domingo, 3 de abril de 2005

o sábado e a pomada



Era um sábado. Um sábado que sequer estava sendo lembrado como um sábado, era uma reles noite no cotidiano da família, um dia à toa, sem data e sem localização no calendário.
Passava das dez. Foi quando a Nani, minha filha do meio, resolveu fazer uma sopa para ela, dessas instantâneas, horríveis. Ferveu a água, mas na hora de colocar no prato, tropeçou no pé do pai e derramou o negócio fervente na mão. Deu um gritinho.
- Uiii!
Deve ter doido muito, a sopa estava borbulhando. Ela passou a chorar feito criancinha. Corri para cuidar. A mão estava vermelha, inchada.
- ÔmeuDeus, queimou, filha?
Fui direto para a caixa dos remédios. Cadê o diabo da pomada de queimadura? Procurei quem nem doida, mas ela sumiu, desapareceu. Aquilo me deixou enfurecida. Quem tira duma caixa de remédios uma pomada importante como a pomada de queimadura e não coloca de novo no lugar? Pomada de queimadura é uma pomada urgente, não dá para ficar procurando, tranqüila.
Nada da pomada, e a Nani choramingava. Olhei para ela e peguei a bolsa, decidida.
- Vou comprar, querida, dois minutinhos e eu já volto.
Era apenas cumprir uma missão: ir à farmácia, comprar o remédio e levar para casa, dentro do menor espaço de tempo que fosse possível.
O estacionamento da farmácia estava vazio. Parei o carro, entrei correndo, direto para o balcão.
- Moça, preciso de uma pomada de queimadura. Aquela, do tubo azul. Sabe qual é?
Com a pomada na mão, fui direto para o caixa. Mas já tinha alguém ali. Assim, me prostrei atrás da pessoa, em fila.
Era um homem grisalho, um pouco mais velho que eu. Pelas costas parecia uma pessoa comum. Ora, concluí, sorrindo, aquele era um pai de família, como eu, que também tinha saído a noite para comprar uma pomada de queimadura ou um remédio para febre de algum dos filhos. Ah. Aquelas costas me pareceram paternas, familiares. Me identifiquei com elas, com sua curvatura, seu tamanho, seu suspirar. Espelhei-me naquele homem-pai, ali, exatamente como eu, os dois em fila, os dois esperando alguém aparecer no caixa.
Era nesse ponto que eu queria chegar. Pois, se eu não olhei para o rosto do homem, também não olhei também para o que ele tinha nas mãos, supondo que, claro, seria um tubo de pomada de queimadura como o meu. Além disso, a idéia da existência daquela casualidade, daquele encontro lindo de um homem-pai com uma mulher-mãe comprando a mesma coisa, no meio da noite, era confortadora. Notar, ao acaso, que alguém vive uma vida semelhante à sua, dá forças para continuar. É como se todas as coisas estivessem tediosas, mas corretas.
Foi quando ele me notou. Virou-se, mas rapidamente me deu as costas. Aquilo me intrigou, achei que ele ficou tenso quando me sentiu ali. Tudo foi muito rápido, mas perceptível. As costas passaram a se esconder de mim.
O moço do caixa se demorava, abrindo e fechando as gavetas, e eu curiosa com aquelas costas subitamente arrepiadas.
Comecei a dar uns passinhos para o lado, para poder olhar melhor a cara dele. Poderia ser impressão minha, mas...
Hã?
Camisinhas?
Por mais que ele tentasse esconder, era aquilo que estava nas mãos dele. Foi impossível não olhar de novo.
Camisinhas, sim.
Ele se encolheu muito mais. As costas se apertaram, o tal pacotinho preto passou a crescer mais e mais nas suas mãos, chegando a proporções imensas.
Céus. Camisinhas gigantescas.
Olha, aquilo era uma coisa de pesadelo. Acho que ele devia estar na maior vergonha, para me passar aquela sensação.
Foi nessa hora que eu entendi que a impressão que eu, com meu tubo de pomada, tive dele, ele também teve de mim. Sim, éramos semelhantes, insuportavelmente semelhantes dentro daquela farmácia. Tão parecidos que ele, um homem -pai com um pacote ardente e sexual nas mãos, se encolhia de culpa e vergonha da mulher-mãe com a simplória pomada de queimadura. Estava claro que estávamos em horas e momentos diferentes, e, pelas nossas regras, eu parecia correta e ele, completamente inadequado. Ele tinha uma cara de quem estava morrendo de vontade de engolir aquela camisinha e pegar uma inócua e santa cartela de novalgina. Tinha cara de quem se sentia fora dos padrões éticos do mundo dos pais casados no sábado de noite.
A santa e o pecador. A freira e o tarado. Sei lá, alguma coisa do tipo.
Tudo pode ter se passado em menos de um minuto, mas o tempo contido naquela compreensão ia muito além dos muitos anos dos casamentos, o meu e o dele. Éramos ali, aparentemente, apenas um homem e uma mulher do mundo, um homem e uma mulher que um dia podiam ter se encontrado e casado, um homem e uma mulher que poderiam ter namorado, apenas um homem e uma mulher próximos numa fila. Mas esse homem e essa mulher nunca estiveram tão próximos e tão distantes.
Coisa mais maluca os caminhos da vida da gente.
Naquele momento eu gostaria muito de poder falar isso para ele. Que ele precisasse de camisinhas no meio da noite de sábado era o de menos, aliás, sorte dele. O problema não era ele e suas camisinhas e nem eu e a minha pomada. O problema era o acaso e a distância entre nós, e a transparência poética desta diferença.
O rapaz do caixa apareceu. Ele pagou, e saiu. Eu paguei, saí atrás. Os dois silêncios berraram feito doidos no estacionamento. Saí dali com minha pomada e com minha vida, como quem viveu a navegando à deriva por muito tempo, e uma hora, num sábado à noite, toma conhecimento de onde está e leva o maior susto.
Cheguei em casa. A Nani dormia tranqüila no sofá, no colo do Zé. Enquanto passava a pomada, vi que a mão dela estava vermelha, mas que não era tão grave.
Aliás, nada nesse mundo é tão grave.
Ainda bem.

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