cheia de pontas. Porta com tetrachave. Beiral de telhado com casa de abelha. Uma vez alguém perguntou qual a tipologia de moradia de uma cidade como São Paulo. Embora todo mundo tivesse respondido que eram edifícios de apartamento do centro e Higienópolis, eu e o Zé lembramos de sobradinhos como esse, que passam quase desapercebidos na paisagem, às vezes as centenas corridos nas ruas, as vezes sufocados por prédios enormes mas sempre digníssimos apesar de transparentes nas pinturas bege e iluminações penumbrosas pré-fluorescente-halógena.
Nessa casa da esquininha em questão, reparei na janela do banheiro. E na silhueta do shampoo e do condicionador colocados no parapeito da janela. Nossa. Era possível até identificar a marcas dos produtos e notar que obviamente não eram as mesmas. Eu ri. Lembrei que na minha casa também o shampoo e o condicionador sempre são desparelhados. Alguns meninos reclamam, mas o shampoo sempre acaba antes de condicionador e sou sempre tentada a mudar de marca na compra seguinte. Ainda mais eu, que sou confessadamente uma mulher não-fiel ao shampoo. O carro andou um pouco e passei a reparar nas inúmeras janelas de banheiros, todas iguais, seguidas e invisíveis, todas sempre com as silhuetas de shampoo. Quase todo banheiro tem saboneteira e porta shampoo, mas é irresistível não colocar na janela, pensei num primeiro instante. Mas não sei se foi porque era fim da tarde, se porque é quase natal-fim-de-mundo ou se foi porque eu estava sensível, mas perceber as casas corridas com suas janelas de banheiro e seus shampoos me pareceu melancólico, mas extremamente confortador. As entranhas escondidas saindo pelas feridinhas. Sim, existem ainda shampoos em janelas. Coisas no lugar errado. Sim, é possível saber como os outros lavam a cabeça. O lado de dentro estampado do lado de fora, o que, numa cidade como São Paulo quase não existe mais. Talvez uma micro poesia, cabelos limpos e banhos explícitos. Era vida escondida que se colocava assustadoramente à mostra naquelas pequenas janelinhas. Tudo tão rápido, tudo tão invisível. A paisagem de São Paulo, nosso horizonte basculante.

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