tudo tão branco
Foi nos passeios a pé aqui perto da minha casa que eu observei. Primeiro surgiu uma, depois outra, depois mais outra, a coisa cresceu e hoje meu bairro é composto por um monte de casas branquinhas feito neve. Brancas em tudo: paredes, muros, janelas, persianas e pisos até aonde é possível ver, porque uma das características das casas nevadas é que são verdadeiras prisões de segurança máxima.
Ando pela minha rua e lá estão elas, ofuscando tudo. A coisa começou a acontecer nos bairros mais sofisticados, mas já é possível encontrá-las na versão sobradinho, casa de vila, lojinha de bairro. Não sei explicar a estranha sensação que elas me dão. Sabe aquela coisa legal de reconhecer os vizinhos por um detalhe da construção? Ah, o fulano mora na casa amarela, o sicrano na de trelicinha? Acabou. São tantas as brancas que não dá pra usá-las como referência pra nada, uma vez que são todas... brancas. A identificação passa para a vizinhança. É a casa ao lado da azul. Aquela duas casas depois da verde.
Seria uma questão de assepsia? Meu pai era médico e me lembro de questioná-lo sobre as roupas brancas. Ninguém gosta de ver médico sujo, é anti-higiênico, ele explicou. Isso tem lógica, afinal, médicos cuidam da saúde. Mas uma casa de tijolos seria, por acaso, anti-higiênica? Imaginei depois que essa tendência pudesse ter a ver com o uso do cal da arquitetura colonial, o cal antigo, branco, usado nas casas simples. Mas as casas caiadas da nossa história também eram coloridas justamente para não precisarem ser repintadas, bastava acrescentar pó de pigmento. Ou será que a idéia da brancura veio de alguma tendência internacional, ligada à virtualidade, à pseudo-existência? Não sei. O que vale é que a coisa pegou, e ter casas branquíssimas virou a maior moda na cidade.
Eu já tive uma cozinha toda branca num apartamento que morei. No começo, eu dizia “nossa, que lindo”. Depois, “ai, que inferno!”. A cozinha estava sempre imunda e eu tinha horror de olhar para aquele piso sempre repleto de cisquinhos, farelinhos, sujeirinhas. Foi uma época muito neurótica da minha vida. Me lembro quantas e quantas vezes, nos finais de semana sem empregada, eu mesma pegava a vassoura e o rodo para passar no chão. Hoje o piso da minha cozinha é preto. Chega de ser escrava do branco.
Concluo que não é fácil ter uma casa branca. Casas brancas precisam sempre um exército de manutenção que limpe, varra, escove, pinte, e basta um deslize para a casa virar bege ou cinza encardido. Penso se isso não é, de um modo um pouco torto, um modo de mostrar poder. Ora, sem dúvida alguma os donos de casas brancas tem mais funcionários e mais grana do que os das casas coloridas.
Comentei isso com um amigo. As casas hoje são brancas, mas repare, ele disse, os carros são pretos. É completamente verdade, é a máfia do preto e branco. Em garagens brancas carros pretos dão shows e, claro, isso vale para o resto da casa. A decoração, que custou caríssimo, também reluz. Em casas brancas tapetes ficam deslumbrantes, móveis modernos cintilam, objetos caríssimos faíscam. Que assepsia que nada, casas brancas são o paraíso dos decoradores. A invisibilidade da arquitetura, a pseudo-invisibilidade do poder financeiro, a visibilidade dos ícones da mídia. O branco mostra, exibe, ostenta. É como se arquitetura se inclinasse e deixasse a decoração entrar, referenciando-a.
Há muito poder envolvido nessa história nevada, creio eu. As coisas se completam muito bem nessa máfia gelada do preto e branco, e, brrr, dá o maior frio entender isso.
Frio na barriga.
Lucia Carvalho é arquiteta e autora do blog Frankamente... http://frankamente.blogspot.com
Revista Morar, Folha de São Paulo, 30/03/07
Nenhum comentário:
Postar um comentário