sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

AVÓ



Escrevi esse texto há três anos, depois de uma visita à minha avó.
Reencontrei hoje e o coloco aqui para ela, que ainda está viva, firme e forte. Caramba, é muito legal. Acho que eu tava inspirada.

Dona Antonieta

Tenho até hoje uma avó. Ela está bem de saúde, apesar de ter quase cem anos.
Porém fica o tempo todo perguntando o porquê dela ainda estar viva. Diz que não ouve mais direito, que não anda mais direito e não enxerga mais nada. Segundo ela mesma, pra que é que ela serve? “Só para atrapalhar os outros”, ela mesma responde, “só para dar trabalho para a família”.
O problema da minha avó é o excesso de consciência. Acho que ela tem um equilíbrio errado neste sentido, sua consciência é cheia demais para os buracos ocos das funções do seu corpo, e ela não suporta mais essa consciência.
Acho que com quase cem anos, muita compreensão incomoda.
Todo mundo da família fica a consolá-la. “Queéisso, vó. Pára de reclamar, vó. Olha a senhora ai, inteirona, mãe. Tão forte. Não entendo, a senhora tem essa saúde de ferro e reclama? Nem dores tem, de nada”.
Ela nem ouve.
O que ninguém entende é que ela talvez clame por alguma coisa que dê sentido à vida, nem que este futuro seja a própria morte. Qualquer futuro, enigmático, misterioso, nem que seja nas profundezas da dor ou da doença, onde a vida dela possa ter, enfim, novamente, alguma emoção. Acho que minha avó já não agüenta mais esperar. Ela é um bebê não nascido de dentro do útero da vida.
Toda vez que vou vê-la, tento preencher a vida dela com as minhas histórias. Falo como uma matraca, exagero, invento, floreio, saio de lá exausta. Sinto que este é um dos tipos de alimentos que posso dar: a minha vida, ainda com futuro.
Numa dessas visitas, ela ladainhava. “Pra quê, minha neta. Pra quê ainda estou aqui ainda”. Minha avó não coloca reticências. Nada sai do presente.
Pensei um pouco. “Ora, Vó. A senhora está aqui para ser a avó. E assim, sendo somente a avó desta família, a senhora tem sua função. Entende?”
Ela me olhou, calada. “Avó?”
Acho que depois de uma certa idade, quando ainda estamos no mundo e não podemos mais ser úteis com nossas ações, palavras ou poesia, estamos aqui somente para ser. Minha avó é a avó. Ela agrega gerações, de filhos a bisnetos. Quem da família, quem, com seu talento, com sua profissão, com seu futuro, com suas funções corporais intactas e com sua juventude, quem conseguiria juntar um grupo tão diferenciado de pessoas? Tão pouco homogêneo?
A idade é um enorme imã que irradia a força do tempo, com seus perfumes velhos, com sua memória e com a consciência do tão distante fim. Ela é avó. E sendo somente a avó, e tão enormemente a avó, tem o maior papel que um ser humano pode ter: de ter gerado todos, de ser amada por todos.
Me conforta pensar que, enquanto eu me esforço para viver, minha avó se balança calada na sua cadeira. No mais completo silêncio. Silêncio da espera da dor que não vem, da morte que não bate na porta, do tempo que não mais interessa.
É.
Vez ou outra eu sou salva pela minha avó.

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