domingo, 26 de dezembro de 2004

Ao querido papai


e falando em infância...

O João precisava levar na escola alguma coisa minha: um desenho, um caderno, um boletim, qualquer coisa da época que eu tinha a idade dele.
Fomos procurar, tirando caixas e caixas do armário. Encontramos um cartão que fiz para o meu pai para o dia dos pais. Era um cartãozinho laranja, com uma figura na frente, e dentro estava escrito: "Papai, aceite esta pequena lembrança de sua filha, Lúcia".
O João sorriu, feliz.
- Quantos anos você tinha quando fez isso, mãe?
- A tua idade - respondi - Nove anos.
Mas ele ficou olhando a figura do cartão fixamente, intrigado.
- Mas ô mãe. Você... fez esse cartão na sua escola?
- Fiz - respondi - recortei o papel, colei a figura na capa e escrevi dentro.
- E podia escolher a figura?
Claro que eu não me lembrava. Afinal, trinta anos...
- Não sei, João. Não lembro. Acho que sim, filho.
Ele olhou o cartão pasmo.
- E você foi escolher uma figura de um passarinho morto-assassinado, mãe? Que coisa horrível. Olha só, coitadinho... que presente para dar para o pai!
Quê? Eu catei o cartão da mão dele, mas era isso mesmo. Lá estava o passarinho morto, enorme, de barriga para cima, pezinhos caídos, asas abertas, assassinado. E do lado, três balas de espingarda. “Ao querido papai” está escrito, impresso na figura da capa laranja.
Foi isso que eu dei para o meu pai, foi isso que a escola mandou a gente fazer naquela época. Como explicar ao João que as coisas eram diferentes quando eu tinha 9 anos?
Pensei em falar que naquela época os pais deviam ser muito valentes, que eram caçadores. Que não tinham medo de nada, que tinham espingardas e com elas nos protegiam contra os perigos. Mas aquele pobre passarinho era um perigo? Fiquei sem palavras.
Na verdade, acho que aquele inocente passarinho morto era a confirmação da valentia e da masculinidade do pai. Sim, os pais de trinta anos atrás deveriam matar pobres coitados passarinhos à tôa. Treinariam neles os tiros que poderiam dar nos animais ferozes. Treino de pontarias certeiras, como abater um pássaro em pleno vôo. A valentia de um homem era uma grande virtude, acima de qualquer compaixão pela espécie, acima de qualquer movimento ecológico. Será que éramos menos “civilizados”? E eu, se escolhi aquela figura, o que realmente não me lembro, será que pretendia ter um pai assim? Um pai que me protegesse de todos os perigos?
Talvez eu tivesse dado para o meu pai uma espingarda carregada de balas e a amostra do que eu gostaria que ele fizesse com aquilo, acreditando assim, que ele poderia me proteger contra os leões. Os ursos. Os tigres, as cobras. Contra as bruxas, contra os monstros. É esta a expectativa que temos dos pais da gente.
Além disso, naquela época vivíamos um pouco mais próximos da morte dos animais. Eu via minha avó matando galinhas e perus. Assistia animada a morte de ratazanas. Não era tão politicamente incorreto matar passarinhos como é hoje.
Fico imaginando qual é a expectativa dos nossos filhos, como eles esperam que os protejamos. Com que armas? Armas de fogo? Com a razão? Com a inteligência?
Mas será que estamos tão longe dos leões?
Bem, chega de filosofar. Só sei que o Zé seria condenado aqui em casa se pegasse uma espingarda e matasse um passarinho e trouxesse a caça abatida como um troféu para casa.
- Pai! Ai, que horror!
- Que nojo, que monstro você é!
- Esconde isso logo, vai ser preso! Não conta para ninguém!
E ele se desculpando, atrapalhado.
- Foi sem querer, não foi culpa minha, juro!
Invertem-se os papéis. Aquele meu pai, caçador, valente e corajoso, não vive mais no nosso mundo. Os perigos atuais são outros: eu era condenada quando fumava meu cigarro (agora parei), sou execrada quando jogo uma pilha velha no lixo. Temos que adorar os animais e nunca matá-los. Nem pescar podemos mais.
Sobrou só o cartão, o passarinho morto sobre a espingarda.
“Ao querido papai... aceite esta pequena lembrança de sua filha”.
E o João? Levou na escola, sem dar a mínima, achando o máximo que o avô dele era um legítimo caçador.

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