sexta-feira, 12 de novembro de 2004

Dogville, Michele e as casinhas de carvão


dogville I

Ontem assisti Dogville. Não vi no cinema, não sabia do que se tratava, e vi o filme como um cego que abre o olho e se depara com uma coisa inédita.
Bem. Tenho um certo receio de falar dos filmes que assisto. É que conheço tantos críticos, jornalistas e entendidos que sempre acho que minha opinião é meio boboca (... apesar de eu sempre ter uma, pois tá cheio de gente que nunca tem nenhuma, ou que usa opiniões alheias ou de jornais).
Acho que eu tenho opinião de "foco quebrado", ou de "orelha" de livro. É que sempre eu me interesso por alguns detalhes, pelo cantinho, pelo jeito da moça respirar, pela foto da orelha do livro, pela lembrança que me trouxe a cena menos interessante. Essas coisas.
Bem, sobre o Dogville, que tanto se falou.
Perdões, ML, JDR, LH e RD, mas vou dar aqui a minha humilde opinião.
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Impossível não gostar de um tema tão bacana como a psicanálise de um grupo e as reações desse grupo com a chegada de um intruso. Quem não tem medo da moça loira linda que chega para atrapalhar a estabilidade da vida medíocre que a gente leva no dia a dia? Quantas vezes, eu mesma, nos meus anos de "pântano pós filho", não me chafurdei pelos mesmos pensamentos maus que todos ali tinham? E não fazia maldades, inconscientes mais reais com tanta gente que me rodeava?
Ah, isso incomodou demais. Me deu raiva daquele filme. Pra que me lembrar disso? Para que trazer a tona o medo que temos de perder nossos lugares, medo que nos torna tão fracos e invejosos?
Saco de Dogville, pensei. E ainda tinham que colocar aquela voz monótona e sonífera falando sem parar?
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Mas que lembrei de uma coisa ótima (hoje eu estou falando muito da infancia, pensando bem). Lembrei do quintal da casa dos meus avós, no interior de SP, onde ficava a jaboticabeira do outro post.
Bem, passávamos as férias nesse quintal, cheio de árvores, com uma casinha com um tanque (chamávamos de "ranchinho") e com um quarto cheio de segredos lá no fundo. O chão do quintal, que antes era de terra, foi cimentado a mando do meu avô quando eu era pequena.
Minha avó adorava escrever nomes no cimento, perpetuando assim a familia na solidez do piso. A cada nascimento de um neto ela pegava um galho e escrevia os nomes de todos, com maridos e filhos. Tudo no chão, impresso, posto, nascido da terra. Túmulos de nascimentos, tumulos de vida.
No banheirinho do fundo existia um saco de estopa cheio de carvão. E é ai que começa o meu Dogville. Meu maior divertimento era pegar aqueles carvões e rabiscar o quintal todinho, junto com minha irmã e minhas primas. Faziamos cidades, com casas, ruas, florestas, montanhas, nas nossas tardes de férias. Entrávamos ali e brincávamos de viver. Respeitávamos as casas de todos, levávamos alguns móveis, abríamos portas, exatamente como no filme. E sobre as letras da minha avó, sobre os nossos próprios nomes.
Sei o que é o cenário desse filme. Olha, acredito em brincadeiras de crianças mais do que em críticas cheias de triquitraques. E essa "idéia" do Lars von Trier, tida como "sensacional", de desenhar as casas no chão, me pareceu pra lá de boba. Ora. Se nós esquecíamos da vida lá no quintal, nada mais certo que os atores se esquecerem das vidas deles lá no estúdio. É uma idéia legal, mas nada de excepcional.
Sobre a maldade? Sim, há maldade e há vingança no mundo. Muita. E tem gente que não se arrepende mesmo. Não há como julgar. As vezes acho que não somos só uma raça. Somos um monte de bichos que querem sobreviver, cada um com seus medos.
Ah, e o cachorro?
Existia a cachorrinha do meu avô, a Michele (isso lá é nome de cachorro?). Era uma cadelinha vira lata, meio pequinesa, que entrava no meio do nosso Dogville de casinhas de carvão como uma cadela-fantasma: atravessava as paredes sob nossos protestos, desrespeitando todo o nosso "filme".
- Pára, Michéleee... sai daí!
Mas um dia meu avô ficou cego, e foi a Michele que passou a o guiar pelas ruas, sem entrar em nenhuma parede. Nenhuminha. Um dia ela morreu, e também foi enterrada no chão cimentado do quintal, com seu nome.
Aqui jaz a Michele, minha avó escreveu, sem citar que ela era cachorra...

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