domingo, 25 de março de 2007

Grande Sonho


Minha avó morreu hoje. Tinha 101 anos. Foi a pessoa que eu conheci que viveu mais tempo. Acho que por causa disso que, quando fui acordada de manhã pela minha prima me contando o ocorrido, levei o maior susto. Não é que uma pessoa que vive 101 anos não possa morrer. O que acontece é que uma pessoa que vive tanto tempo é muito viva. E é esquisito uma pessoa muito viva morrer. Como ela sobrevivia a tudo, estava sempre presente e era minha avó, na minha cabeça ela era viva demais. Tudo acontecia e ela lá, viva, existindo.
Ela existia tanto que, de uns anos para cá, começou a reclamar de existir tanto. Achava um exagero, reclamava, não se conformava. Aprendi muito sobre a velhice com ela. A velhice assolará todos nós, vivos, sejamos o que formos: blogueiros, fumantes, esquisitos, reclamões, preguiçosos, famosos. Ela vem e não há o que fazer. Mexe com o corpo e com a mente. Acho que é ai que nos igualamos aos nossos pais, num tipo de equilíbrio do verbo 'cuidar' e passamos a cuidar deles como fomos cuidados. Minha avó, depois que estava bem velhinha, passou a não saber das coisas que ela sempre soube. Um dia me perguntou a receita do seu famoso bolo de nozes, outro dia me pediu para declamar para ela os poemas de um poeta que ela adorava, que se chamava Batista Cepelos. Como é, vó? E eu vou saber a receita do seu bolo? E como eu vou saber esse poema que a senhora declamava, vó? Já estou velha demais para ter memória, ela disse, agora é com você, concluiu. Sim, e foi ai que eu entendi o que ela estava me dando. Ela estava me dando a sua memória. Assim que funcionam as coisas.
Hoje de manhã contei para o João que a bisavó dele tinha morrido. Ela vai ser enterrada? Não, ela queria ser cremada, respondi. Ele quis saber que tamanho que ficava o corpo de uma pessoa cremada. Como não tenho a mínima idéia, lembrei de uns filmes que assisti e mostrei com a mão o tamanho de uma urna imaginária. E a família divide o pó entre todo mundo?, ele perguntou na maior.
Achei uma idéia excelente, embora eu saiba que minha avó, nesses últimos antes, já teve a sabedoria de se distribuir. Óbvio que eu já tenho um maravilhoso punhado do seu pó, milhões de grãos, que, mesmo sem saber, já jogo pelo vento a cada dia.
Resignação
Batista Cepelos

Este Anjo do Infortúnio, que me guia
Desde o primeiro albor da tenra idade,
E os lírios roxos da melancolia
Desfolha sobre a minha mocidade...

Este, que me acompanha e me vigia,
Sorrindo-me um sorriso de bondade,
E, na dor, que é o meu pão de cada dia,
Me fortalece contra a iniqüidade...

Este, bendito seja, enquanto eu vivo,
A debater-me em trevas horrorosas,
Como um ansioso pássaro cativo!

E que, sobre o meu túmulo, tristonho,
Distenda as asas misericordiosas,
Quando eu sonhar aquele Grande Sonho...

Nenhum comentário: